(Palestra proferida por ocasião do II Seminário Nacional de Bibliotecas Braille, no período de 07 a 11 de maio de 2001
Nós estamos aportando ao século XXI, comprimidos por uma série de
ameaças, todas elas decorrentes em parte, do uso que fizemos dos
recursos naturais do planeta e das estratégias criadas pela humanidade
em defesa da conquista do progresso e do bem-estar dos seres humanos.
Ecologistas apontam para um colapso no abastecimento de água do planeta,
previsto para daqui a trinta anos; ronda-nos a ameaça, a médio prazo, de
modificações extremas no clima, o que tornaria a qualidade de vida na
terra bastante precária;
Inúmeras espécies vivas em extinsão, o exacerbamento do preconceito
e intolerâncias entre as nações do mundo, o reforço à corrida
armamentista, traçam um prognóstico nada animador para este século.
E aqui estou eu falando em "desbraillização", o que não é senão, falar
sobre uma espécie de "morte" do braille, trazendo também para nossa comunidade,
uma reflexão sobre como temos usado o braille, sobre o que temos feito
para que esse invento que ainda não completou duzentos anos seja
explorado em toda a sua complexidade e importância.
Pois é certo que a contemporaneidade nos reserva um paradoxo relativo ao
sistema braille e às interfaces tecnológicas de produção e distribuição da
informação para as pessoas cegas e deficientes visuais.
Um paradoxo, na medida em que na última década, ampliaram-se
sobremaneira, as condições para a produção do livro braille, ao mesmo
tempo em que cresceram as potencialidades de armazenamento do texto,
que agora apresenta-se não somente em papel, e nos espaços físicos das salas
das bibliotecas especializadas, mas também em suporte informático.
Em contrapartida, no processo ensino-aprendizagem do sistema
braille, tem aparecido uma espécie de "grito de alerta", um sinal
vermelho apontando para uma situação de sub-utilização do braille, de
carência de livros didáticos, de péssimos desempenhos de crianças,
adolecentes e jovens cegos na leitura e escrita do braille, ao lado de
uma situação ainda mais grave, ou seja, um total
desconhecimento da história e evolução desse sistema, surgido no mundo
ao final da segunda década do século XIx, constituindo-se no único meio
natural de leitura e escrita das pessoas cegas até nossos dias.
A esse conjunto de problemas que caracterizam uma situação
desfavorável em relação ao braille, educadores, pesquisadores do assunto
já classificaram de "desbrailização".
Quanto esse processo teria de mito?
Em que medida a "desbrailização" existiria como uma realidade?
Para compreendermos melhor o problema, permitam-me fazer um rápido
recuo até os primórdios da história do sistema braille e aos passos
seguintes que caracterizaram a evolução dos processos de
ensino/aprendizagem das pessoas cegas.
Uma primeira versão do sistema braille foi apresentada à França por
seu inventor, Luís Braille, em 1829, sendo a sua versão definitiva
divulgada em 1837. Por algum tempo, a reglete e o
punção se constituíam nos únicos meios para a produção do livro ou de
qualquer texto braille. Não poderia precisar a época em que se imprimiu pela
primeira vez um livro em braille, pela via de uma máquina de impressão,
mas é certo que a mecanização da produção do texto braille se deu de
forma bastante lenta, afetando sobretudo os países mais ricos e os
grandes centros economicamente mais fortes.
No Brasil, por exemplo, até os anos oitenta do século XX, somente os
estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais dispunham de máquinas
de impressão em braille, ficando a política de produção do livro
didático e de outros livros em braille centrada no Rio e em São Paulo.
Esse cenário mudará completamente a partir da década de noventa..
O surgimento de softwares de voz, permitindo o acesso das pessoas cegas ao
mundo informático, e consequentemente, a automação dos processos de
impressão braille, assim como o incremento e aperfeiçoamento dos
softwares de reconhecimento de textos através do processo de digitalização, todas
essas descobertas permitiram-nos pensar que estamos vivendo um período
de transição, uma época onde assistimos a uma espécie de alargamento das
possibilidades de ação no âmbito dos processos de ensino/aprendizagem
das pessoas cegas e deficientes visuais.
