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À SOMBRA DE HEMINGWAY

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À SOMBRA DE HEMINGWAY

Aos 101 Anos, Gregorio Fuentes, o Pescador retratado em "O Velho e O Mar", lembra a vida do escritor em Cuba

Especial para O GLOBO · HAVANA - sábado 14/02/1998 Norma Couri

O "velho" tem 101 anos. Sobreviveu 40 ao escritor que o imortalizou em dois livros e tornou- se monumento em Cuba. Gregorio Fuentes, pescador solitário, o velho de "O velho e o mar" e o capitão Antonio de "As ilhas da corrente", é a memória viva para rota dos anos de Ernest Hemingway em Cuba, antes da revolução. De 1938 até o verão de 1960, Gregorio conviveu com o homem grandalhão, briguento, extravagante. caçador, ex-chofer de ambulância na Primeira Guerra e correspondente na Segunda, que foi parar em Cuba arrebatado pela paixão por galos de briga e um desafio: pescar o marlin azul. Por causa de "O velho e o mar", Hemingway ganhou um Prêmio Pulitzer em 1953 e o Nobel em 54. Hemingway está presente no desenho do boné que Gregorio não tira da cabeça e na fotografia que cobre a parede da pequena casa verde e azul de Cojímar, a dez minutos de Havana, comprada com os US$ 250 mensais que o pescador recebia de "Papa". --Ele distribuía notas de US$ 50 aos pobres da rua, principalmente quando escrevia 1.500 palavras, o dobro de sua meta de um dia--conta.-- Não gosto de americanos, mas matei de sopapo dois fulanos que chamaram "Papa" de mulherengo e bêbado. Cojímar foi cenário de vários contos "Papa" Hemingway era mulherengo ("Ele gostava das ruivas, de cabelo curto", revela Gregorio) e tomava pileques históricos. Gregorio viu tudo, mas era cego de admiração por Hemingway, como acontecia com bodegueiros, com prostitutas, com Fidel Castro e com os pescadores de Cojímar, que rasparam o bronze dos próprios barcos para fazer o busto do escritor quando ele morreu, em pleno bloqueio econômico dos anos pós-revolução. Cojímar foi cenário de contos de Hemingway e de várias edições especiais das revistas "Time", "Esquire" e "Life" sobre "O velho e o mar". A dois quilômetros da rua Pajuela, 209, onde mora Gregorio, fica o restaurante La Terraza, com destaque para a mesa onde Hemingway costumava se sentar. Não para comer. --Ele chegava cedo com a Royal portátil, papel de máquina e meia dúzia de lápis número 2--lembra Gregorio.--Pedia rum Habana Club, uísque Whi- te Horse ou Johnnie Walker e, enquanto me aguardava com o copo sempre cheio que levava com ele, bebia de pé, encostado ao balcão. O restaurante fica em frente à praia onde Gregorio ancorava o barco "Pilar", junto a dezenas de barbatanas secando ao sol. Hemingway ordenava: "Capitão, encarregue-se de prover o departamento etílico!". --Poucas coisas lhe davam tanto prazer: renunciava a um jantar, nunca a uma garrafa, que agarrava pelo gargalo. "As mulheres, pela cintura", ensinava. Na época da lei seca, Gregorio conta que Hemingway contrabandeou da Casa Recalt, de Havana, mil caixas de conhaque, cada uma com 24 garrafas que carregava pela praia Jamanitas e trazia a bordo do "Anita", emprestado pelo amigo Joe Russell, dono de um bar em Key West: --Ele conseguia por US$ 0,40 a garrafa que custava US$ 3,50 nos Estados Unidos. Juntou US$ 4 mil e foi para a África. Gregorio lembra o cotidiano de Hemingway em Cajímar Escritor americano chegou a cravar um arpão no marlin azul, mas o peixe conseguiu escapar depois de 10 horas de luta "O velho e o mar" começa com o companheiro de pesca de Santiago oferecendo-lhe uma cerveja no La Terraza. Quando Hemingway e Gregorio brigaram, o escritor lhe ofereceu vários tragos no La Terraza e lhe disse: "Se você não me perdoar vou