2005 Editora DIRLENE RIBEIRO MARTINS PAULO DE TARSO MARTINS Rua Oscar de Souza Geribelo, 232 - Sta Paula 13564-031 - São Carlos, SP Fone: (0xx16) 3372-5269 Fax: (0xx16) 3372-3264 www.rimaeditora.com.br Direitos reservados desta edição RiMa Editora Diagramação, revisão e fotolitos RiMa Artes e Textos - 2005 do autor Q117s Queiroz, Marco Antonio de Sopro no corpo - vive-se de sonhos/Marco Antonio de Queiroz. São Carlos: RiMa, 2005. 192p. ISBN - 85-7656-050-x ORELHA. Marco Antonio de Queiroz descobriu-se diabético aos três anos, sofreu com o fantasma da impotência ainda jovem, ficou cego aos 21 e teve de enfrentar dois transplantes: de rim e pâncreas. Porém, quem espera se debulhar em lágrimas ao ler este livro terá uma decepção (ou, melhor, uma boa surpresa), pois Marco Antonio optou por narrar sua vida da mesma forma que a leva, com bom humor e suavidade. Em momento algum o autor demonstra pieguismo e autocomplacência ou ousa dar lição de moral, mas não há como não tirar uma lição de vida desta sua narrativa simples e direta. Sopro no Corpo: VIve-se de Sonhos está dividido em duas partes: "Com o Sol no Meio da Testa" (reedição) e "Presentes da Vida" (inédito). Na primeira parte, Marco Antonio, então com 28 anos e preso à cama por conta de um grave acidente de moto, nos fala de sua diabetes, de seu contato com as drogas, da impotência que resolveu se manifestar justamente na juventude, das vezes em que teve de rever antigos valores, como o machismo, e, obviamente, da cegueira, que aos 21 anos conseguiu o que a diabetes não havia conseguido até então: mudar o rumo de sua vida. Já em "Presentes da Vida" surge o MAQ (iniciais de Marco Antonio de Queiroz) de 20 anos depois, mais maduro e, portanto, mais consciente do que a vida lhe reservou, mas nem por isso amargo ou com panca de herói. Continua a superar as limitações físicas, a encarar de frente os preconceitos e, acima de tudo, a rejeitar estigmas, mas desta vez tendo a seu lado, além da esposa Sônia, o tão esperado filho Tadzo e os amigos que sempre o apoiaram. Não é possível não se emocionar com sua "sorte" quando enfim opta por fazer os transplantes. Embora a vida às vezes pareça querer mostrar o contrário, Marco Antonio reconhece que sempre está no lugar certo na hora certa, ou como ele mesmo diz: "Nasci com os rins virado pra lua". Enfim, nesta obra MAQ é muito bem-sucedido em demonstrar que em qualquer idade é possível enfrentar e contar sem mágoas as tragédias pessoais. Sumário Prefácio ................................................................................................. 7 Introdução ...........................................................................................11 Com o Sol no Meio da Testa ..............................................................15 Ladeira dos Guararapes ...............................................................17 Boas Festas ..................................................................................28 Europa Urgente ............................................................................39 Blackout ......................................................................................59 New Life ......................................................................................79 Nas Quebradas da Vida .............................................................102 Coisas de Criança ......................................................................116 Com a Cabeça no Universo .......................................................136 “Esperar Não É Saber...” ...........................................................149 Presentes da Vida ..............................................................................155 Vive-se de Sonhos .....................................................................157 Amar a Vida por Inteiro .............................................................172 – 7 – Prefácio Conheci Marco Antonio de Queiroz em 1992, por intermédio da primeira edição de seu livro Sopro no Corpo. Impressionaram-me, desde a primeira leitura, a sensibilidade, a clareza e a riqueza de sua narrativa em relação à sua vida e, sobretudo, à sua experiência de tornar-se e ser cego, em conseqüência da diabetes, desde seus 21 anos. Em seu livro é possível perceber que sua trajetória em relação à deficiência visual é de acolhimento e luta pela inclusão social, mesmo considerando as contradições humanas e os limites sociais impostos às pessoas com deficiência. Tendo de enfrentar cotidianamente o preconceito, Marco Antonio buscou