É assim que do ponto de vista das estruturas materiais, a era
tecnológica que também penetrou a pedagogia e toda a vida cotidiana das
pessoas cegas evidencia um prognóstico bastante favorável à valorização
do sistema braille, à ampliação dos acervos braille nas bibliotecas e
serviços especializados, do seu reconhecimento para além das fronteiras
desses serviços especializados, nos outros serviços da sociedade civil
como um todo.
Em alguns poucos computadores espalhados pelo mundo, em bancos de
dados públicos ou privados, acessíveis a qualquer pessoa que disponha
de uma conexão com a internet, já é incalculável o número de livros
armazenados em formato digital, à espera somente de um suporte de
impressão, e uma vontade política que os transforme em livros braille,
acessíveis a todos.
Porque então se fala em desbrailização?
Ao lado de todos esses avanços tecnológicos descritos aqui
sinteticamente, e de todas as possibilidades que os mesmos prenunciam
para a utilização do braille, persiste um fenômeno que eu classificaria
como "descompasso cultural",uma espécie de síndrome, caracterizada por um
atrofiamento generalizado, tanto do uso ótimo do braille como o único método de
escrita e leitura das pessoas cegas, como do aproveitamento desse
incalculável potencial tecnológico associado ao braille.
Sintomas desse "descompasso", dessa síndrome, são denunciados em
toda parte.
Para o pesquisador dessa temática, o educador português Filipe
Pereira Oliva, o processo de "desbrailização" teria começado a partir do
advento dos gravadores e da sua consequente popularização, face à sua
miniaturização e barateamento.
A partir dessa nova feramenta, muitos livros deixaram de ser
impressos em braille, para serem registrados em fita cacete, retirando
das pessoas cegas em todo o mundo, o direito à experiência direta com a
leitura braille e assim, com todas as informações que a mesma propicia
ao leitor, do ponto de vista da gramática, da ortoghrafia, entre tantas
outras de ordem mais subjetiva.
Pesquisas rigorosas ainda não foram realizadas, mas começa a crescer
entre os educadores, administradores de escolas e serviços
especializados, rumores com respeito a essa situação desfavorável.
Conforme alerta Oliva, "Esta realidade está a tornar-se desde há décadas e
por todo o lado numa preocupação cada vez mais grave. Em muitos países não
há números; mas nos EUA, segundo um
outro artigo, intitulado "ABTHE CAMPAIGN TO CHANGE WHAT IT MEANS TO BE BLIND=BB",
sem autor expresso e publicado no mesmo volume da revista atrás referida, a
situação no ensino integrado é apresentada nos termos seguintes:
Em 1968 40% das crianças cegas deste país liam Braille, 45% liam caracteres
ampliados e só 9% não liam nada. Hoje, menos de 10% das crianças legalmente
consideradas cegas lêem Braille e mais de 40% não lêem nem Braille nem caracteres
ampliados. Este problema reflecte uma tendência perigosa: a iliteracia
funcional de dezenas de milhares de crianças cegas".
Por outro lado, se qualquer um de nós realizar uma pesquisa em seu
estado, encontrará um dado interessante: Setenta a oitenta por cento
das pessoas cegas que ocupam hoje boas posições no mercado de trabalho
foram convenientemente alfabetizadas através do sistema braille.
Prosseguindo na linha de raciocínio proposta por Oliva, penso que
este problema poderá gerar uma espécie de deformação
lastimável. Num futuro, poderemos ter crianças e adolecentes
extremamente exímias no manejo do computador, que no entanto, privadas
da leitura e da escrita braille, converter-se-ão em "analfabetas do
braille", alijadas assim, de informações diretas sobre ortografia,
gramática, interpretação e tantas outras ferramentas que somente a
leitura e a escrita diretas podem assegurar.
Como estão as crianças cegas brasileiras das escolas especializadas
e dos estabelecimentos da rede regular de ensino
com respeito ao aprendizado do braille?
Como elas se comportam frente à estratégias de redação, interpretação de texto,
utilização dos sinais matemáticos e outros em braille?
Qual tem sido a performance de jovens cegos nos exames vestibulares?
