ENTREVISTAS SELECIONADAS .


Por que você escreve?

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Por que você escreve?

André Breton escreveu muito sobre a escrita, a escritura, o escrever. Propôs todo tipo de subversão às belas letras, incitando rupturas, não apenas fissuras, e levantando grandes questionamentos em torno da prática literária. Ao fundar, portanto, a revista Littérature , em março de 1919, com Louis Aragon e Philippe Soupault, o ideólogo do surrealismo levou adiante esta complexa investigação da linguagem, uma espécie de metaliteratura, uma obsessão pela palavra, e o que esta embute quando posta lado a lado, uma à outra, formando significados e bordados impressos da existência. Foi em 21 de setembro de 1919 que esta discussão em torno da questão literária, um poço sem fundo de quereres, estéticas e possibilidades, teve no então jovem poeta Tristan Tzara um alento detonador. Em carta a Breton, um dos fundadores do dadaísmo afirmou: “Se escrevemos, é apenas por refúgio: de todo ‘ponto-de-vista’. Não escrevo por profissão”. Foi o que bastou para os editores da revista lançarem, três meses depois, a célebre enquete: “ Pourquoi écrivez-vous ?”, em bom português, “Por que você escreve?” Diversos foram os depoimentos de romancistas e poetas da época, mas certamente chamaram atenção as respostas mais radicais. O poeta Paul Valéry foi irônico e niilista: jurou que escrevia “por fraqueza”. O escritor norueguês Knut Hamsun foi mais delicado: “Escrevo para abreviar o tempo”. A questão, por sua complexidade e interesse, perpetua-se ao longo das décadas e certamente move autores e intelectuais um século depois — e, provavelmente, por uma eternidade. Por esta razão, e por conta da onda surrealista que ocupa o Rio há mais de um mês, o Prosa & Verso transpôs a pergunta a seis escritores e poetas brasileiros, para lhes desvelar o sentido da escrita, questão quase tão complicada quanto perguntar-lhes o sentido da vida. Mas eles aceitaram responder à abstrata indagação. Os escritores/poetas Antônio Torres, Lya Luft, Ferreira Gullar, Moacyr Scliar, Alexei Bueno e Ivan Junqueira falam do fascínio pelas letras, conforme a profecia de Breton: “O escritor será capaz de responder à queima-roupa a uma pergunta bem simples”. Defensor de uma arte do inconsciente, sem direito a grandes depurações, tampouco decantações, o poeta promoveu diversas enquetes neste estilo, empreendendo jogos que tinham por finalidade ampliar percepções, confrontá-las (especialmente entre artistas e escritores), e suscitar atividades lúdicas. Por exemplo: a edição de 15 de dezembro de 1929 da revista La révolution surréaliste (criada em 1925) também trazia uma enquete famosa: “Que tipo de esperança você projeta no amor?” Abaixo, o resultado da pesquisa “Por que você escreve?” revive esta curiosa prática surrealista, à brasileira. ANTÔNIO TORRES: “Para quem, como eu, nasceu na roça e estava destinado ao serviço braçal, no cabo de uma enxada, de uma estrovenga e de um machado, tornar-se escritor parecia uma possibilidade remota, praticamente impossível. No mundo onde me criei, lá num ignoto sertão baiano, não havia letrados. Nem livros havia. Mas um dia minha mãe — e nem sei que artes do destino a levaram a ser uma mulher alfabetizada — pois um dia dona Durvalice me mostrou um ABC. E, enquanto me dizia como se chamavam as letras do abecedário, eu me encantava com o desenho, com a forma de cada uma. Foi um deslumbramento. Depois veio a cartilha, da qual não me desgrudava, até mesmo de noite, à luz de um candeeiro. Quando fui para a escola — uma escola rural — a professora percebeu o meu gosto pelas letras. E me botou para ler em voz alta um livrinho chamado “Seleta escolar”, que na verdade era uma pequena antologia de poemas, crônicas e contos. Castro Alves, Gonçalves Dias etc. E depois, ela pedia que eu escrevesse uma composição, cujo tema dizia respeito ao nosso cotidiano. Daí começaram a me pedir para escrever cartas, tanto para os apaixonados do lugar que não sabiam ler, quanto para as mulheres dos migrantes. Isso, de alguma maneira, me levou a crer que a palavra escrita era uma coisa encantatória e socialmente útil. Logo, escrever foi o meu sonho de criança. E, até hoje, quando escrevo, sinto que é aquele menino quem o faz por mim. Dá-lhe, garoto!” LYA LUFT: “Escrevo por uma lúdica paixão. Porque nasci para fazer isso. Porque me alegra, me diverte, me instiga — e me exaure. Porque tenho necessidade e prazer em elaborar com palavras esse traçado de tantas vidas, tantas criaturas, tantos destinos e aventuras que povoam minha imaginação, e que acabarão — ou não — vivendo nos meus textos. Quando escrevo, inicia-se