e conseguiu viver sua vida em uma sociedade que impõe a homogeneização a todos os indivíduos, revelando a importância de resistir a esse processo e, sobretudo, nos ensinando uma lição fundamental: a diferença, advinda da cegueira, não deve ser transformada em desigualdade. Antes, deve ser considerada a essência de sua humanidade. Desde então, adoto seu livro em minhas atividades, na graduação e pós-graduação, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Em 1999, cursando uma disciplina na Universidade de São Paulo, tive a oportunidade de, mais uma vez, debruçarme sobre seu livro, agora como objeto de estudo no trabalho final de mestrado. Posteriormente, Marco Antonio participou como sujeito de minha tese de doutorado quando trabalhava como programador de computadores no SERPRO/Regional do Rio de Janeiro. Foram muitas horas de entrevistas, de conversas emocionadas sobre suas experiências nos estudos, na família, com os amigos, com os afetos, com a deficiência visual e como escritor. Continuamos nos encontrando em minhas salas de aula na Universidade Federal Fluminense. – 8 – Passados vinte anos, em seu livro, agora Sopro no Corpo: Vive-se de Sonhos, Marco Antonio está ainda com mais força em sua capacidade de narrar o que lhe diz respeito — a experiência de ser um homem cego, transplantado duplamente, com 48 anos, que não abriu mão da vida ao lado de sua esposa Sônia, de seu filho Tadzo e de si mesmo. É importante ressaltar que sua narrativa se apresenta sem heroísmo ou amargura, mas com simplicidade, naturalidade e beleza. Como sempre, com a força e lucidez do homem que sabe o significado de sua experiência com a cegueira e a diabetes, nos conta sua história de vida, sabedor como Gabriel García Márquez de que: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. Marco Antonio agora faz alusões a episódios significativos vividos por ele nos últimos vinte anos, narrando com sua desenvolvida sensibilidade o viver em sua essência e como constituinte de sua subjetividade, o nascimento de seu filho Tadzo e seus transplantes. Enfrentando e superando as limitações impostas pela insuficiência renal e pelo preconceito, Marco Antonio rejeitou os estereótipos e fugiu ao estigma, se permitindo fazer o que a cabeça e o coração lhe ditaram. A integridade e intensidade de suas experiências com a cegueira e com os transplantes de rim e pâncreas, de sua concepção de vida, de sua capacidade de sonhar e realizar sonhos são dignas de serem partilhadas. Sua vida sempre acesa não negou a deficiência visual. Antes a viveu e vive como experiência. Isso envolveu sua aceitação. A aceitação da deficiência se desenvolveu gradativamente para Marco Antonio ao longo de anos, preenchidos com experiências exitosas no trabalho, nos estudos e na vida familiar. É necessário destacar que a aceitação das implicações e limitações impostas pela diabetes e pela deficiência visual não ocorreu como um relâmpago, acompanhado de um dar-se sempre bem com a vida. Antes, seu processo de luta o ensinou, pouco a pouco, que a deficiência não precisa ser pensada como um fardo insuportável. Ela pode ser considerada como uma complicação — e quem não tem isso na vida? À proporção que a luta pelo trabalho, pelo conhecimento, – 9 – pela saúde, pela família, pelo amor, pelo sonho e pela felicidade dá prova de algum sucesso, Marco Antonio vai acolhendo a deficiência visual como uma experiência, e como tal pode e deve ser considerada constituinte de sua subjetividade. A vida com acolhimento e realizações passa a ser a questão central de sua luta, bradando como Thiago de Mello: “Pois aqui está a minha vida, pronta para ser usada. Vida que não se guarda nem se esquiva, assustada. Vida sempre a serviço da vida. Para servir ao que vale a pena (...)”. O acolhimento da deficiência contribuiu não apenas para o desenvolvimento humano de Marco Antonio e para o enfrentamento do preconceito e da discriminação presentes em seu cotidiano, como também para a conscientização das pessoas em seu entorno. Ao refletir sobre a condição de ser deficiente visual, Marco Antonio revela em seu livro que sua capacidade de discernimento, escolha e decisão nunca estiveram fora de foco, podendo exercer seus papéis e funções sociais, contrapondo-se à percepção da sociedade preconceituosa que tenta reduzir a pessoa deficiente à sua deficiência. Finalizando, quero recomendar enfaticamente a leitura deste livro como estudo reflexivo permanente, destacando a determinação, a perseverança, o desejo e os sonhos que permitiram a Marco Antonio