CANTINHO DA PANDORA





Pontos Significantes: O sistema Braille como um Gesto de Amor

Por Joana Belarmino

(palestra proferida por ocasião do Seminário comemorativo dos 150 anos da Introdução do Braille no Brasil, Rio de Janeiro, 3/5 de novembro de 2000)

Ao me convidarem para proferir palestra sobre as conquistas sociais advindas com o sistema braille os senhores me dão uma incumbência ao mesmo tempo fascinante e desafiadora. Fascinante porque posso dizer que sou uma braillómana, desde que me entendo por gente, desde que pude decifrar através desses pontinhos, as minhas primeiras palavras escritas, e desde então nunca mais pude parar de tatear papéis, de uma forma as vezes contumaz, outras vezes calma e tranquila.
Desafiadora porque quanto mais a gente se põe a pensar no braille, mais aspectos originais desse sistema que não tinham sido suficientemente pensados, abordados, aparecem à nossa reflexão. Quanto mais a gente pensa no braille, mais a gente percebe o quanto ainda sabe pouco sobre esse sistema de leitura e escrita que se instituiu no mundo da cultura a pouco menos de duzentos anos.
Em todos esses meses em que estive de posse do convite para essa palestra, estive de algum modo ocupada a pensar no braille e digo-lhes que foi um exercício e tanto. Mas chegou um momento em que foi necessário que eu desse ordem ao meu cérebro para parar e tentar organizar essa espécie de caleidoscópio que então se formara em minha mente sobre o sistema de braille.
Essa palestra é pois a tentativa de dar ordem a isso tudo, a esse conjunto de coisas que são um pouco aspectos da minha infância, da minha escolarização, das minhas reflexões, tudo isso misturado a um pouco da perspectiva da história do desenvolvimento da própria coletividade cega, depois de braille, depois do seu sistema.

