O CEGO ADERALDO - PELEJA COM O ÍNDIO AZUPLIM.


Cego Aderaldo - CANTORIAS

(peleja com o índio Azuplim)

Cego Aderaldo (Aderaldo Ferreira de Araújo)

Relata o Cego Aderaldo : " Em Belém do Pará eu conheci muitos cantadores. Mas o mais afamado, que emendou a camisa comigo, foi o índio Azuplim. Nossa batida foi a que se segue..." Eu saí do Ceará Deixei meu triste mocambo, Com medo do dezenove, Este pesadelo bambo. Vinha o coronel Monturo Junto com doutor Molambo... A dona fome na frente, Na cadeira do trapiche, Dizendo: No Ceará Tudo é fofo e nada é fixe. Juro que aqui nesta terra Não vinga mais nem maxixe... A dona Fome me olhou E disse a mim: - Eu pego! Eu disse: - Não senhora! Eu sei por onde navego, Quem tem vista corre logo, Quanto mais eu sendo cego... Segui para Fortaleza, Dei uma viagem além. O barco era o “Maranhão”, E até corria bem, Com três dias e três noites Chegando nós em Belém... Quando eu cheguei em Belém, Me encostei naquele cais. - Aonde vai esta linha? Eu perguntei a um rapaz Ele disse: - Nesta linha Passa um trem para São Brás... Eu parti para São Bras, Para casa de Gaudêncio Que já conhecia bem, Ele, Salina e Merêncio; Junto estes amigos Não pude guardar silêncio... Fui para Madre de Deus, Terra de um povo fiel, Ali ganhei qualquer cousa Tomei açaí com mel, De manhã peguei o trem, Fui para Santa Isabel... Depois fui para Americana, Cantei lá no Apéu, Do sitio de São Luís Eu fui pra Jambuaçu; Eu cantei no Castanhal, E no Igarapeaçu... No primeiro Caripi Eu cantei, lá fui feliz, No segundo Caripi Cantei tudo quanto quis, E ali tomei o trem, Fui cantar em São Luís.... Ali chegou um convite, Eu para Muricizeira, Depois, cantei no Burrinho Cantei no Açaí Teuã... Fui cantar no Timboteuã... Segui para Capanema Com coragem e esperança. Passei uns dois ou três dias E segui para Bragança, Dizendo sempre comigo: - Quem espera em Deus não cansa... Quando eu cheguei em Bragança, Não quis ir no Benjamim, Não encontrando hospedagem, Me hospedei num botequim, Que era coberto e cavaco E circulado a capim... O dono do botequim Veio a mim e perguntou: - Cego de onde tu és? Me diga se é cantador. Me diga se não tem medo De azuplim trovador... Me perguntei: - Não senhor! Será algum rio-grandense Ou mesmo um paraibano, Ou um cantador cearense? Ele disse: - Não senhor, É um cantor paraense... Quando findei a palavra Vi o paraense chegar, Ele trazia consigo Uma viola e um ganzá, E trazia um tamborim, Que é instrumento de lá... Ele afinou a viola, Quando bateu no ganzá, Deu um tom no tamborim Para o baião entoar, Eu tirei a rabequinha E fiz a prima chorá... Cego - Eu lhe disse: - Oh! Paraense, És uma ninfa de fada, Teu cântico me parece A deusa da madrugada. Eu lhe peço, amicíssimo, Que cante a sua toada... Azuplim - Cego, minha toada é, Um trabalhador garantido. Você pra cantar mais eu Precisa ser aprendido, Queira Deus tu me acompanhe, ai ai! Pra cantar nesse gemido... C - Meu amigo, o teu gemido, Tem destacado valor, Canta bem perfeitamente, Já vi que é bom cantador, Mas amigo, esse gemido, Me desculpe , que eu não dou... A - Se num dás um só gemido Também não és cantador, Vá cobrar logo o dinheiro. Do mestre que lhe ensinou, ai, ai! O cego já apanhou... C - Se gemer foi cantoria, Você é bom cantador, Pois gemes perfeitamente, No gemido tem valor, Mas geme com grande dor... A - Ou que gema ou que não gema, A boa palavra encerra, Cego, cante aqui mais eu, Que eu vim lhe fazer guerra, Quero que você me diga, ai, ai! A linguagem da minha terra... C - A linguagem da tua terra, Não é linguagem mesquinha, É toda no guarani Estudada, é bonitinha! Para que não perguntaste A linguagem da terra minha?... A - Eu quero é que diga da minha Por que muda de figura: Cego, diga para mim O que nós chama mucura, Quero que você me diga, ai, ai! O que é saracura... C - É verdade, essa linguagem Muda mesmo de figura, O que nós chama casaco Vocês só chamam mucura E o que nós chama sericóia Vocês chamam saracura... A - Cego, diga para mim: O que é jamaru? Queira Deus você me diga O que é jacuraru, O que é macuracar ai, ai! O que nós chama jambu... C - É o que nós chama cabeça, Vocês chama jamaru, O que nós chama tejo, Vocês chama jacuraru, Tipi é mucuracar, E agrião chamam jambu... A - Cego, diga para mim O que nós chama jibóia, Quero que você me diga O que é tiranabóia, Diga aí pra eu saber, ai, ai! O que é “pegando a bóia”... C - No Piauí tem um besouro De nome tiranabóia, Nossa cobra-de-veado Cresce aqui, chamam jibóia, Em minha terra almoço e janto, ... tanto aqui só “pego a bóia”... A - Cego, diga para mim O que é a sacupema, Veja se você me diz O que é piracema, Diga aí rapidamente, ai, ai! O que nós chama panema... C - O que nós chama raiz Vocês chama sacupema, O que nós chama peixe muito Vocês chamam piracema; A um sujeito preguiçoso Chega aqui chamam panema... A - Cego, diga para mim A língua dos Tupinambá, A língua dos Aimoré, Ou dos índios Caetá, Ou sobre os índios Tamoios Ou índios Tamaracá... C - Sobre as gírias dos índios, Desde o Norte até o Sul, Pixueira é coisa fria, Um beijo chama meiru, Tacioca é uma é uma casa, Morada de caititu... A - Agora o cego Aderaldo Me respondeu muito