afirmar que “são essas descobertas que me fazem amar a vida e não deixá-la, aos pedaços, pelo caminho”, superando as barreiras colocadas em sua vida e sabedor de que “os sonhos vão se realizando e até nos esquecemos de que foram sonhos. Criamos outros para termos mais sonhos. Não tem como ser diferente, vive-se disso!” E, sobretudo, que é sempre necessário falar daquilo que não deve calar dentro de si mesmo e, como Pablo Neruda, falar o mais alto possível: “Confesso que vivi”. Rio de Janeiro, outono de 2005 Valdelúcia Alves da Costa Professora adjunta da Universidade Federal Fluminense, docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, coordenadora do Curso de Especialização em Educação Especial e vice-coordenadora do Curso de Pedagogia – 11 – Introdução Faço parte da multidão de pessoas que sonha, um dia, escrever um livro e vendê-lo nas livrarias. Escrevi. Meu devaneio, porém, não era o de uma autobiografia, mas, quem sabe, imaginava, editaria minhas poesias?... Sou muito autocrítico e me faltou coragem. Escrever um texto contínuo a respeito de minhas experiências de vida, idéias, emoções e fantasias foi verdadeiramente um parto. Tive de ser muito incentivado por pessoas amigas e de ficar paralisado numa cama, devido a um acidente, para me “engravidar” de meus conteúdos e vontade. Aconteceu. Não foi fácil. Lembranças felizes se misturavam a pesadelos noturnos e ressentimentos conscientes. A cada vez que revia os parágrafos dava-me conta de que escrevia menos sobre os fatos do que sobre as emoções que revivia dentro de mim. Percebi, assim, que o importante não é o que eu vivi, mas como o vivi. É incrível, mas consegui organizar minha vida em capítulos, dar-lhe uma seqüência, se bem que com a cronologia dos sentimentos e idéias. Sei que jamais a contarei da mesma maneira. A dinâmica dos meus valores, muitas vezes, me impulsionava a modificar trechos inteiros, mas me continha, dentro do possível, para que o livro tivesse um fim. A relação que tive e/ou tenho com a cegueira, diabetes, impotência sexual e drogas, que fizeram de mim muito do que sou, está aqui. Apesar de possuirmos muitas coisas em comum, não me faço porta-voz de cegos, diabéticos, impotentes ou doidões. Escrevo por mim. Isso foi bom e já me gratificou. Agora, espero a reação dos amigos, e também dos desconhecidos, para finalizar a aventura de minha realização. – 12 – Quero agradecer o apoio de Sônia, minha mulher, pela ajuda na revisão do texto; de Antônio Paulo, pela sugestão do título do livro; de Anna Maria (minha irmã), Carla, Cleber, Nunes, Conceição, Valéria e do pessoal de Vila Serena pelo incentivo. Dedico este livro, com especial afeto, à Sônia, minha parceira de vida, sempre presente em meus altos e baixos, na montanha-russa das minhas emoções. Vinte Anos Depois... Alguns fatores se conjugaram para que eu estivesse meio que “esquecido” da existência do meu livro e, portanto, para que eu não batalhasse a reedição da versão original, já esgotada. Em primeiro lugar, já decorridos 20 anos da primeira edição e necessitando atualizá- la, vinha-me certo sentimento de incapacidade de voltar a escrever no mesmo estilo. Em segundo lugar, a satisfação que a “Bengala Legal”, minha página na internet, sempre me deu, pois nela coloco textos meus e de amigos, disponibilizando tudo o que eu gostaria que o mundo soubesse. Isso contribuiu para que minha necessidade de comunicação fosse satisfeita. Casualmente, através de uma lista de discussão especializada da internet, na qual trocamos informações a respeito de diabetes e transplantes, um dos participantes, depois de ler os demais comentarem sobre meu livro, acenou-me com a possibilidade de relançálo pela editora onde trabalha. Aceitei, mas sem acreditar muito... O milagre aconteceu de uma tal forma que em uma semana já estava tudo acordado, acrescentando-se a atualização da minha biografia. Agora que terminei a revisão dos originais e que também, com muita emoção e esforço, já criei os novos capítulos do livro, percebo como são diversos os sentimentos que experimento ao escrever textos para a internet e para o livro. Para mim está sendo quase como tomar um suco de laranja natural em vez de um refrigerante da mesma fruta com gás. Os dois têm seu espaço e momento e ambos podem ser muito bons! São apenas diferentes, completamente diferentes. – 13 – Gostaria de agradecer a Affonso Romano de Sant’Anna, pela ajuda e atenção que dedicou a mim e ao lançamento do meu livro original, assim como a Marina Colassanti, pelo carinho; a Ingeborg Christa