Começo então falando da infância. Eu me lembro que quando cheguei à escola especial, uma das coisas que mais me fascinava durante as aulas era a hora do ditado ou da cópia. Eram aquelas horas em que cinco, seis, oito, dez crianças cegas se punham a escrever em braille. O som que punções e regletes em ação produziam me embevecia. Era um som mágico, com um ritmo aparentemente desordenado, em que se combinavam o batuque das perfurações e o ricochetear do punção nas bordas da sela da reglete, marcando as letras.
Naquele tempo eu apreciava aquela música de uma forma lúdica. Foi somente aos poucos que pude compreender o tamanho daquela conquista, foi gradualmente que me desloquei da magia daquela música de regletes e punções em ação, numa pequena escola especial do nordeste, para apreciar o sistema braille no âmbito de uma coletividade, de uma sociedade, de uma cultura, de um planeta, de um universo.
Entendo que para que a gente possa vislumbrar o tamanho dessa conquista, é necessário que alarguemos os focos de observação do sistema braille para além das suas fronteiras. é necessário que ampliemos o rol das questões que até então foram formuladas sobre o sistema braille e sua repercussão na vida das pessoas cegas, pela tiflologia, pela educação especial, pela psicologia do comportamento, pela sociologia tradicional. É necessário pois, que situemos o invento de Braille no contexto da história do desenvolvimento da espécie humana, no âmago da história da sua evolução bioantroopopsicosociológica e cultural.
Se recuarmos no tempo, se por um processo de abstração recompusermos o cenário em que os primatas migravam para a savana e equilibravam-se nos galhos das árvores, apanhando com suas mãos os frutos das suas colheitas; se pensarmos nos gestos quotidianos dos nossos ancestrais, a burilar pedaços de pedra bruta para forjar as armas com as quais intervinham na natureza, estaremos por certo diante de processos indispensáveis para que se desenvolvessem no cérebro as possibilidades de um futuro em que surgiria a escrita e toda uma renovação profunda na cultura humana que a escrita produziu.
São milhares e milhares de anos a nos separar das primeiras experiências para a invenção da escrita, mas é bastante recente o esforço das ciências cognitivas e neurociências no sentido de estabelecer as ligações entre a complexificação crescente do nosso cérebro e essa importante ferramenta que era colocada a disposição dos seres humanos pelos povos antigos.
Os gestos da savana, aparentemente casuais e instintivos, por certo comunicavam-se com as leis cósmicas que permitiram que se forjasse o "homus/erectus", portador de possibilidades no cérebro para a formação do "homem da cultura letrada". Com esse arranjo singular, concebido entre homem e natureza, o que pretendia a espécie humana se não garantir a sua permanência no universo? porque é certo que quanto mais o homem for capaz de ampliar suas potencialidades biopsíquicas e sócioculturais, mais ele estará fincado no projeto de permanência do universo, da sociedade, da cultura.
A escrita não era se não, mais uma das inúmeras soluções de permanência do homem nesse mundo. A história nos mostrou que tudo o que veio depois foram também soluções de permanência da espécie humana no universo.
Agora pensemos nessas questões do ponto de vista do contexto da coletividade cega. Pensemos nos milhares e milhares de anos em que se produziu um profundo hiato, um fosso aparentemente intransponível entre a cultura da escrita e os indivíduos cegos. Porque ainda não são passados duzentos anos do advento do braille; Ainda não são passados duzentos anos daquele momento primordial em que pela primeira vez uma pessoa cega pôde tocar num arranjo duro de pontos e decifrar ali uma palavra. O que teria significado esse prolongado hiato na vida das pessoas cegas? De que modo ele repercutiu nos cérebros desses indivíduos? Em que lugar da cultura ele os situou?
Ainda que com algumas lacunas, mas com ilustrativos relatos, a história de certo modo já nos disse onde estávamos durante o tempo desse hiato. Potencialmente, tínhamos o mesmo cérebro forjado na faina das savanas; podíamos pensar, inquirir o mundo com nosso aparelho sensório-motor onde no entanto, falhava a função de um órgão fundamental: O órgão da visão.
Esse fato inelutável, a limitação da cegueira, nos situava pois nas periferias, nas bordas da cultura, da sociedade, ali onde não são reconhecidos direitos e deveres, ali onde não se faz conta de opiniões, sentimentos, desejos e vontades. Ali onde as pessoas são meio que incompletas, deformadas, ali onde indivíduos não são vistos, se não como peças inválidas de uma engrenagem que é necessário arquivar.
Pensemos agora na célula braille. Imaginemos uma folha de papel em branco, em cujo centro haja uma representação dos seis pontos de braille. O que foi que Louis Braille fez com esse delgado filete de seis pontos justapostos, o que foi que nós fizemos com esses seis pontos?
Agora pensemos em quanto tempo a gente leva para perfurar esses seis pontos: Um segundo? Dois? Aludo a essa metáfora para pensar numa coisa fascinante. Em um, talvez dois segundos, nesse gesto de premir seis pontos em um papel em branco, Braille nos conectou com a nossa cultura escrita. Com um clique de nada, Braille criou as chaves para a nossa inclusão em vários outros mundos: Os profissionais, os educacionais, os tecnológicos, outros mundos estéticos, afetivos e prazerosos até então desconhecidos de nós.
Foram somente seis pontos que deram começo a uma revolução; a revolução de reabilitar indivíduos, de melhorar seu lugar e sua posição dentro da cultura.
Não vou me alongar falando dessa revolução tão conhecida de nós todos. só quero tentar esboçar algo do que ainda não está suficientemente pensado por nós próprios, pela nossa ciência, pela nossa filosofia, pela nossa cultura.
Para além do indiscritível prazer de poder ler e escrever; para além do mágico movimento entre mão e cérebro, decifrando a cultura da escrita, o que teriam disparado em nossos cérebros os seis pontos de braille? Que tipos de sinapses e conexões neuroquímicas o gesto de braille teria despertado em nossos newcórtex, conexões estas que poderiam estar adormecidas desde o tempo das savanas?
Somente a menos de duzentos anos foi dada à nossa coletividade, a ferramenta para a leitura e a escrita; o que será que essa ferramenta estará produzindo em nossos cérebros? Se a ciência, se a tiflologia quiserem ocupar-se dessa questão, por certo inaugurarão um capítulo novo e surpreendente na história da cegueira; por certo perceberão aspectos do sistema braille nunca antes devidamente considerados ou imaginados. Por certo perceberão nesse arranjo matemático simples que é a matriz básica dos seis pontos braille, a concretização de uma complexa gramática, combinando o relevo e o espaço vazio, para representar música, matemática, desenho, cartografia, entre tantas outras linguagens do mundo que puderam então ser decifradas por nossa coletividade.
Prestemos atenção à "música do braille". Aquele som que nos entusiasmava na infância, orquestrado por regletes e punções em ação, é uma espécie de palimpsexto, guardando por baixo do som aparente e em torno dele, um texto novo que precisa ser decifrado. Esse texto fala de uma coletividade, a desvestir-se pouco a pouco das suas sombras, para fazer-se visível no mundo.
Mas não são somente as chamadas conquistas sociais que comparecem na célula de braille. Esse texto fala também da reabilitação de sujeitos e do refinamento dos seus cérebros.
Fala pois, de uma conquista maior, muito mais sutil: Uma conquista bioantropológica, objeto a ser apreciado pelas ciências que se ocupam do cérebro e da sua evolução.
Esse texto encontra também tradução no âmbito de uma cultura ecológica, plantetária, cósmica, porque a partir do gesto de braille fizeram-se as condições para que pudéssemos contribuir de uma forma mais refinada no projeto primordial do universo, ou seja, o projeto de permanência dos seres vivos no mundo.
Escutemos a música do braille em todos os suportes onde ela está sendo produzida. Regletes e punções, máquinas perkins, impressoras de pequeno, médio e grande porte; escutemos o diálogo que ela estabelece com as múltiplas linguagens da cultura, com suas tecnologias.
Vislumbremos por baixo e em torno de todos esses sons, a mensagem de amor que braille nos legou com seu gesto.

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