bem, Vi que gírias dos índios, Ele segue mais além, Pelo jeito que estou vendo Você é índio também... C - Meu amigo eu não sou índio, Nasci num pobre lugar: Que é tão propenso a seca Que obriga agente emigra Sol danado de Iracema, Terra de Zé de Alencar... A - Cego, deixa de mentira, Tua terra não tem nome, Tua terra é uma miséria, É lugar que não se come, De lá veio cinco mil, Tudo pra morrer de fome... C - Dos cinco mil que vieram Algum era meu parente, Uma era tio, outro primo, Conterrâneo e aderente, Mais esse povo só come Massa de figo de gente... A - Saí daí, cego canalha, Com a sua poesia, Nesta minha carretilha Você hoje se esbandalha, Teu cântico tem grande falha, Quer cantar mais não convém... Você somente o que tem É entrar no bacalhau; Apanhar de peia e pau Cearense aqui não vai bem... C - De onde tu vens contrafeito, Cabeça de onça mancho, Bote o matulão abaixo E conte a história direito, Me diga o que aqui tem feito Por estes mundos além, Se você matou alguém Ou então se fez barulho, Vai muito mau seu embrulho, Paraense aqui não vai bem... A - Quando eu pego um cantador Dou três tacada danada, Lhe deixo a cara inchada De relho e chiquerador, É o café que lhe dou, É isto que lhe dou, E não diz nada a ninguém, Apanha e fica calado, Triste e desmoralizado Cearense aqui não vai bem... C - Disse uma velha na rua Que em outros tempos atrás Você e um seu rapaz Lhe roubaram uma perua; Veja que moda esta sua Roubando quem vai, quem vem, Como tu não tem ninguém Mais ladrão do que você. Tome lá meu parecer: Paraense aqui não vai bem... A - O cantador que eu pegar Pelo meio da travessa Nem Padre lhe confessa Enquanto eu não lhe soltar, Dou-lhe arrocho de lhe quebra, Osso e costela também, Quebro tudo que ele tem, Deixo-lhe o corpo em bagaço, Tudo quanto eu digo eu faço, Cearense aqui não vai bem... C - Até as moças donzelas Pediram aos cabras da feira Para meter-lhe a madeira E arrebentar-lhe as costelas. Você abra o olho com elas, Boa surra você tem, Boa surra você tem, Neste dia também vem A velhinha da perua Quebrar-lhe a cara na rua, Paraense aqui não vai bem... A - Também não quero brigar, Não sou homem de intriga, Eu não nasci para briga E não vivo de pelejar; Também não quero teimar Porque isso não convém, Lhe venero e quero bem, Digo isso pode crer; Não quero lhe aborrecer, Cearense aqui vai bem... C - Amigo, como mudou, Que coisa misteriosa! Tens o perfume da rosa Que a pouco desabrochou. Por isso tem o maior verdor Do que lá no bosque tem. O anjo lá de Belém Ouviu nossa cantoria, Entrarmos em harmonia, Paraense aqui vai bem... Havia quatro cervejas Que um coronel apostou Dizendo que todas quatro Pertencem ao vendedor Nós dois bebemos as cervejas Nem um nem outro apanhou... (Estado do Pará, junho de 1919) Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do Crato - CE. Logo após seu nascimento mudou-se para Quixadá, no mesmo estado. Aos cinco anos começou a trabalhar, pois seu pai adoeceu e não conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho. Quinze dias depois que seu pai morreu (25 de março de 1896), quando tinha 18 anos e trabalhava como maquinista na Estrada de Ferro de Baturité, sua visão se foi depois de uma forte dor nos olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recorrer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião em que descobriu seu dom para cantar e improvisar. Ganhou uma viola a qual aprendeu a tocar. Mais tarde começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo parecia estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho começou a andar pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes do Piauí e Pernambuco. Com o tempo sua fama foi aumentando. Em 1914 se deu a famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do Piauí). Depois disso voltou para Quixadá mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no Pará. Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro onde o próprio Padre Cícero veio receber o trovador que já tinha fama. Algum tempo depois foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido — feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro. Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão apresentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital. Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar. Logo depois, em 1933, teve a idéia de apresentar vídeos. Que também deu certo, mas não o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma bodega na Rua da Bomba, No. 2. Infelizmente o seu traquejo de trovador não servia para o comércio e depois de algum tempo fechou a bodega com um prejuízo considerável. Desde 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes, conseguira ser reconhecido em todo lugar, cantara pra muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou a dificultar as disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma. Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida de chefe de família pois criou 24 meninos. Texto extraído do livro " Eu sou o Cego Aderaldo ", prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora - São Paulo, 1994.


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