Laun, médica e amiga, que nos momentos mais importantes esteve presente para me orientar; à equipe de transplante da Clínica de Doenças Renais, nas pessoas dos Drs. Walter Gouvêa, Eduardo Gouvêa, José Suassuna, Fred Ruzany, Marcos Sandro Vasconcellos, André Albuquerque e Sandra Boiça, profissionais maravilhosos e incansáveis, que dignificam a categoria; a Irinete Valadão (Íris), enfermeira leal e amiga, que muito me ajudou na época do meu transplante, sendo também uma profissional incrível e preferida por mim na hemodiálise; à equipe de transplante de pâncreas do Hospital Beneficência Portuguesa, de São Paulo, especialmente nas pessoas dos Drs. Tércio Genzini e Regina Araújo, de quem sempre sinto saudades. Agradeço também aos meus amigos: Flavia Maria de Paiva Vital e Eduardo Guimarães, amigos do coração, que me oferecem todo o conforto material e emocional de hospedagem sempre que vou a São Paulo, principalmente numa hora tão importante como foi a do meu transplante de pâncreas; Mônica Vita, que nesse mesmo período me ajudou muito no hospital e nos preparativos para chegar até ele; André Baldo e Kathleen Menezes Lessa, por suas opiniões sinceras e, por certo, muito estimuladoras; Valdelúcia Alves da Costa, por nossa identificação no sentir e no pensar; e, finalmente, Newton Debonis, apenas por ser meu amigo e existir. É com grande emoção que dedico a renovação do meu livro, novamente, a Sônia Maria de Carvalho Varejão, minha companheira e esposa; a Tadzo Queiroz, meu muito esperado e querido filho; a Marilene Lúcia Garcia e Carlos Augusto Pereira, anjos de carne a quem a vida fez-me o favor de apresentar; e à família de Cuiabá que, apesar da morte de um ente querido, teve coragem, disponibilidade e amor para permitir a doação do pâncreas e outros órgãos a pessoas que deles necessitavam. Marco Antonio de Queiroz (MAQ) maio de 2005 Com o Sol no Meio da Testa “Esta estória foi construída em torno da dor da diferença: a criança que não se sente bem igual às outras, por alguma marca no corpo, na sua maneira de ser... Esta, eu sei bem, é a estória para ser contada também para os pais. Eles também sentem a dor dentro dos olhos. Ela lida com algo que dói muito: não é a diferença em si mesma, mas o ar de espanto que a criança percebe nos olhos dos outros. (...) Homens e mulheres descobriram o embaraço da diferença e se esconderam... O medo dos olhos dos outros é sentimento universal. Todos gostaríamos de olhos mansos (...)” Como Nasceu a Alegria, de Rubem Alves – 16 – – 17 – Ladeira dos Guararapes O sol naquela tarde era o de Ipanema. Gostoso, aquele que passando das quatro já não bronzeia, mas agasalha. Era sábado, o primeiro sábado, o primeiro dia do último mês do ano de 1984. Conversávamos eu, Inês e Cleber, fazendo o típico piquenique carioca: sanduíche natural e cerveja. Eu e Cleber tínhamos programado, no dia anterior, ir à praia pela manhã. Nosso sono e preguiça, porém, furaram o pneu do combinado. Além disso, acordei meio brigado com o mundo, comigo mesmo, e não muito a fim de encarar a multidão que devia estar na praia. Às onze, Cleber me telefonou e eu lhe disse que, apesar das saudades, da vontade de levar um papo com ele e de pegar um sol, não estava disposto a sair. Ele argumentou que se eu quisesse encontrá- lo e tomar sol esquecesse o resto. Antes que pudesse contra-argumentar, disse que passaria para me apanhar dentro de vinte minutos, e desligou. Como sempre, multipliquei seus vinte minutos por três e, ainda não muito convencido de que iria, deixei o tempo passar. Ele chegou todo animado. Ainda escutamos um disco e comemos alguma coisa. Não tive como deixar de ir. Apesar de me dizer que não estava muito legal, sua vibração era ótima e acabou me envolvendo, e, como ele mesmo me dissera, esqueci o resto. Rimos muito com a história de sua noite anterior: após sair muito tarde de uma festa, já cansado e sonolento, chegara em casa com Vera, mais de um metro e setenta de mulher, decidida e fantástica. Aí a coisa já ficava meio gozada: mais de um metro e setenta de mulher é, realmente, demais para um cara com pouco mais de um metro e sessenta. Após temperarem um pouco o clima, foram para – 18 – a cama e tudo aconteceu... em sonho! Porque ele dormiu. De manhã, ela telefonou para curtir com a cara dele: — Deixa só o Juca ficar sabendo disso — e ria. E ríamos nós na praia também. — Estou desmoralizado... Tenho de começar tudo de novo! Não sei se ela vai topar. — Sua carreira de macho, bicho, está seriamente abalada, mas ela ainda está na tua, senão não teria