ILUSÃO DE ÓTICA[1]

Elivan Arantes de Souza[2]

 

Maria do Socorro B. de Souza

 

                        Recentemente o Brasil viu pela TV uma história triste e confusa. A tristeza que comoveu a todos reside nas cenas de Roraima em chamas, quase 30% deste Estado foi destruído pelo fogo, diante deste cenário, que os cientistas logo creditaram aos efeitos do “El nino” (fenômeno cíclico-climático), as previsões dos especialistas (NASA, INPE, INPA, etc...) era de que só um milagre traria chuvas à região em destaque. No entanto, para confundir a ordem ocidental, dois “Pajés” (lideres espirituais indígenas) da nação Caiapó, se dirigiram à região dizendo que iam fazer a “dança das chuvas”. A imprensa logo tratou de satirizar com sarcasmo a proposição destes heróis que assim como outros habitantes das florestas, também são excluídos.

                        Curiosamente no período da dança e, por algum tempo depois, Roraima viu seus solos e florestas serem lavadas por chuvas suficientes para conter o fogo e salvar as plantações de uma seca que já se arrastava por vários meses. Se os Pajés fizeram chover ou não, esta é uma indagação recheada de subjetividade. O que podemos inferir neste caso, é que os povos ditos “nativos” tem ligações umbilicais com os seus ambientes, essa percepção culturalmente distinta da nossa, recebe informações conjuntas dos seus sentidos sensoriais sobre o lugar em que estão inseridos, neste episódio, tato, olfato, audição, visão e paladar agiram em sinestésia[i] contrariando as informações perceptíveis nos laboratórios.

Nos laboratórios os instrumentos, de última geração, fazem suas leituras por meios mecânicos, eletromecânicos e mecânico eletrônicos. Transformando energia mecânica em energia sinética. Estas formas de aferições não conseguem acessar os meandros das dinâmicas ambientais, não atingem nem alcançam a essência dos fluxos e refluxos da natureza. Deixando desta forma uma dúvida, sobre a eficiência destes instrumentos, os quais tem um custo social bastante elevado.

A diferença fundamental entre estes dois métodos, tem suas raizes na percepção do mundo e no sentido gênico da territorialidade[ii]. Os Caiapós do Mato Grosso, não são cidadãos, não vivem sob um código civil, estes tem suas referências além da limitação do espaço temporal, eles teêm o lugar como referência e não como liames de suas ações. Desta forma a nossa capacidade de compreender o outro e os ambientes que nos rodeiam estão aquém do praticado por grupos nativos. Temos ao longo dos séculos creditado muito poder à máquinas, sem refletir criticamente sobre nossos papéis neste planeta[iii]. Enquanto os nossos heróis, tem nos mostrado formas diferenciadas na convivência com a natureza[iv].

                        No mundo ocidental a discussão sobre meio ambiente está permeada de informações, as quais, quase sempre, são sistematizadas a partir de condições e percepções meramente visuais. Os nossos outros sentidos sensoriais: paladar, audição, olfato e tato, nem sempre estão afinados/sintonizados ao espaço/território, quando o pesquisador, observador ou contemplador, está investigando e reconhecendo estes ambientes. Esta afirmação tem seu fundo de realidade, a medida que acessamos informações descritivas sobre áreas consideradas como em processos de degradação e até de conservação.

O resgate de uma relação em simbiose é para nós neste momento uma questão vital, haja visto que o paradigma ambiental transcende o mundo visual. As ações e questões colocadas no nível humano e as respostas dos ambientes naturais são imensuráveis e invisíveis, pois as reações nem sempre são postas imediatamente. Na maioria das vezes ocorrem séculos ou até milênios depois[v]. Entre os Pajés e o mundo urbano com seu frenesi residem pessoas que por serem Portadoras de Deficiência Visual – PDVs, conseguem desenvolver o uso de outros sentidos de forma mais apurada.

Os PDVs[3], sob estímulos positivos, conseguem dar-nos informações cuja a importância das mesmas nos passam despercebidos. Os PDVs são treinados por videntes (pessoas que vêem) para codificar seus cotidianos com base em signos e referências meramente visual. No entanto, estes na ausência total ou parcial deste sentido desenvolvem estratégias de locomoção, imagens, referências entre outras com base numa homogeneização dos sentidos chamados de SINESTÉSIA.