De que modo as crianças, adolecentes e jovens cegos do Brasil têm sido
apresentadas à história da conquista do sistema braille, que pode estar
ladeada com as maiores descobertas do século XIX, a exemplo da
eletricidade, da fotografia, do rádio e de tantos outros engenhos
comunicativos e culturais que este século legou à humanidade?
Estas são algumas das questões que se forem encaradas seriamente
pelos educadores, os diretores de escolas, os responsáveis pelas
políticas governamentais em educação especial, revelarão essa realidade
que já se denuncia à boca pequena. Se essas perguntas forem levadas a
sério, suas respostas certamente nos encaminharão a números que
comprovarão que o Brasil não vai bem quanto ao uso do braille na
educação especial. Comprovarão que de fato podemos estar caminhando
irremediavelmente para o que se tem chamado de "desbrailização".
Mas permitam-me analisar ainda um pouco mais, o que é de fato mito
nesse processo. Como qualquer fenomeno, como qualquer invenção, o
sistema braille sempre contou com dois tipos de apreciadores:
De um lado estão seus defensores entusiastas (no geral as pessoas cegas
utilizadoras e conhecedoras do tamanho dessa conquista e da sua
importância em suas vidas); Do outro lado estão os antagonistas do
braille, muitos dos quais não se contentam em produzir uma crítica
saudável aos limites desse código de leitura e escrita, mas criam e
difundem mitos que possam desclassificar o braille.
Vejamos um pequeno panorama dessa produção de mitos:
Imaginou-se que o livro gravado poderia ser um substituto do braille no processo de
leitura e incentivou-se a criação em todos os serviços, de audiotecas,
instituindo-se assim, o paradigma da "oralidade", em que a leitura não
se dava mais por forma direta, entre o leitor e as idéias do autor,
através do livro, mas a partir de um intermediário técnico, que
tornaria o livro um objeto imóvel, nao mais apto a ser folheado,
marcado, levado a qualquer lugar.
O advento das tecnologias de informática e dos softs de voz fizeram
com que recrudescesse o discurso dos antagonistas do braille. De novo
se festejou uma idéia de que a informática poderia ser um poderoso
substituto do braille, mesmo a partir da etapa de alfabetização das
crianças cegas.
Se fizermos um levantamento da produção do braille na última década,
veremos que apesar das potencialidades associadas às novas tecnologias
de informática e ao braille, decresceu muito o número de publicações em
braille, ao mesmo tempo em que aumentou o potencial de livros
armazenados em computadores pessoais ou nos serviços de bibliotecas
especializadas.
Todas essas idéias de combate ao braille como o principal
instrumento de leitura e escrita das pessoas cegas radicam todas elas
em alguns mitos básicos e primordiais:
1. O braille é um sistema fechado, anti-social, que segrega a criança cega;
2. O braille não tem atrativos, não pode ser impresso em cores e é bastante limitado para a
representação de graficos e outras manifestações da cultura escrita;
3. o braille é um sistema de difícil descodificação para a leitura ocular.
Há ainda outros mitos, mas fiquemos por agora com esses três. Eu
penso que esses mitos foram erigidos sobretudo porque não tivemos força
suficiente para uma defesa competente do sistema braille, ao longo da
sua história. O sistema braille não é um sistema fechado e anti-social;
fechadas são as políticas de produção do texto braille, que geralmente não
providenciam livros didáticos e outros em tempo real, trazendo à criança
cega o desconforto de ser discriminada todos os dias, nas escolas
regulares de ensino, ou de ter acesso à escolarização de um modo muitas
vezes defasado, nos estabelecimentos especiais de ensino.
O braille precisa ser descoberto em suas possibilidades estéticas; a
pedagogia precisa inventar estratégias que recuperem na criança cega e
nos professores, o amor por essa conquista. os livros precisam ser
instrumentos que despertem o prazer da leitura e do manuseio.
Finalmente, para os que acham o braille intratável aos olhos, as novas
tecnologias de impressão já permitem o braille a cores e também já é
possível a ampliação dos pontos, para uma leitura ótica mais adequada.
Eu penso que énecessário que criemos um conjunto de condutas, que
poderíamos chamar de "brailismo", as quais precisam ser adotadas por
essa comunidade que são as pessoas cegas, os educadores, os
bibliotecários, as comissões especiais, os simpatizantes da nossa causa,
etc, etc.