combinado um cinema com você depois desse papelão. Vai ver ela gosta de homens sonolentos. Estávamos nos divertindo com isso quando surgiu Inês, uma conhecida do Cleber, de entra e sai de terapia. Ela me reconheceu de um verão em que eu ia à praia por ali. Ficamos levando um papo de terapia e terapeutas e acabamos por falar também no Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva. Que coincidência! Ela era prima dele. Falei o que tinha achado do livro e que gostaria de assistir à peça. Inês me disse que poderia ir comigo. Entrava no teatro numa boa, pois conhecia todo o pessoal. Hora de ir embora. Eu estava supersatisfeito. A tarde havia sido muito gostosa! Inês acompanhou a gente até a moto, trocamos telefones e nos despedimos. Ficamos divididos entre ir ao Caminho da Roça, um restaurante natural, no Baixo Leblon, que vendia um “pf ” legal e barato, ou tirar a água do mar numa cascata, lá nas Paineiras. Acabei dando uma força para irmos às Paineiras, mais pelo prazer de dar uma andada de moto do que por querer tomar um banho de cascata. Detesto água fria, ainda mais num finalzinho de tarde. Passamos pela Lagoa, atravessamos a primeira metade do túnel e saímos no Cosme Velho. Subimos a Ladeira dos Guararapes com aquela pequena 125 cc carregando cento e quarenta quilos em cima. Comecei a perceber ali que estava com sono. Era uma sonolência gostosa, de quem durante o dia havia dado a volta por cima no humor da manhã. Foi pensando nessas coisas que, súbito, me percebi no chão. – 19 – Não me recordo de nada entre a sonolência e o chão, nem me lembro de dor, mas sabia que estava em maus lençóis: o osso da perna para fora e eu todo arranhado no lado oposto ao da fratura. Havia ainda muito murmúrio em minha volta e a voz de Cleber mais alta que a dos demais. — Ele é diabético, ele é diabético! Avisem os médicos, ele é diabético! Havíamos batido de frente na lateral de uma Brasília, que perdera a direção numa curva e dera um cavalo-de-pau. A moto fora para baixo do carro e nós para a calçada — soube disso depois. Cleber estava muito nervoso. Os caras da Brasília se desvencilharam da moto e fugiram. Lembro-me de alguém gritando: — Anota a placa! — e depois de um policial perguntando sobre a placa da moto. Havia voado. Não conseguia falar nada: era eu aqui dentro e o mundo lá fora. Estava anestesiado. Não sei se o caroço roxo, ensangüentado, que ganhei na altura da sobrancelha teve a ver com isso, mas minha memória daqueles momentos é péssima. Segundo Cleber, esperamos remoção deitados na calçada em ângulo de 90 graus um com o outro, eu com a minha cabeça na barriga dele. Não sei também por que reagimos de formas tão diferentes: ele falando muito, agitado, e eu calado. — Dói aqui? — Sou diabético, já avisaram? — Sim. — Dói aqui? — Onde? Não sinto nada. — Aqui? — Não. — Você tem algum problema na vista? — Sou cego. Como estou? O que aconteceu comigo? É muito grave? E o meu amigo? — Não se preocupe com ele, está melhor que você. – 20 – — Do que eu? — Você teve uma fratura exposta na tíbia esquerda e escoriações generalizadas. — Já escutei isso antes. — O quê? — Escoriações generalizadas... Parece coisa de televisão. — Você sente alguma coisa na cabeça? — Sim, que ela está em cima do pescoço, mais nada. — Sei... Bem, você vai ter de operar. — Operar? A cabeça? — Não, a tíbia. — Ah, melhor... É preciso telefonar para a médica que cuida de minha diabetes. — Mas você não vai poder operar aqui. — Não? Por quê, onde eu estou? — Você está no Hospital Silvestre. Aqui é particular. Vocês estão sem documentos e sem ninguém para se responsabilizar pela operação. — Mas qual é o problema? — A operação é cara. — Telefone para minha mulher. Dei o telefone e fiquei imaginando o que seria caro. — Ninguém atende. — Tente o trabalho dela, ou a casa da avó, ou da mãe. — Dei todos os telefones. — Ninguém atende. — Tente então minha mãe. Minha mãe era o último recurso. Sempre muito nervosa nessas circunstâncias... – 21 – — Ninguém atende também, mas pode ficar tranqüilo que nós já temos aqui muitos telefones e vamos ficar tentando até achar alguém. Enquanto isso você vai ser removido para o Souza Aguiar. — Assim desse jeito, todo quebrado? — Já posicionamos o teu osso e imobilizamos a perna. Fizemos uma assepsia, te aplicamos uma antitetânica e um Benzetacil, te demos um Dienpax e vamos te aplicar um sedativo pra você agüentar as dores da remoção. — E minha diabetes? — Como você está se sentindo? — Por enquanto bem, um pouco anestesiado. — Vai dar tudo certo. Procure ficar tranqüilo. Fique