CONTOS SELECIONADOS.


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O CARIMBO

" Um livro aberto é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera; esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora.". ( Tagore) Um dia na semana, sob o comando da mestra, em fila dupla, entrávamos na biblioteca para exercitar o "nobre" hábito da leitura. Na visita inaugural, a professora fez um eloqüente discurso: - Os livros são fontes de sabedoria! Vocês devem ter muito cuidado com eles! Os livros de nossa biblioteca são patrimônio da nossa comunidade! Não podem ser levados para casa! Em caso de "desvio" de um livro, a direção será rigorosa! Em seguida, fomos calorosamente recepcionados: Gato de Botas, Branca de Neve e seus amigos, Cinderela, Gulliver, Pequeno Polegar, Lobato e seu pessoal, Júlio Verne, Robin Hood e seus camaradas, Robson Crusoé, e tantos outros... Aguardava ansiosamente aquele encontro das sextas-feiras após o recreio (duas horas de leitura) com os clássicos da literatura infanto-juvenil. Numa destas visitas à biblioteca, olhei com mais atenção o exemplar do Robin Hood, o cavaleiro rebelde que, com astúcia, destreza e muita coragem, desafiava a autoridade do monarca da Inglaterra em prol dos menos favorecidos do reino. Na capa, artisticamente trabalhada, aparecia a figura do herói em posição ereta ao lado do seu cavalo (um imponente corcel de cor cinza com uma estrela branca incrustada na testa). Numa mão retinha as rédeas do animal, noutra, segurava seu arco; às costas trazia a aljava repleta de flechas. Na cabeça o inexpugnável boné verde com uma pena branca. A força da estampa do herói, sua expressão - irradiando liderança, bravura e determinação - inspirava admiração e impunha respeito. - Não leiam o livro pela metade; caso não chegue ao final da história nesta aula, marque o ponto onde parou para continuar na próxima aula de leitura; jamais devemos interromper um livro pelo meio! - dizia a mestra, que de sua mesa vigiava a turma. As visitas se sucederam, e com elas o fortalecimento do meu apetite literário.A figura do "príncipe dos ladrões", que com suas escaramuças atormentava o monarca e seus sequazes, passou a freqüentar meu imaginário. Foi assim que brotou no meu espírito a idéia do " furto". Naquela sexta-feira, ao entrar na biblioteca, trazia a decisão tomada: peguei o volume que narrava as "façanhas" do indomável arqueiro do Reino Unido e fui sentar no fundo da sala. Coloquei a pasta no interior da carteira, dei um primeiro olhar na configuração da sala (posição dos colegas e da mestra), em seguida, após contemplar o cavaleiro de Sherwood por alguns minutos, abri o livro e simulei a leitura. Pelo canto do olho perscrutava o ambiente, fazendo avaliações, esperando o momento adequado para enfiar o livro na minha pasta. A disposição das carteiras, ligeiramente afastadas umas das outras, formando um grande círculo em torno da sala, bem como as estantes repletas de livros dispersas no centro do círculo, favoreciam meu "projeto". Entre os colegas, uma minoria sentia entusiasmo pela "aula de leitura". Os demais ficavam em animados bate-papos. Na minha carteira continuava sondando, buscando o momento adequado: à direita, Demétrio (o caçula da turma), lia Júlio Verne; à esquerda, o Barata conversava com sua vizinha de carteira, uma lourinha sardenta de nome Carla. Concentrava minha preocupação em duas pessoas: a professora, chamada Odete, atenciosa, afável, mas que tinha fama de ser muito rigorosa; e o Dioclécio (um magricela arredio, com uns olhos de gato; tinha doze anos; era o mais velho, o mais alto e o mais detestado da turma), com o qual já havia discutido por questões de papagaio, figurinha e futebol. Na minha carteira, apreensivo, continuava minha observação. Disfarçadamente, olhei para a mesa da mestra, que, agora compenetrada, lia Victor Hugo com tal interesse que nem fazia caso da escola. Dioclécio olhava para os lados com aquele seu jeito desconfiado. Meu coração acelerava o ritmo, eu ardia de curiosidade; voltei a olhar para o Dioclécio e vi que parecia atento. Podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; o tal sujeito tinha um que do diabo. Disfarcei novamente, metendo o nariz no livro, e continuei a ler. Fui tomado por uma sensação esquisita: por aquele tempo, eu ainda não dava o peso devido à "virtude" nem à "mentira". Relanceei os olhos pela sala novamente, e dei com os do Dioclécio em mim. Pareceu-me que ele me observava, mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho e - talvez obcecado pelo projeto, - não