A sinestésia sobrepõem-se sobre o mundo visual, por capacitar o indivíduo para elaborar informações de forma simultânea entre os vários sentidos. Esta capacidade é peculiar à todos os seres humanos. No entanto, acredita-se que só 10% as usem na organização de informações armazenadas imaginariamente e até no dia-a-dia. A construção de uma referência sob está ótica, deve nos remeter à uma reflexão acerca das nossas limitações.

Os sentidos largamente utilizados pelos PDVs, curiosamente são considerados pela maioria dos videntes como auxiliares, ou até mesmo secundários. A importância destes e sua exclusão/secundarização das nossas vidas tem referenciais históricos, alicerçando-se nas regras de religiosidade. Em quase todas as doutrinas há um conjunto de princípios que, numas mais noutras menos, impedem-nos de vivermos na plenitude. O prazer enquanto resultado do afago, do toque, do cheiro, da audição e do paladar subverte o “espiritualmente correto/aceitável, tornando-se desta forma um perigo para a manutenção do cárcere mental imposto por estas ordens. Reside ai uma parcela da secundarização destes sentidos e a eleição do mundo visual. Assim as imagens são uma prova concreta desta estigmatização do real”.

Outro referencial histórico, e aqui mais ligado ao mundo moderno, está na exacerbação da racionalidade humana. O racionalismo enquanto corrente que subsidiou filosoficamente o mundo moderno, tem sua parcela de responsabilidade com a matematização das coisas e dos sentidos. Sob este discurso, fomos, durante séculos, impelidos a ver números/signos onde antes a lógica era fragmentada e una ao mesmo tempo. Nunca as bases consideradas opostas como: equilíbrio e catástrofes, bem e mal, certo e errado estiveram separadas, nosso agir a partir da razão é que as dicotomizou e colocou-as em pólos opostos de atuação. Estas duas fontes de edificação do humano caminham passo-a-passo no intuito de reconstruir o imaginário com formas e referências palpáveis  aos nossos olhos. O homem ocidental e pós-moderno está cativo à estas ordens que na sua universalização destituiu-nos de elementos primordiais à nossas relações de simbiose com o mundo natural.

Porque juntar índios e cegos num mesmo caldeirão? Que saberes/conhecimentos existem entre: Caiapós, Ianomamis, Potiguaras e PDVs? Quais ligações selvagens, loucos, cegos e excluídos em geral, fazem nos seus imaginários? Responder a estas questões é neste momento, romper com a métrica ordeira e comportada da ciência positivista que nos treinou para pensar de forma linear. Nosso objetivo com estas elucubrações, é tentar construir para a sociedade referências que possam nos auxiliar na transformação desta ótica distorcida da natureza como recurso, devolvendo-lhe seu lugar enquanto suporte de nossas histórias. Talvez digam que esta é também uma abordagem utilitarista, mas, faço aqui uma pergunta: qual a outra alternativa? E mais, por que veredas trilharemos, se não, pelo menos, nos colocarmos em pé de igualdade?

                        Não estamos utilizando PDVs como objetos de um experimento, mas tentando torna-los cidadãos e cidadãs comprometidos com estas mudanças necessárias à vida de todos neste planeta. Nesta perspectiva, procuramos não só treinar mas sobretudo deixá-los a vontade nesta viagem lúdica e imaginária. Os elementos do grupo inseriram-se na dinâmica com dois objetivos, próprios de suas carências, concretizarem seus imaginários e didatizarem suas inferências sobre os domínios ambientais existentes na Paraíba. Cabe-nos nesta atividade buscar os pontos de equilíbrio de uma relação harmônica e saudável para ambos.

 

 



[1] Texto elaborado para a apresentação e debate sobre o Vídeo: Ver prá quê? Produzido a partir do Projeto Ensino de Estudos Sociais para Crianças Cegas, que realizou-se no período de 1995 a 1998, tendo como palco a Mata da AMEM - Cabedelo, Mata do Buraquinho, Praias e Mangues de João Pessoa.

 

[2] Analista Ambiental do IBAMA/CEMAVE

[3] O ensino não só para crianças videntes, mas e principalmente para PDVs, restrito apenas à sala de aula e aos livros didáticos torna o ato de aprender pouco criativo, mecanicista e desprazeroso. Neste sentido, o aluno não se integra no seu próprio lugar distanciando-se de uma perspectiva de agente/sujeito no tempo e no espaço.

 



[i] David Loventhal e Tuan

[ii] Ives Lacoster

[iii] Kapra

[iv] Mangabeira Urguer

[v] Lutzemberg