Questão de Postura ou de Taxonomia? Uma Proposta -
Francisco José de Lima
Questão de Postura ou de Taxonomia? Uma Proposta - Francisco josé de lima - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP Resumo O presente artigo discute algumas posturas correntes, porém muitas vezes despercebidas, no trato de pessoas portadoras de limitação visual*. Dá exemplo de pessoas que superaram limites e desempenharam seu mister com eficiência e extraordinariedade. Faz um alerta para o perigo da super proteção às crianças cegas, e da visão de que os cegos têm poderes sobrenaturais. Por fim, propõe mudanças de postura para com as pessoas portadoras de limitação visual, e destas perante si mesmas e o mundo que as cerca, tendo como base a diferença entre limitação e deficiência e a crença na potencialidade e diversidade das pessoas.
QUESTÃO DE POSTURA OU DE TAXONOMIA?
UMA PROPOSTA Mas o que é deficiência? Consoante Lobo (apud Rodrigues, Leitão e Barros, orgs, 1992, p.113), "Deficiência não é senão uma característica valorada negativamente em função de uma norma de eficiência que lhe serve de padrão". Assim, os cegos, sob essa égide valorativa de eficiência, são considerados "deficientes", isto é, aqueles cuja eficiência é falha, insuficiente, e não tem como ser vencida, superada. Entendendo que o cego não sofre de falta de eficiência, postulamos que esse indivíduo não é deficiente, porém está temporariamente limitado para fazer algo. Cremos que na limitação, momentaneamente, não se pode fazer algo, mas que se podem buscar meios para superar, vencer, quebrar limites, expandir, ampliar horizontes, levando a barreira limite para mais distante do ponto anterior. Trata-se, aqui, da diferença entre o ser e o estado da pessoa humana. Não estamos falando de mera criação de novo termo ou de nova taxonomia de pessoas com esta ou aquela diferença sensória, física, cerebral ou mental. Na prática, é uma questão de postura mais que de nomenclatura. Quando tratamos de limites, esses, de um modo ou de outro, podem ser superados. E se não o forem, no momento, não devem constituir motivo de desânimo e, muito menos, de desistência, pois o homem é naturalmente limitado em suas relações e nem por isso deixa de tentar superar seus limites. Vide o exemplo do pianista João Carlos Martins**, que, após uma história de acidentes, envolvendo-lhe a capacidade motora das mãos e braços (lesão no braço direito, em 1965; síndrome de movimentos repetitivos, em 1979; hematoma cerebral e paralisia parcial, decorrentes de um assalto que sofreu em 1995, a ponto de seu desempenho ao piano ter sido considerado errático, o que o afastou do instrumento por dois longos períodos de oito anos) não desanimou e, com o incentivo do pai nonagenário, com auxílio de fisioterapia e de uma reprogramação das funções cerebrais da fala e da digitação, superou sua limitação física, voltando a tocar piano e tornando-se o único pianista a ter gravado a integral de Bach para o teclado . Tal façanha só foi possível após ter o pianista sido submetido a um tratamento em um dos maiores centros neurológicos do mundo -- o Jackson Memorial, nos EUA. Contudo, João Carlos Martins não preservou o completo controle motor do antebraço direito para as atividades mais simples, às quais teve de readaptar-se (aprender, por exemplo, a escrever com a mão esquerda) e ficou com uma seqüela permanente que o esgota. Obrigou-se, pois, a uma verdadeira "dieta do silêncio": todas as vezes em que toca ao piano, João Carlos Martins tem de ficar pelo menos três horas sem falar, antes da apresentação. Como vemos, pois, as limitações de hoje poderão, no futuro, ser suplantadas, fisiológica ou tecnologicamente. Por exemplo: uma garotinha de 7 anos de idade pode trazer nas mãos um quilo de trigo, da padaria até sua casa, com a mesma eficiência com que seu pai traria cinco quilos de açúcar. Porém, nem o pai conseguiria trazer nas mãos cinqüenta quilos, nem a filha dez. Dentro de suas limitações (força física, por exemplo), tanto a garotinha quanto o pai podem desempenhar eficientemente sua tarefa. Mais ainda, dando-lhes condições extras (um carrinho de mão por exemplo), ambos poderiam superar seus limites, uma vez que não são deficientes, mas estão limitados quanto à força física. Destarte, da mesma forma que hoje a garotinha não pode carregar cinco quilos de trigo, mas poderá fazê-lo no futuro, quando adulta, seu pai (hoje no vigor da força física) pode carregar cinco quilos de açúcar, porém talvez não possa fazê-lo no futuro, quando se tornar um ancião. O homem, com o avião, criou asas; com o guindaste, tornou-se Hércules; com a imprensa, rádio, televisão e redes internacionais de informática, tornou-se onisciente; e quiçá, no futuro, com a clonagem, tornar-se-á um demiurgo. Disso decorre o fato de a sociedade estar muito mais acostumada e propensa a lidar, elaborar e aceitar as limitações do que as deficiências. Daí que, enquanto postura, defendemos a inexistência da deficiência ou da pessoa deficiente. Assim, o que seria para muitos uma deficiência, segundo a postura por nós