lhe vi mais nada. Então recobrei ânimo. Sorrateiramente, meti o livro na pasta com um alvoroço que não conseguiria descrever. Cá estava ele comigo. De repente, voltei a olhar para o Dioclécio e estremeci: tinha os olhos em mim, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei, mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito. Depois tornei a olhar para o Dioclécio e o riso, dantes mau, estava agora medonho... No meu lugar, eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse. Mas o relógio parecia conspirar contra mim. Afinal o apito estridente da sirene, anunciou a hora de sair, e saímos. Na rua, passamos um pelo outro: nos entreolhamos, mas rapidamente desviou a cara. Seguiu adiante, apressado.Quando cheguei à esquina, já sumira. Caminhei para casa, ia apalpando o livro por sobre a pasta, com uma grande vontade de espiá-lo. Em casa, tranquei-me no meu quarto, admirei a estampa do meu herói por um bom tempo. Depois, puxei o caixote debaixo da cama e pus o belo exemplar ilustrado entre as revistas esportivas e os quadrinhos, sem nenhum ressentimento na alma. Depois do almoço e do breve descanso, como sempre, labutei nos deveres da escola, sob a vigilância "velada" de minha mãe. À tardinha, no fundo do quintal, à sombra da mangueira, eu lia entretido o mais novo exemplar de minha humilde biblioteca, quando minha mãe da cozinha gritou que lá fora havia um "garoto" querendo falar comigo. Pedi que mandasse ele dar a volta e vir ter comigo no quintal, e continuei com a cara metida no livro. Depois de alguns minutos, ao sentir uma presença ao meu lado, tirei os olhos do livro e dei com o Dioclécio em pé à minha frente: - Fala "pixote" - disse ele, fitando-me com aqueles olhos meio cinza e meio esverdeados, que sempre me lembrava os olhos do Tibério (nosso gato de estimação, um vistoso exemplar da raça angorá). O inusitado daquela presença, com quem mantinha relações pouco amistosas, me pegou de surpresa. Procurando me refazer, emiti sem entusiasmo um: - Oi Dioclécio. O tipo olhava bem nos meus olhos e, em seguida, desviava o olhar para o volume ilustrado que eu deixara ficar no colo. Passou uns bons minutos neste exercício (meio interrogatório, meio acusação), então tive certeza que vira tudo... No meu lugar, imóvel, senti meu sangue gelar e desviei os olhos. Senhor de si, Dioclécio insistiu em segurar meu olhar e, com um sorriso malicioso, deu dois tapinhas no meu ombro e falou com aquela sua voz ligeiramente fanha: - Pixote! Tu és mais esperto do que eu pensava! Em seguida agachou-se ao meu lado, pegou o livro no meu colo e começou a virar-lhe as páginas, deixando-se deter nas figuras. No meu canto, refém do medo, cônscio da situação em que me metera, tentava organizar as idéias e buscar uma saída. - Olha isto aqui, Pixote! - a voz dele me trouxe de volta. Dioclécio, com o livro aberto na última página, apontava para a parte interna da contracapa, onde via-se o carimbo do grupo escolar Maciel Monteiro (duas letras "m" entrelaçadas em destaque, caprichosamente desenhadas), que na minha euforia não vira. - Se qualquer pessoa ver isto, vai saber logo que tu afanou isto do Maciel Monteiro! É melhor tu sumir com isto, basta passar um bocado de tinta neste lado da contracapa! Colocou o livro de volta no meu colo. A calma e segurança dele impunham-me respeito. Ergueu-se, caminhou um pouco, parou e relanceou o olhar pelo quintal. Só então, percebi que estava sem camisa, usava uma calça azul-marinho bastante surrada e calçava um par de tênis velhíssimos. Voltou-se e botou novamente seu olhar de bichano em mim: - Carlinhos me contou que tu completou teu álbum de figurinhas do campeonato nacional, é verdade Pixote? - Sim, verdade - respondi, estranhando a pergunta. - Sabia que só você completou até agora? - Sim, só me faltava a figurinha do Pelé, acabei conseguindo - respondi, fingindo uma calma que não tinha. Dioclécio começou a caminhar, circulando ao meu redor, de vez em quando olhava para os lados, para certificar-se de que estávamos sozinhos. Depois falou: - Vamos fazer um trato, Pixote? Um trato de homem para homem! Agora seu aspecto era outro: trazia a testa franzida, o que lhe dava um ar de seriedade. Meu coração voltou a bater muito. - Trato de quê? - quis saber. - Seguinte... Tu sabe que eu vi... Tu sabe que eu sei... Tu sabe do que falo... Por isto, te proponho um acordo. O olhar firme e duro, sempre buscando o meu: - Você me dá a figurinha do Pelé que falta para completar meu álbum e aquele soco inglês, e assim... não vi nem sei de nada! Levei alguns