queimar 'Pilar', a casa, vou embora de Cuba e não volto" --No trago, ficou tudo bem-- conta Gregorio. Gregorio, o Santiago de "O velho e o mar", foi o pescador que pegou o castero, nome cubano do marlin azul, também chamado de peixe-agulha. O marlin azul é o maior desafio do pescador, obra de macho. Óbvio, Hemingway era fascinado pelo peixe que fervilhava na zona da corrente do Golfo e resistia até 15 horas ao pescador. Depois, não raro, ganhava. O próprio Hemingway cravou o arpão num deles em Cuba, em 1931, e o peixe escapou depois de dez horas de luta. Gregorio conheceu Hemingway durante uma tempestade O marinheiro Gregorio nasceu em Lanzarote, nas ilhas Canárias, mas fugiu menino de um barco que passava por Cuba e nunca mais saiu de lá. A descrição de "O velho e o mar" é real: "O velho era magro e marcado por rugas profundas em seu pescoço. As manchas marrons na pele, do cancer benigno que o sol costuma provocar com seus reflexos no mar dos trópicos, se espalhavam por sua face. As manchas corriam por todo o rosto, e as mãos tinham cicatrizes fundas por já terem segurado tanto peixe pesado nas cordas. Mas nenhuma dessas cicatrizes era nova. Todas eram velhas como erosões num deserto sem peixes. Tudo nele era velho, menos seus olhos, que tinham a cor do mar e eram alegres e nunca haviam sido vencidos". O rosto de Gregorio continua manchado, a pele curtida pelos 70 anos que passou no mar. Já não fuma charutos nem bebe mas--nota-se pelo olhar--ele não foi vencido. --Nós nos encontramos pela primeira vez na Baía de las Tortugas, no Golfo do México, durante uma tempestade tropical. Nossos veleiros se abrigaram no mesmo lugar. Aquele homem imenso gritou que se chamava Ernest Hemingway, que havia partido de Key West oito dias antes e que estava sem combustível e comida. "Estivemos a bordo da embarcação de Gregorio Fuentes com o objetivo de comprar cebolas. Não quis receber dinheiro e ofereceu- nos rum", Hemingway escreveu em "O grande rio azul". --Avisei que só não tínhamos gasolina--conta Gregorio.--Ele alertou-me que eram nove pessoas. "Que sejam 20", respondi, e ofereci comida para todos, deixando duas garrafas de rum nas mãos dele. Hemingway voltou para Key West, e não esqueceu. Dez anos depois apareceu em Cuba, louco atrás de Gregorio. --Mal me encontrou em Cojí- mar, me convidou para ser o capitão de "Pilar" . Nunca se arrependeu. Anos depois dizia que graças a mim "Pilar" foi salva de três furacões. Ele gostava de escrever a bordo quando nos refugiávamos por até quatro semanas em Cayo Paraíso. Dormia, comia tomava banho de mar, corria nu na praia com a mulher e pescava. Eu cozinhava e, se alguém nos incomodasse, mudava de Cayo. Conhecia aquelas ilhas como ninguém. Depois da sesta, Hemingway escrevia até de manhã. "Pilar" foi o iate que Hemingway construiu depois de "Por quem os sinos dobram", e sobre o qual navegou em águas cubanas durante a Segunda Guerra, caçando submarinos nazistas. Com o rum de Gregorio e a dica de outro escritor, John Dos Pasos, Hemingway chegou em 1928 a Key West, ponta final da Florida, para escrever--de pé--na máquina Royal pela manhã, pescar à tarde e criar 49 gatos nos intervalos. Tinha 29 anos, estava divor- ciado de Hadley Richardson e ca- sado pela segunda vez com Pauline Pfeiffer, grávida. Planejava ficar 45 dias. Ficou 10 anos. De lá rumou para Cuba, que ficava a 120 quilômetros. Passou seus 22 melhores anos de escritor. Morava a 20 quilômetros de Havana, na casa de Finca Vigia, hoje museu. Em Cuba escreveu vários de seus oito romances-- parte de "Por quem os sinos dobram", "Através do rio, entre as árvores", "O velho e o mar", "As ilhas da corrente" e o autobiográfico "Paris é uma