preconizada, nada mais é do que uma mera limitação. Por exemplo: poderia uma pessoa privada do movimento das pernas e dos dedos da mão pintar uma tela com um pincel? Não! Responderiam afoitamente os defensores da deficiência. Sim! Afirmamos nós: vide Renoir***, que, tendo a limitação física descrita acima, a superou, bastando, para tanto, que alguém lhe afivelasse o pincel à mão para que ele pintasse nas telas os mais alegres quadros de sua vida, mesmo com a intensa dor de que padecia. Logo, há uma diferença teórica -- quanto à semântica -- e uma diferença prática -- quanto à postura de pesquisadores, educadores, responsáveis ou mesmo das próprias pessoas portadoras de limitação, no presente artigo, visual -- em relação ao uso dos termos deficiência e limitação. Incentivando-se essa postura, por exemplo, os indivíduos portadores de limitação visual, buscarão, como os demais, portadores de visão normal, superar suas limitações, não restritas à limitação visual, a qual é mais uma, e não a única, dentre as limitações inerentes à condição humana. Todavia, para que haja uma mudança de postura é preciso informação, educação formal, e muito conhecimento e convencimento da sociedade, em geral, e dos próprios sujeitos portadores de limitação visual, em particular. Entretanto, em uma sociedade onde pouco é feito pela educação social (não se implementam planos educacionais que realmente dêem aos cidadãos senão a condição de assinarem o nome, ao que chamam de alfabetização), em uma sociedade, cujo governo considera que um salário de 65 dólares é digno e suficiente para o sustento pleno de uma família, incluindo-lhe educação e lazer; ainda menos é feito em relação à educação especial e observância às necessidades especiais de indivíduos portadores de limitações sensoriais ou não, tanto nos primeiros anos de escola, quanto em anos mais avançados como na Universidade. O fato é que mesmo aqueles que se prestam ao trato de pessoas portadoras de limitação sensória, física, mental ou cerebral não têm respaldo financeiro ou mesmo técnico e teórico devidos. Em cursos Universitários, cujos alunos primordialmente vão para o ensino de rede pública ou particular (eg. Letras, Pedagogia, História, Matemática etc), não são oferecidos sequer pequenos cursos sobre o código Braille ou sobre o código de sinais para surdos. Professores Universitários de cursos que pretendem trabalhar com a diversidade, a diferença e as minorias, como cursos de Psicologia, Serviço Social etc, muitas vezes sequer têm noção de como lidar com um portador de limitação sensória ou física, quando se deparam com ele em sua sala, quanto mais oferecer subsídios para que seus alunos venham fazê-lo. Também alunos de cursos preparatórios para prestação de serviços a uma grande quantidade de pessoas (como Arquitetura, Biblioteconomia etc), muitas vezes recebem instruções inadequadas e cheias de vieses sócio-culturais, e mesmo científicos, que refletem o despreparo de seus mestres. Mesmo porque a própria literatura que esteia esses cursos são responsáveis por divulgar esses mesmos vieses.
Kussrow e Roshaven (1996), ao criticar o atendimento "igualitário" (i.e. a não observância do
tratamento diferenciado a pessoas diferentes), oferecido a pesquisadores e estudantes universitários,
afirmam:
Posto, então, que o "diagnóstico" nos apresenta claro à vista, e à mente, parece-nos óbvio
propor e crermos que uma mudança na postura das pessoas portadoras de limitação visual, e dos
videntes para com elas (entendendo-as como pessoas portadoras de limitação, com potencial e não
deficientes), propiciará buscar, em conjunto, meios pelos quais sejam superados seus limites e
alcançada sua cidadania, de maneira plena e sem paternalismos, porém com observância de suas
necessidades e idiossincrasias, oferecendo àqueles indivíduos tratamento diferenciado, a fim de os
igualar em direitos e deveres, promovendo não só a justiça legal, mas também social e humana. Pois
como afirmou Dunn (apud Kussrow e Roshaven, 1996)
"Nada pode ser mais desigual do que tratar os indivíduos como se eles
fossem iguais em todos os aspectos"
HELLER, M. A. - Haptic perception in blind people.
In The psychology of touch (pp. 239-261). M.
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In: Research and Reflection. December, 1996. Volume 2. Number 2.
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1988.
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PORTO, R. - O B-a-Bach do gênio maldito. In: Revista Bravo, fevereiro de
1998.
Notas * Entenda que uma pessoa com limitação visual total ou parcial não é "deficiente físico", mas sim portadora de limitação sensorial. ** Cultuado nos EUA, o nome de Martins passou a figurar na Gallery of Artists, uma lista de compositores e intérpretes selecionados pela Classical Insites, associação americana, para o Hall of Fame e Perfomance Center Spotlight (ver Regina Porto, O B-a-Bach do gênio maldito, Revista Bravo, fevereiro de 1998). *** Ver Renoir, de Walter Pach, Thames and Hudson, 1984, página 13.
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