ENTREVISTAS SELECIONADAS .


Eduardo Galeano sonhou ser jogador de futebol.

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Nada se compara ao futebol’

Como quase todo menino, Eduardo Galeano sonhou ser um jogador de futebol. Segundo ele mesmo: “Jogava muito bem, era uma maravilha, mas só de noite, enquanto dormia: durante o dia era o pior perna-de-pau que havia visto nos campinhos do meu país”. Melhor assim. Muito melhor assim. Os campos não perderam nada, mas o mundo das letras ganhou um dos seus mais fecundos representantes. Uruguaio de nascimento, latino-americano por devoção e cidadão do mundo por paixão, também por paixão escolheu os alvos de sua pena: a América Latina sempre, com suas dores e delícias, a vida, a história, a memória, a palavra, o fogo, o vento, o tempo... E, entremeado a essas paixões, uma outra, sempre presente em sua obra: o futebol. O reconhecimento, a fama e o lugar cativo entre os grandes autores veio cedo para Eduardo Galeano, hoje com 63 anos. Em 1971, com apenas 31 anos, publicou o clássico “As veias abertas da América Latina”, que impulsionou e alimentou os ímpetos de toda uma geração inquieta. Outros tantos sucessos vieram, até que em 1995 brindou seus leitores e outros tantos com “Futebol ao sol e à sombra”. Era, enfim, a categoria de seu texto a serviço do futebol, dando novos coloridos e tons a velhos personagens e episódios, ressuscitando-os, imortalizando-os. De Montevidéu, segue vendo e amando o futebol. Por sua paixão, aceitou abrir a guarda para uma entrevista, por e-mail, em um período do ano em que se recolhe para escrever. Como todo apaixonado, é mel e fel ao falar de seu objeto de paixão. Mel, ao falar da magia do jogo, dos ídolos. Fel, ao falar de cartolas, dos rumos do futebol-negócio. E como todo apaixonado, é, acima de tudo, arrebatador. Lúcio de Castro Como o senhor vê o futebol na atualidade ? EDUARDO GALEANO: O futebol segue sendo o mais apaixonante dos esportes, até agora não se inventou nada digno de comparação. Quanto ao futebol profissional, o futebol como negócio, parece cada vez mais uma piada de mau gosto. Ricardo Teixeira, elevado à cúpula da FIFA, se ocupa da justiça e do jogo limpo no futebol mundial. Dá para rir? Quem são os craques de sua memória afetiva como amante do futebol? GALEANO: Minha memória afetiva... Dos de antes, elegeria Obdulio Varela, que depois da vitória uruguaia de 50, em Maracanã, passou a noite bebendo nos bares do Rio, abraçado aos brasileiros que choravam a derrota. E os do presente? Quais admira? GALEANO: Dos de agora, fico com as piores seleções do mundo, as últimas do ranking da FIFA, o reino do Butão e a ilha caribenha de Monserrat. Ninguém tomou conhecimento, mas essas equipes disputaram sua própria final do Mundial 2002, ao mesmo tempo que Brasil e Alemanha. Não foi em Tóquio, e sim nos picos do Himalaia. O bom disso é que estes anônimos se divertiram muito, foi uma glória para eles. Recentemente, o senhor escreveu um artigo criticando os rumos do esporte, com sua mercantilização desenfreada, atletas dopados, e os homens transformados em máquinas em busca de resultados. Esse é um caminho sem volta? GALEANO: O futebol profissional não ocorre em outro planeta, e neste planeta as coisas são como são. O que não se vende, se aluga. Assim são as coisas hoje. Mas amanhã não é outro nome para hoje. O futebol profissional mudará se o mundo mudar. E eu ainda acredito que os donos do poder se equivocam quando confundem o tempo presente com o destino. Brasil x Uruguai da final da Copa de 50 ficou na história como um jogo único, cercado de magia, lendas e fantasmas que sobrevivem até hoje com incrível força, em um caso singular através dos tempos. O que fez esse jogo tão especial, qual sua visão sobre todos os acontecimentos e de depois daquele 16 de julho? GALEANO: Talvez tenha sido uma prova da existência de Deus. Ganhamos contra toda evidência, e no fim da partida Obdulio Varela disse: “Se jogarmos cem vezes contra o Brasil, perdemos noventa e nove”. Mas talvez tenha sido, também, uma prova de que a dignidade faz milagres. O Uruguai ganhou, quando estava perdendo, graças à coragem. E cometeu a metade de faltas do Brasil. Naquele tempo, não confundíamos a coragem com as patadas e o jogo sujo. Como lembra alguns dos grandes personagens da final de 50, com seus dramas e glórias, como Barbosa, Bigode, Gigghia, Obdulio Varela? GALEANO: De Obdulio já falei. O outro grande personagem dessa final foi Barbosa. A maldição do goleiro: um só erro o condenou para sempre. Em 1950, ele era o melhor goleiro do mundo, e o seguiu sendo por um bom tempo. Mas nunca foi perdoado. Morreu pobre e só, com a cruz nos ombros. Qual é a memória dos uruguaios sobre aquele jogo? GALEANO: Ali ficamos. Ancorados. Às vezes, a memória atua como âncora, não como catapulta. Desde 1950, vivemos prisioneiros da nostalgia. O que explica a tamanha decadência do futebol uruguaio? Afinal, apenas a crise financeira, a fuga de talentos (as nossas veias abertas!) e a incompetência de dirigentes talvez não sejam suficientes para explicar tudo, já que países como Brasil e Argentina passaram e passam por quadro parecido e ainda assim o futebol segue brilhando. O que houve com o Uruguai? GALEANO: O nosso é um país minúsculo, não somos mais do que três milhões de uruguaios. De algum modo, creio, a quantidade influi. Também a hemorragia: o Uruguai exporta braços e pernas também. Nem bem aparece um jovem que se entende mais ou menos com a bola, e já o compram os de fora. E não há muitos, porque somos poucos. Mas talvez a explicação mais profunda da derrubada está na crise geral do país e na crise da educação pública. Em 1950 se escreveu o último capítulo, mas a etapa mais gloriosa do nosso futebol havia sido nos anos 20, quando ganhamos as Olimpíadas, e o primeiro campeonato mundial, em 1930. Na época, o Estado cumpria uma vigorosa tarefa na educação pública, que compreendia também a educação física. O Estado, que naquele tempo tinha vocação social, estimulava e financiava o esporte popular — e o futebol já era o mais popular dos esportes. Agora, dá vergonha. O Estado, ausente, olha de longe o país decair no futebol e em tudo mais. Tenho esperança, sem dúvida, no novo ciclo que a seleção uruguaia inaugura com Juan Ramón Carrasco, que foi um grande jogador e agora é técnico. Na primeira partida da era Carrasco, o Uruguai recuperou a alegria perdida, cometeu apenas dez faltas e ganhou da Coréia por 2 a 0. Não está mal para começar. E a palavra de ordem veio bem para todos, dentro e fora do futebol: “Parem de sofrer”. O futebol não se firmou nos Estados Unidos, ainda que ídolos tenham jogado naquele país. O que explica essa falta de encantamento? GALEANO: Como dizem os mexicanos: não tem jeito. Os americanos chamam de futebol a um enfrentamento militar que se disputa com as mãos. Do outro futebol, que se joga com os pés e não exige violência, dizem que é o esporte do futuro, e sempre será. Me dá pena por eles. Eles é que perdem.