festa". A mulher já era outra, Martha Gelhorn, e foi trocada pela quarta, a correspondente do "Times" em Londres, Mary Welsh, com quem viveu entre cabeças de bichos embalsamadas, cem mangueiras, flamboyants, 57 gatos, muitos cães além das lápides de quatro (Black, Negrita, Linda, Neron) enterrados no quintal e nove mil livros sobre tauromaquia, caça, pesca, artes militares e literatura. Na piscina, Ava Cardner tomou banho nua. A máquina era a Smith Corona portátil. A bebida, uísque, gim, vermute ou rum. Hemingway imortalizou o daiquiri sem açúcar do Floridita, o mojito da Bodeguita del Medio, e Gregorio Fuentes. "You soy tu y ty eres yo", Cregorio repete as palavras de "Papa". No seu testamento, Hemingway deixou "Pilar", avaliado em meio milhão de dólares, para Gregorio--que, depois da morte do patrão, não trabalhou para mais ninguém. "Cuida-te e cuida de 'Pilar' como só tu sabes", disse o escritor antes de ir embora para os Estados Unidos. --Foram as últimas palavras que ouvi dele--diz Gregorio. Escritor definiu o suicídio como a sua morte predileta Em 1961, com o corpo comido por hepatite, diabetes, hipertensão, sofrendo de impotência, e com a mente tomada pela depressão, pelo terror da perseguição do FBI e pelo bloqueio para escrever, Hemingway manchou a barba branca de pólvora e sangue ao sucumbir à bala da própria carabina de cano duplo que disparou contra a mandíbula--um suicídio cometido num domingo na casa de Ketchum, Idaho, que repetia o de seu pai, seria imitado cinco anos depois pela irmã e, no ano passado, pela neta Margaux. Ele fez de verdade o gesto que costumava fazer de brincadeira, ao definir sua morte predileta. Gregorio permaneceu no porto seguro da sua memória no mar. --Fidel me pediu que contasse as histórias de "Papa" aos estrangeiros que me procurassem, porque ele é o americano mais amado em Cuba--conta. Gregorio também participou da filmagem de "O velho e o mar", no Peru, e é constantemente consultado por autores de romances, ensaios ou documentários. Dos recuerdos de "Papa", seu maior orgulho continua sendo aquele que Hemingway deixou no Santuário da Virgem do Cobre, prova maior de gratidão a Cuba e a ele próprio: a medalha do Premio Nobel por "O Velho e o Mar". 'O velho e o mar' já vendeu 500 mil exemplares no Brasil Autor anunciou o suicídio em Cuba · Lançado em 1952, o romance "O velho e o mar" já vendeu cerca de 60 milhões de exemplares nos mais de 40 países em que foi publicado. Só no Brasil foram 500 mil, em 41 edições da Civilização Brasileira, com tradução de Fernando de Castro. O livro valeu a Hemingway o Prêmio Pulitzer em 1953 e teve importância decisiva para o Nobel no ano seguinte. Não é exatamente o livro mais movimentado de Hemingway. A luta do pescador Santiago com o marlin azul consome 100 das 120 páginas do romance. Trata-se de uma luta metafórica, é claro: nas entrelinhas, Hemingway discute o significado da vida e a importância de se ter algo por que valha a pena lutar. Mas o próprio autor se referia com reservas ao livro, na época do lançamento: "Por que alguém se interessaria pela história de um velho fracassado?", He- mingway se perguntava. "O velho e o mar" ganhou duas adap- tações no cinema: a primeira em 1958, dirigida por John Sturges e protagonizada por Spencer Tracy; a segunda, bem inferior, em 1990, com Anthony Quinn no papel principal. Foi em Cuba, onde viveu durante 22 anos, que Hemingway anunciou que ia se matar. Chegou a encenar o gesto para alguns amigos, apoiando o dedão do pé no gatilho de seu fuzil sem balas. Após o estalido, ele sorria e comentava: "O céu da boca é a parte mais suave da cabeça". ***


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