com este papel que aqui está escrito tudo o que nós fizemos com você. Entregue aos médicos do Souza Aguiar. Dobrei o papel e coloquei-o no elástico do meu calção de náilon que, reparei, estava rasgado. Torci para que o médico encontrasse alguém rapidamente. Não sabia qual seria o meu destino e o de Cleber no Souza Aguiar. Poderíamos nos separar e, daí, com tanto remédio eu poderia me desligar. Estava me sentindo, naquele momento, como um embrulho meio amassado que fosse ser entregue pelo Correio a alguém desconhecido, com um recadinho no barbante. De repente, ouço Cleber numa sala próxima. — Ele tem de operar, vocês não vêem? Ele tem de operar, porra! — Já deram Dienpax também pra ele? — Acho que sim. Brinquei, mas achei ótimo ouvir a voz de Cleber. Já estávamos saindo quando apareceu Juca, colega dele, para dar uma força. — Oi, Marco, sou Juca, tô indo com vocês. — Oi, Juca, já tinha ouvido falar muito de você. — É, eu também de você. — Estranho a gente se conhecer nessa circunstância, não é? – 22 – — É, estranho. — Eu anotei neste papel todos os remédios que te deram. Fica com você pra apresentar lá no Souza Aguiar. — Outro? — Você já tem um aí? — Tenho. — Melhor, fica com dois. Dobrei-o e coloquei no peito por baixo da camiseta. Percebi que Cleber não devia ter se arrebentado muito, porque eu fui deitado na maca dentro de uma ambulância, enquanto ele foi sentado ao meu lado. Juca, por ironia do destino, estava nos acompanhando de moto. — Oi, Marco. Como é que tá a barra? — Tá dando pra segurar. — Estamos indo pro Souza Aguiar. Tá sabendo, né? — Tô. Também tô sabendo do Juca. Ele chegou rápido, não? — Não tão rápido, já são 7 horas e o acidente foi às 5. — É, não percebi o tempo passar. Tudo parece um sonho. E você, como é que está? — Tô meio machucado na coxa, no joelho e na canela, mas estou melhor que você. Cleber pediu ao motorista que fosse devagar, e ele concordou. Eu me sentia aliviado, porém só até o primeiro buraco... Saiu um urro de dentro de mim, que não passou pela minha cabeça, nem pela minha vontade. É como se houvesse um outro Marco Antonio que gritasse. Não gostaria que isso acontecesse para não afligir o Cleber. Havia percebido toda a sua preocupação comigo e não queria que as coisas se complicassem em sua cabeça. Alguns outros gritos foram inevitáveis, mas não tantos quantos os que comecei a escutar na enfermaria do Souza Aguiar. Senti, naquela enfermaria, como se tivesse participado de um desastre coletivo e todos chegassem ao mesmo lugar de socorro. A sinfonia das dores era um tanto angustiante. Já estava começando a – 23 – me sentir meio abandonado em meu silêncio e no silêncio de Cleber, que há algum tempo não falava, quando apareceu Sônia. Deu-me um abraço aflito, se afastou um pouco, voltou e disse: — Puxa, amor, que foi que te aconteceu? — E me abraçou de novo. Percebi que tremia, sua voz era baixa e meio rouca. Tentei sorrir. Não sei se consegui. O certo é que perdera de imediato aquela sensação que começava a sentir. Tinha vindo com D. Yedda, sua mãe, e seu padrasto, José. Pouco depois chegou Seu Abílio, pai de Chico, um colega meu, com minha irmã. Fui relaxando por me sentir mais protegido. Havia gente para brigar por mim ali dentro. Foi aí então que comecei a voar em pensamento para fora dali. Cheguei até Adélia, minha ex-chefe, lá no trabalho, uma paraense incrível. A primeira vez em que ela me viu na carona de uma moto foi com Celso. Apareceu na sala quase esbravejando: — Se pra quem vê, já é difícil, como é que você vai ter reflexo na hora de um acidente? Tá querendo se matar? Vou falar com o Celso. Vocês dois são malucos! Quem conhece Adélia sabe que o diálogo foi bem diferente, não pelas palavras, mas por seu sotaque irreproduzível e pelo seu jeito todo especial de dizer as coisas. Argumentei com ela que, quando acontece alguma coisa com uma moto, é em questão de segundos e que não seria a visão que impediria o que me aconteceu. De nada adiantaram meus argumentos. Saiu porta afora, pensando em voz alta, como costumava fazer. A partir de então, toda vez que chegava ao trabalho de moto, torcia para que ela não me visse, coisa que nem sempre era possível. Outra pessoa que me veio à cabeça foi André. Eu o conheci na PUC, em meus vinte e dois anos, na psicologia que queria conhecer comigo, nas idéias políticas muito mais trabalhadas que as minhas, nos papos de mulher e de poesia. Mamãe me denunciou para ele e ele me deu logo um esporro. Tive de prometer, pela nossa amizade, que não andaria mais de moto. E foi o que fiz... Até