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Mempo Giardinelli diz que deve à literatura brasileira ter se tornado o escritor que é hoje

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''A violência é provocativa''

Em duas novelas, o argentino Mempo Giardinelli explora o lado sombrio da realidade

Mempo Giardinelli diz que deve à literatura brasileira ter se tornado o escritor que é hoje

O escritor argentino Mempo Giardinelli é velho conhecido dos brasileiros. É dele a história por trás da minissérie Luna caliente , levada às telas em 1999. A novela - novela, sim, não romance, dividida em partes como se fossem capítulos - chegou ao Brasil em 1985, editada pela L&PM, contando o perverso envolvimento de um homem maduro com uma adolescente, filha de amigos, com um final trágico. Agora, essa trama mirabolante ganha uma nova edição, acompanhada de outra novela mais recente, O décimo inferno , (Record, 253 páginas, R$ 30), que também gira em torno do eixo da violência urbana, refletida nos atos macabros de um casal, para quem a a criminalidade acaba se tornando quase incontrolável. Mempo Giardinelli esteve no Rio na semana passada, quando veio dar uma palestra no Instituto Cervantes. O autor falou então ao JB sobre a sua obra (são nove romances, entre eles Impossível equilíbrio , O céu em minhas mãos e uma série de contos e ensaios), e também sobre a vida de um escritor na Argentina, e a sua devoção pela cidade natal, Resistência, na província do Chaco, fronteira com o Paraguai, sua ''pequena propriedade espiritual''. Giardinelli falou ainda acerca de sua afinidade com a literatura brasileira: ''Os escritores brasileiros foram constitutivos do autor que sou hoje'', contou. - O elo de ligação entre as duas novelas de seu livro - O décimo inferno e Luna Caliente - é a violência, que muitas vezes surge como algo inevitável. Por que a ênfase no tema? - Luna caliente fala da violência nos anos 70 e se relaciona com a violência dos piores tempos da ditadura na Argentina. É sobre a ditadura irracional do poder. Foi editada pela primeira vez pela L&PM, em 1985, com grande êxito. Agora, trata-se de uma reentré nos anos 2000. A história já é bem conhecida no Brasil e chegou a virar minissérie. Nela, a violência é a protagonista em si mesma. Trata-se de uma história de perversão. Já o Décimo inferno , foi escrito em fins dos anos 90 e é ambientada em uma Argentina democrática, mas com muitos problemas. A novela é uma alegoria da violência irracional do período Menem, do cinismo que chegou a um ápice, à corrupção e, obviamente, à violência institucionalizada. Acho bastante interessante que ambas sejam publicadas numa edição já que têm como fio condutor a violência. - Muitos escritores contemporâneos têm feito o mesmo caminho: trazer a violência urbana para dentro das obras. Deixar de falar da violência na literatura hoje seria alienação? - Não, claro que há opções. A violência é matéria rica em termos literários, assim como o amor, a morte e a filosofia. Penso que, no meu caso, o contexto social não é protagonista per se , mas pano de fundo. Veja, em Décimo inferno , não há uma só citação direta ao menemismo, mas o bom leitor pode adivinhar este background , sabe onde está a violência social. Um casal de namorados, muito apaixonado, chega ao crime, que acaba se tornando uma repetição permanente. Não há menção ao contexto político social, mas ele está presente e explica a violência individual. - Observa-se que em Décimo inferno você escreve na primeira pessoa enquanto que em Luna caliente , em terceira. Em qual delas você se sente mais à vontade? - A troca de ponto de vista tem muito a ver com o meu desenvolvimento literário. Quando eu escrevi Luna caliente, entre os anos 70 e 80, era muito jovem e a escrita na terceira pessoa era uma forma de praticar um certo classicismo narrativo que herdamos de Faulkner, Hemingway, García Márquez etc. O narrador era onisciente, marcando todos os passos da obra. Na evolução do trabalho literário, escrevi nove romances, muitos contos e ensaios. Hoje tenho 55 anos e 30 de experiência