essa escavação, essa arqueologia, começa a desenrolar-se o fio que nasce em mim. Aracne, minha fantasia, produz sempre mais novelos para que eu os teça. Escrevo para seduzir leitores que sejam meus cúmplices na inquietação fundamental, na busca de entender o mundo — e jamais o entenderemos. E também escrevo porque desejo uma releitura dos valores familiares e sociais de meu tempo: cada um de meus romances pode e deve ser lido como uma denúncia da hipocrisia, da superficialidade, da indiferença, da negligência e da mentira nas relações humanas, amorosas, familiares e sociais. Os artistas são recipientes de carvões em brasa e têm visões que tentam esconjurar com traços, gestos, música ou palavras — e nesse trânsito entre realidade e sonho, cujas fronteiras para eles pouco importam, vão e vêm entre territórios que igualmente os convocam. Escrevo porque sou parte disso.” FERREIRA GULLAR: “A resposta é a mais simples e óbvia: escrevo para me expressar. Naturalmente, esse “expressar-me” muda conforme as circunstâncias: por exemplo, às vezes escrevo para conseguir pensar claro, já que não consigo fazê-lo sem escrever; às vezes escrevo para contestar idéias contrárias às minhas (e nem publico, só anoto); às vezes escrevo para manifestar meu entusiasmo com uma obra alheia. Quando sou tomado por um “espanto”, que parece revelar-me um lado ainda não percebido do real, tento escrever poesia”. MOACYR SCLIAR: “Escrevo movido por um impulso cuja natureza desconheço (e que não quero conhecer), o mesmo impulso que leva algumas pessoas a desenhar, outras a fazer música, outras a trabalhar a terra. Escrevo pelo prazer de contar histórias — o mesmo prazer que tinham meus pais, emigrantes pobres e soberbos narradores. Escrevo porque sempre admirei a obra de escritores, mas escrevo também pelo prazer lúdico de combinar palavras — o mesmo prazer que sentia em criança quando, na marcenaria de meu tio, fabricava com pedaços de madeira aviões e navios. Escrevo para partilhar com outros idéias e emoções, as duas coisas estando sempre juntas. Escrevo por causa da angústia, a angústia de não encontrar respostas para as grandes questões da vida. Escrevo para não me fazer perguntas. Como esta: por que escrevo?” ALEXEI BUENO: “A humanidade tem o dom de gerar todas as vocações de que precisa, mesmo as mais improváveis, e no número certo. Daí sempre existirem astrônomos, entomólogos, legistas ou poetas, atividades estranhas, na última das quais me incluo. Quanto ao motivo de escrever, como o de criar qualquer arte, há um único: o Amor que move o sol e os outros astros. É preciso sair de si, livrar-se do egoísmo, praga suprema da espécie e forma geral de estupidez. É preciso fazer falar os mortos. É preciso ter mais vidas que a paupérrima vida nossa. É preciso celebrar a fabulosa grandeza do homem e a nossa terrível miséria. Como brasileiro, e para só falar de literatura, muito pouco eu seria sem o finado Brás Cubas, sem o mestre Aristarco, sem a Tróia de taipa dos jagunços, sem o capitão Riobaldo ou alguns milhares de versos que guardo na memória. É esse amor pletórico pelo que não fomos, pelas nuvens, pelas pedras, que nos expulsa do nosso pobre e efêmero eu. Mas para não ser do egoísmo, paradoxalmente, na mais reles civilização hedonista, é preciso ser ferozmente individual. Só o indivíduo de identidade pétrea pode se dar ao luxo de mandar o egoísmo ao inferno nesta sociedade de massas. Tudo isso ordena o Amor que move o universo. O resto é jogo de palavras. Mediocridade.” IVAN JUNQUEIRA: “Escrevo por uma espécie de fatalidade, por um compromisso inarredável com a beleza e porque, tendo que me expressar, vi-me na contingência de escolher o meio mais eficaz em que poderia fazê-lo, e essa escolha recaiu sobre a palavra escrita ou, mais especificamente, sobre a palavra poética, graças ao seu poder de síntese, de encantamento, de musicalidade e de concreção sígnica. Durante algum tempo, entretanto, cheguei a supor que poderia escapar ao jugo e ao fascínio da poesia através de uma expressão mais plástica e visual, ou seja, do desenho e da pintura, mas cedo descobri que jamais conseguiria dizer o que queria por meio das formas, dos volumes e das cores. Acrescento ainda que, pelo menos no meu caso, a poesia não constitui apenas um veículo de expressão, mas também uma forma de gnose, de teoria do conhecimento que não me foi possível adquirir quando, entre os 20 e 25 anos, estudei medicina e, depois, filosofia, disciplinas que em boa hora abandonei para consagrar-me inteiramente à indisciplina e ao tormento da poesia”.

Luciana Hidalgo (extraído do globo)

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