minutos digerindo e avaliando a proposta, depois ponderei: - Como vou arrancar a figurinha? Está bem colada. - Deixa comigo, basta você trazer o álbum, sei como fazer isto! - Mas o soco inglês... Não é meu e sim do meu irmão! - Problema teu! Dá um jeito nisto! Ficamos em silêncio, eu de olhos no chão, coração aos pulos, mergulhado num turbilhão de dúvidas e incertezas; sentia sua presença ao meu lado, tranqüilo, aguardando minha adesão. - Então Pixote?! Esta é a minha proposta. Tens até o domingo à tarde para decidir. Não esqueces do que falou Dona Odete... Agora preciso ir, tenho coisas a fazer! Nossos olhares voltaram a se cruzar.. Em seguida, ele deu um leve tapa no meu peito: -Pensa nisto, negócio de homem! Fica tudo entre nós... Até domingo, Pixote! - e caminhou com passos decididos em direção ao portão. Naquela noite, com a alma atormentada, em conflito com aquele sentimento, o qual não conhecia e depois de muito debulhar minha aflição interiormente, resolvi esperar o sono embriagando-me com as aventuras de Robin Hood e seus camaradas. O sono chegou, rendeu-me, e entregou-me a um pesadelo.... Lá estava eu de volta à biblioteca da escola, no momento crucial da "operação ilicita", quando: - Que coisa horrível, seu Souza! - bradou a mestra com voz esganiçada. Estremeci e levantei-me às pressas. Dei com a mestra olhando para mim, cara fechada, e ao seu lado, junto à mesa, em pé, o Dioclécio. Adivinhei tudo. - Venha cá! - ordenou a mestra, cada vez mais encolerizada. Fui e parei diante dela. Nesta altura, acordei. Após me refazer do susto, tomei consciência e lembrei-me que era sábado. Por sinal, um lindo sábado ensolarado: dois dias de folga da escola, estava à mercê dos folguedos... Naquele fim de semana bem que tentei acompanhar os amigos nos banhos de rio, nas peladas com a bola de borracha, mas não conseguia desvencilhar o pensamento da situação em que estava metido, e a toda hora me via diante do Dioclécio ratificando sua proposta. - Que houve contigo que andas tão acabrunhado? - quis saber minha mãe na hora do jantar. - Nada, não tenho nada. - falei de dentro do meu inferno particular. - Pensa que a gente não percebe... Estás escondendo alguma coisa! À noite lutei contra a insônia e, quando fui dominado pelo sono, me debati nas malhas de um novo pesadelo: era hora do recreio, me encontrava acuado contra o muro do pátio da escola, enquanto, um bando de colegas, liderado pelo Dioclécio, gritava: - Gatuno! Gatuno! Gatuno! O pesadelo, que durou mais que o anterior, acabou com meu linchamento. Acordei, levei um tempo para me refazer, abri a janela e vi que fazia um lindo domingo de sol. Gastei meu domingo recluso em meu quarto, com a alma submissa ao conflito. Viajava nas páginas coloridas junto com Robin Hood e seus amigos, entre uma e outra aventura, desafiando o poder do monarca. Encarava a figura do herói rebelde e me imaginava recebendo dele uma "dica" para sair daquela situação em que me encontrava enfiado, mas a alma cada vez se afligia mais. À tardinha, convicto de que o Dioclécio viria, fui sentar à sombra da mangueira para esperá-lo. Na hora marcada, ele apareceu lá em casa e foi ter comigo. - Então Pixote... Tudo arrumado? Novamente sem camisa, usava a mesma calça e o mesmo par de tênis. Balancei a cabeça afirmativamente, e mostrei-lhe o "tributo" de minha desventura. Exibindo muita habilidade e precisão, Dioclécio, usando seu canivete, retirou a figurinha do rei Pelé do meu álbum; tomou do livro e, com ajuda de uma caneta-tinteiro que eu trouxera, fez um borrão, sumindo num instante, com o carimbo da escola. Em seguida, meteu o soco inglês no bolso, olhou bem nos meus olhos exibindo um sorriso cheio de confiança e deu dois tapinhas no meu ombro: - Está feito, Pixote! Negócio de homem! Em seguida, tranqüilo e infalível, caminhou para o portão. Voltei para casa, guardei o exemplar de Robin Hood no caixote e corri para a janela da frente da casa: E, com o coração ainda batendo forte, Acompanhei o vulto magro e canhestro desaparecendo na esquina...

Valdenito de Souza (Rio de Janeiro, agosto de 2002).

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PORQUE ESCREVO?!

Quando escrevo: ... busco pessoas, refaço sonhos, escolho fantasias, exorcizo fantasmas! Quando escrevo: ... saio de mim, caminho na noite, enfrento o carrasco, viajo no tempo! Quando escrevo: ... critico o divã, questiono o afeto, polemizo com Deus, reverencio a ternura : e retomo o reencontro!

Valdenito de Souza ( RJ, outubro de 2002)

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