literária. Pouco a pouco, tenho usado a primeira pessoa, que é muito mais comprometida com o texto e pode conhecer muito mais de perto os mais profundos pensamentos dos personagens. Mas a literatura é uma prova constante, um ensaio eterno. - Sua cidade natal, Resistência, é freqüentemente o cenário de suas histórias. O que mais o inspira no lugar? - Em primeiro lugar eu não acredito na inspiração. Se ela existe, vai me encontrar trabalhando na frente do computador. O que marca a preferência à terra natal é o sentido de pertencer. É como se fosse uma pequena propriedade espiritual. Minha memória e minha fantasia estão sempre ligados à terra de origem. Mas não há nada de original nisso. Jorge Amado fez isso de forma extraordinária. - Quando se pensa em literatura argentina, a primeira imagem é sempre Buenos Aires. Nos seus livros, você revela um lado que poucos leitores fora do país conhecem. - Sim, somos um país grande, com muitas geografias e, obviamente, com muitas geografias literárias. Sou do Chaco, terra subtropical, quente, perto da fronteira com o Paraguai e por isso com características muito próprias. - Os críticos costumam dizer que sua literatura é cinematográfica. Que elementos do texto, na sua opinião, facilitam a transposição para as telas? - Não tenho a menor idéia. É surpreendente para mim quando um crítico diz isso. Não sei, é uma causalidade. Quando escrevo, não tenho olhos para o cinema; os dois pés estão no chão da literatura. Se a obra provoca uma leitura cinematográfica, ótimo. Mas não há técnica. - Você e Rubem Fonseca têm afinidades literárias: ambos trabalharam muito com o tema da violência urbana e ambos escrevem obras que se adaptam bem ao cinema. Você conhece os livros dele? - Tenho uma profunda admiração por Rubem Fonseca, que é um dos grandes escritores brasileiros. Mas a questão da violência é um tema amplo: muitos escritores da América Latina, como México, Chile e Uruguai, estão fazendo o mesmo caminho. O fato é que a violência do sistema é provocativa, cria injustiça social, desníveis sociais. Tudo é muito complexo. Os escritores fazem a leitura da realidade misturada à fantasia para criar o que não existe. Isso não é uma questão de nacionalidade. A violência da sociedade tem sido rica matéria de trabalho para vários escritores da América Latina. - E quanto à literatura brasileira de maneira geral? Quem são os nomes de que mais gosta? - Amo a literatura brasileira. Ela foi parte constitutiva do escritor que eu sou. Quando eu era criança, na biblioteca da minha casa, Lobato era a grande preferência. Eu simplesmente adorava as histórias de Monteiro Lobato. Depois comecei a conhecer outros autores, como José de Alencar, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Thiago de Mello, que se tornou um grande amigo, muitos outros , como Moacyr Scliar, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Luís Fernando Veríssimo, Tabajara Ruas, que é também de fronteira, de Uruguaiana, etc. Posso estar me esquecendo de algum nome, mas os escritores brasileiros sempre estiveram muito próximos. É claro que eu sou da fronteira, o que facilitou o contato, não sei se o mesmo vale para os argentinos de outra parte do país. - Como estão as condições de trabalho para um escritor hoje na Argentina? O mercado editorial sofreu muito com a cri se? - A Argentina passa por uma crise geral e quase todos os setores foram afetados. Está difícil para o escritor, o crítico, o jornalista, o editor, todos sem exceção. Publicam-se mais livros obviamente. Mas agora estamos pensando que, embora não tenhamos grande ilusão, possa acontecer uma pacificação dos espíritos. Não sei se o governo será capaz de assinalar o caminho, mas temos de dar um pequeno crédito ao governo que está começando. - Os argentinos têm uma tradição de leitura muito superior à dos brasileiros. Isso se modificou? - Temos mais tradição de leitura, mas as tradições também mudam. Espero que não, mas a crise é tão prolongada, já dura quase dez anos, que se tornou altamente destrutiva. [07/JUN/2003] ***


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