o próximo telefonema de Celso. — Tô indo, vamos nessa? – 24 – — Vamos. Lembro-me, também, de que foi nesse dia que me diverti com uma mulher no elevador: — Vai passear? — Não, vou trabalhar. — Cego trabalha? — Trabalha. — Em quê? — Eu sou programador de computadores, trabalho em processamento de dados. — É aquele negócio de computadores? — É. Nessa época, 1984, poucas pessoas tinham acesso aos microcomputadores, assim, quando se pensava em computadores, eram em máquinas enormes, de grande porte, mágicas e que poucos gênios sabiam manipular... — Cego trabalhando com computador? — pensou ela alto, mas em voz baixa, como se estivesse duvidando de mim... Já estávamos saindo pela portaria quando Celso começou a buzinar na rua. — Tem um cara numa moto preta ali em frente buzinando, acho que é pra você. — É, vou pegar uma carona com ele. — De moto? Nunca vi cego andar de moto! — Sempre há uma primeira vez... Não sei se ela reparou no brinquinho que Celso usava na orelha, e é por isso apelidado no trabalho de Celso Brinquinho. Acho que seria demais para ela. Estava agora ali, naquela confusão de gritos, pensando naquelas pessoas. Pensando, de repente, que poderia ter ido comer no Caminho da Roça. Eles não poderiam imaginar que o pior de um acidente de – 25 – moto não é o acidente, mas o depois. Se algum cineasta estrangeiro quisesse filmar algo muito mais sensacional do que Inferno na Torre, Tubarão e coisas do gênero, era só aparecer na enfermaria do Souza Aguiar num sábado, depois das dez horas da noite, quando tudo acontece. Cleber berrava, enquanto duas médicas procuravam os pedaços de plástico da moto que entraram em sua coxa. Faziam aquilo e conversavam com a mesma tranqüilidade de quem está passando roupa. Chegaram até a combinar de ir a um churrasco na casa de outro médico no dia seguinte. Quase sugeri que levassem um pouquinho de carne do Cleber, para assar. A carne anda tão cara, não custa nada aproveitar, né? Contive-me, pois não sabia se seria o próximo ou não. Já estava com dor e sentiria ainda mais se alguém tocasse em mim falando de churrasco. Por volta de onze horas da noite conheci o Carnaval. Não era nenhuma escola de samba que havia passado por algum desastre e sim o médico que me atenderia, Dr. Carnaval. Atencioso e amigo, como Sônia, parecia uma confortante fantasia diante daquele espetáculo de horror. Dei-lhe o papel que estava no elástico do meu calção. Ele me fez algumas perguntas e me avisou que só deveria ser operado de madrugada, pois havia uma “filinha” para operações. Sônia, enquanto isso, batalhava uma clínica e uma equipe para me operar fora dali. O índice de contaminação era muito grande e um pouco arriscado para minha diabetes. Dr. Carnaval chegou a conversar com minha médica, Dra. Ing, pedindo instruções para a cirurgia e sempre estava ao meu lado quando o chamava. Pedi-lhe, por duas vezes, um sedativo de morfina para agüentar as dores: uma, logo depois que ele chegou, e outra, antes de ser removido para a Clínica São Vicente. Isso às duas e meia da manhã. Foi dificílimo para Sônia conseguir uma equipe de ortopedia para operar num sábado de madrugada, mas conseguiu. O Souza Aguiar realmente não estava dando. Tiraram-me o sangue duas vezes, e duas vezes ele sumiu no laboratório. Saímos sem saber o resultado depois da terceira retirada de sangue. Na hora de ir embora, lá veio ele, rapidinho, me aplicar mais um composto de morfina. — Pô, legal, legal mesmo, assim é melhor, dá pra agüentar os trancos da rua. – 26 – Num lugar como esse, encontrar um ser humano como o Dr. Carnaval é, realmente, muito bom; dei mais sorte que Cleber. Aliás, já me havia despedido dele e de Juca, há muito tempo, quando saí para a clínica onde seria operado. Chegou para mim, com uma voz meio deprimida, e me disse: — Eu não tive culpa, tô com a consciência tranqüila. Realmente não tive culpa, não foi bobeira minha, Marco, te juro. Perguntei para mim mesmo se também ficaria deprimido depois que passasse tudo. Entrei no Centro Cirúrgico às três e quinze da manhã: eu e Dra. Ing, minha endocrinologista, que a mãe de Sônia fora apanhar em casa. Umas quatro pessoas já estavam lá dentro. Faziam movimentos rotineiros e aparentemente precisos, o que me dava certa segurança. O médico que me operaria se apresentou como Dr. Cláudio Street. Será que tinha alguma coisa a ver com o “Doca”?1 Achei curioso. Fui informado também de que não receberia anestesia geral, mas peridural. Que sentiria uma sensação desagradável que, no meu vocabulário, traduzi logo como sendo dor, mas