Meus contos.


OS CEGOS E O BANQUETES DOS RATOS

*** O belo e tradicional prédio do Instituto Benjamin Constant, de aspecto colonial, tem em posição oposta na avenida Pasteur, o Iate Clube do Brasil, o mais aristocrata clube social do Rio de Janeiro. Neste tradicionalíssimo clube , historicamente, desfila a "nata" da fulgurante sociedade carioca. Além da pompa, o Iate Clube se destaca pelo extremo rigor na selecao de seus sócios, uma verdadeira "malha fina", na qual os pré-requisitos contemplam exclusivamente a elite aristocrata da antiga corte brasileira. O mestre Isauro Cardoso, um inesquecível e festejado professor de minha época de estudante, costumava nos brindar com histórias que davam uma idéia do rigor seletivo deste clube. Contava ele que Roberto carlos, no auge da fama, fora ao Iate clube com a intenção de associar-se, apresentou os dados pessoais e precisou aguardar dois meses para saber se fora aceito pela renomada agremiação. A proposta do "rei" foi rejeitada sem qualquer explicação. Para o mestre Isauro, os diretores do Iate Clube, após analisarem os dados pessoais do "rei" popular concluíram: -Não vamos aceitar o Roberto Carlos como sócio porque ele não tem tradição familiar e, depois, ele vai querer trazer o Erasmo que vai trazer o... Este reduto da outrora dominante elite aristocrata carioca costuma oferecer banquetes sultânicos para o seleto quadro associativo. Nestes eventos, geralmente, apresenta-se uma estrela da música popular brasileira ou então algum astro internacional. Nestas ocasiões, automóveis importados de vários modelos ficam estacionados na parte externa do reduto. Estes carros brilham ao longo das ruas e ostentam o poder e a força da grana. Superlotam também as calçadas do Instituto Bejamin Constant, o que causa muitos transtornos aos cegos que tranzitam na area. Os milionários membros da agremiação usam e abusam das calçadas, ignorando completamente a fachada do educandário que exibe com destaque a inscrição "Instituto de Cegos". Quando eu era aluno do Instituto, ficava irritado com esta conduta ostensiva que despertava diversas formas de reações em todos nós. Ao saírem do colégio, alguns colegas desferiam bengaladas por todos os lados até pegarem o rumo, pois viam-se cercados de carros que lhes impediam a passagem. Outros arrancavam as antenas dos importados para dar vasão à revolta. Os mais encolerizados costumavam urinar sobre os carrões, quando não faziam coisas piores. Meu colega de saída, um jovem com visão subnormal, ficava possesso quando, ao sairmos para um giro, deparávamos com os luxuosos carrões, irresponsavelmente estacionados ali. Ele vaticinava: -Quando voltarmos, a rua estará mais tranqüila e daremos um trato nestes carangos! Era tiro e queda. Na volta, quando os gatos ja eram pardos, alguma desgraça recaia sobre uma daquelas maravilhas tecnológicas. Certa vez, saímos para visitar a Rita e suas meninas (uma indelevel lembrança daquela época), quando nos vimos cercados de carros, cada um mais lindo que o outro. Fulo da vida, meu companheiro deu vários bicos para os lados e falou: -Aquele mercedes azul, perto do orelhão, se ainda estiver ali na volta, vai pagar pela imprudência destes burgueses abusados! Dito e feito! Voltamos completamente mamados e meu amigo com seu resíduo de visão, deu uma olhadela nos arredores, elogiou a orquestra que animava o banquete no Iate Clube, riscou com um arame a lataria de um belo mercedes azul e esvaziou os pneus. ão se deu por satisfeito e quebrou os vidros com uma pedra, desceu as calças, direcionou a bunda pelo buraco feito na janela e fêz aquilo que voces estão imaginando. ... Havia um professor do Instituto que jurara combater aquele abuso da aristocracia do Iate Clube. Era o professor Napoleão que morava em uma vila ao lado do educandário. Ao sair do trabalho, diante do cerco dos carros, dizia um monte de palavroes, ficava de quatro e pacientemente esvaziava os pneus dos automoveis. Certo dia, diante da mesma situação, ele, sem perder tempo, proferiu um discurso de ataque à sociedade, espinafrou o governo, agachou-se e passou a esvaziar os pneus. Algum tempo depois, quando o gordo mestre trabalhava com avidez, os pneus de um elegante jaguar, abruptamente, um motorista apressado ligou o carro e arrancou à toda. Propositadamente ou não, o incauto quase arrancou a cabeça do aguerrido mestre. A partir deste dia, o companheiro de infortúnio passou a atacar a aristocracia carioca com mais ímpeto, porém, através de discursos e dos jornais. O engraçado é que, numa cumplicidade ideológica, costumávamos considerar aqueles atos um ataque velado à "camarilha dominante", pois vivíamos os anos de chumbo. Em minha fúria de opositor do regime, comparava aquelas festas do Iate Clube do Brasil a uma espécie de "banquete dos ratos". Ao ouvir os acordes da orquestra, na janela do dormitório, imaginava ratos e ratazanas, girando numa dança sem fim, enquanto lá longe, a plebe esquecida entoava seu canto triste. -- Valdenito de Souza (setembro de 1998) ***


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