No que consistiria o "braillismo"? algumas dessas condutas já foram
apontadas em congressos, colóquios e seminários. Vou tentar resumir um
quadro desses comportamentos:
1. Defesa intransigente do sistema braille como o método direto e
principal para a leitura e a escrita das crianças e adolecentes cegos.
2. Compreensão dos recursos de gravação e digitalização de livros como
estratégias complementares e ampliadoras do rol das necessidades das
pessoas cegas, e nunca como substitutos do braille;
3. incentivo à pesquisas que revelem a excelencia do braille como
estratégia fundamental no processo ensino/aprendizagem, e que possam
desmistificar juízos de valor e idéias pré-estabelecidas que
desqualificam o braille;
4. incentivo a estudos que otmimizem o braille, levando em conta uma
proposta de braille unificado e que potencializem os resultados desse
diálogo amigável entre o braille e as tecnologias de informática.
5. Defesa intransigente pelo reconhecimento do braille como o meio
direto e oficial de leitura e escrita das pessoas cegas, pelos órgãos
ghovernamentais, os sistemas econômicos, o empresariado e a sociedade
civil como um todo.
É preciso reconhecer no entanto, que ainda que tardiamente, algo
está sendo feito nesse sentido tanto no âmbito internacional como no
âmbito do Brasil. A instituição das comissões de braille e o incentivo
ao intercâmbio entre as mesmas, levado a cabo aqui no Brasil por
intermédio da Secretaria de Educação Especial do Mec, ao lado das
entidades de representação nacional das pessoas cegas é uma iniciativa
louvável e que certamente propiciará bons frutos na tarefa de
valorização, reconhecimento e difusão de um braille de qualidade.
A implantação dos Centros de apoio Pedagógico, me parece ser outra
medida de importância para a melhoria da qualidade do ensino das pessoas
cegas, seja na escola regular ou nos centros especializados.
Mas eu volto a insistir na necessidade de uma reflexão mais
profunda sobre o uso que temos feito do braille. Em um outro congresso,
onde fui incumbida de falar acerca das conquistas sociais do sistema
braille, eu afirmei que esse invento ensejou um rol de conquistas muito
amplo, que vão além das chamadas conquistas sociais. E eu me reservo ao direito
de repetir aqui, o que afirmara em um momento da minha fala, naquele
outro congresso:
Prestemos atenção à "música do braille". Aquele som que nos entusiasmava na infância, orquestrado por regletes e punções em ação, é uma espécie de palimpsexto, guardando por baixo do som aparente e em torno dele, um texto novo que precisa ser decifrado.
Esse texto fala de uma coletividade, a desvestir-se pouco a pouco
das suas sombras, para fazer-se visível no mundo.
Mas não são somente as chamadas conquistas sociais que comparecem na
célula de braille. Esse texto fala também da
reabilitação de sujeitos e do refinamento dos seus cérebros.
Fala pois, de uma conquista maior, muito mais sutil: Uma conquista
bioantropológica, objeto a ser apreciado pelas ciências que se ocupam do
cérebro e da sua evolução.
Esse texto encontra também tradução no âmbito de uma cultura
ecológica, plantetária, cósmica, porque a partir do gesto de Braille
fizeram-se as condições para que pudéssemos contribuir de uma forma mais refinada no projeto
primordial do universo, ou seja, o projeto de permanência dos seres
vivos no mundo. **.
Acho que essa conquista precisa ser demonstrada em todo o seu relevo, às
nossas crianças e adolecentes cegos; aos educadores, aos
bibliotecários, à sociedade civil como um todo.
É nossa responsabilidade fazer do sistema braille não um sistema
fechado e anti-social, mas mostrá-lo ao mundo como uma marca da
cultura, um modo de visão de mundo, a senha matriz da nossa emancipação
social e da luta pela nossa cidadania.
**. "O Braille numa Perspectiva Sócio-Cultural": Filipe Pereira Oliva
Publicação da Biblioteca Nacional, Lisboa, 2000.
VAI PARA O ÍNICIO DO TEXTO...
**. A palestra referida encontra-se em:
http://intervox.nce.ufrj.br/~joana
com o título de:
"O sistema Braille como um Gesto de Amor".
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