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A bola na literatura de Galeano No altar de Eduardo Galeano, seus santos de devoção tem nomes muito familiares. Garrincha, Zico, Romário... Todos retratados em seu “Futebol ao sol e à sombra” (L&PM). Assim como o diabo: o futebol-negócio. GARRINCHA: “Garrincha meteu a bola entre as pernas e entrou no arco. Depois, com a pelota debaixo do braço, regressou lentamente ao meio-campo. Caminhava olhando o solo, Chaplin em câmera lenta, como pedindo desculpas por esse gol que pôs de pé a toda a cidade de Florença”. ROMÁRIO: “Romário nasceu na miséria, na favela do Jacarezinho... Subiu à fama sem pagar os impostos da mentira obrigatória: esse homem muito pobre se deu sempre ao luxo de fazer o que queria, freqüentador da noite, festeiro, e sempre disse o que pensava sem pensar no que dizia”. NEGÓCIOS: “À medida que o esporte se fez indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar simplesmente porque sim...Por sorte ainda aparece nos gramados, ainda que seja muito de vez em quando, algum descarado cara-de-pau que sai não se sabe de onde e comete o disparate de desmoralizar toda a equipe rival, e ao juiz, e ao público das arquibancadas, pelo puro prazer do corpo que se lança à aventura proibida da liberdade”. ZICO: “Foi em 1993. Em Tóquio, o clube Kashima disputava a Copa do Imperador contra o Tohoku Sendai. O brasileiro Zico, astro do Kashima, fez o gol da vitória, que foi o mais lindo dos gols de sua vida...Foi uma bicicleta, mas ao contrário. — Me descrevam esse gol — pediam os cegos”. ESTÁDIOS: “Você já entrou, alguma vez, em um estádio vazio? Prove. Pare no meio do campo e escute. Não há nada mais vazio do que um estádio vazio. Não há nada mais mudo que as arquibancadas sem ninguém”.

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