que passaria. Desagradável foi a lembrança que tive naquele momento. Por baixo do calção de náilon, cujas laterais eram transparentes, eu usava uma calcinha da minha irmã. Porém, como ninguém via embaixo do calção, tudo bem. A peça era grande, cumpria sua função de suporte discretamente. Mas eu ainda estava todo salgado da água do mar, e eles, para me operarem, possivelmente iriam me limpar. Aí, aconteceria o vexame. Todo mundo veria a dita, que não era muito feminina, mas que não dava para disfarçar: era uma calcinha. Será que algum homem já se imaginou dentro de uma situação dessas? E uma mulher de cuecas? Como se sentiria? Acho que comecei a me divertir com esses pensamentos, tentando camuflar o nervosismo de estar sendo operado. Mas, logo depois, por estar participando muito sonoramente da operação, o médico deu-me alguma coisa para dormir. Eu estava mesmo era gritando de dor. A anestesia ainda não funcionava 1. N.E.: Doca Street, playboy carioca que em 1976 assassinou a namorada e socialite Ângela Diniz. – 27 – plenamente e eles começavam a fazer a assepsia da minha perna muito próximo do lugar da fratura, e doía pra diabo. Acordei às oito horas no quarto, com Sônia ao meu lado. Ela devia estar cansadíssima, batalhara a noite toda as coisas para mim, e sob tensão. Eu sentia muita dor na perna, muita mesmo, e estava também exausto. Afinal, fora pego de surpresa às cinco da tarde. Já eram oito da manhã e agüentara muita coisa. O pior havia passado, mais uma vez, já havia passado. Tanta história para contar e agora arrumara outra. Qualquer hora fico vacinado, pensei. Passei a mão pelo meu corpo e encontrei o calção rasgado, ensangüentado, salgado. Estranhei, mas fiquei contente. – 28 – Boas Festas — Tchau, Marco, precisa de alguma coisa? — Não. Abraçamo-nos por uns instantes e dei-lhe um suave beijo no pescoço. Seu corpo estava cheiroso de banho, além do perfume. Senti vontade de passar-lhe a língua mansamente, mas não o fiz. O gosto dos perfumes nunca corresponde ao cheiro. Levantouse e saiu. Sua mãe estava esperando no carro, almoçariam juntas. Acho bonito isso, quando se faz por prazer. Conheço Sônia há seis anos, desde meus vinte e dois, e durante esse tempo mudamos muito. A princípio, pensei que fosse inteligente, ativa e independente demais para mim, enquanto eu, sentimental, preguiçoso e dependente demais para ela. Crescemos muito juntos. Tenho grande admiração por ela e, sempre que a monotonia teima em tomar conta de nossa relação, surpreendo-me com novos sentimentos. Sônia está sendo outra vez uma grande força para mim. O resultado do acidente de moto foi que estou engessado e de cama há quase um mês e, apesar dos limites que a diabetes e a cegueira juntas me impõem, nunca me senti tão preso à cama quanto agora. Sinto falta de entrar no banheiro, sentar na privada, tomar banho de chuveiro, de ir à cozinha e vasculhar a geladeira à procura de alguma coisa, de sair pela portaria, avançar pela rua, entrar no circular, trabalhar — quem diria, saudades do trabalho! Fazer programas com os amigos, ir à praia... Eu quero rua! Estou parado e com um vulcão dentro de mim. Acabamos de passar por um Natal e o réveillon está aí mesmo por acontecer. Esse período de festas mexe muito comigo e acho que também com as pessoas, nos mínimos detalhes. Os solitários se – 29 – aprofundam na solidão, enquanto outros armam altos programas para marcarem a data. Penso no passado, vôo para o futuro e vivo intensamente o presente. Por mais comercial que essas datas tenham se tornado, muitos sentimentos brotam. A realidade e a ilusão convivem fraternalmente entre as pessoas, que se expandem ou se retraem em suas emoções. Para mim, Natal e Ano-Novo é tudo, menos um dia como outro qualquer. A troca de cartões é algo muito estranho. Se o recebo de alguém de quem gosto, fico satisfeito por ter se lembrado de mim; caso receba de alguém com quem não tenho muita ligação, acabo respondendo, como se esse alguém passasse por mim e desse “bom-dia”, e eu não pudesse ficar calado. Tenho a impressão de que as pessoas, como eu, fazem uma medição do “amar e ser amado” nessas ocasiões. Desse período de festas, um dos que mais me marcou foi o de 77/78. Eu passara o Natal num ritmo de quem estava realmente desencontrado. Três semanas antes, estava num bar na Avenida Atlântica. Acabara de sair da praia com Odil e Guilherme. Havia algum tempo, tudo que fazia ficava sem sentido: praia, bares, festas, boates, amigos. Não conseguia encontrar um sentimento positivo em nada. No meio de um chope decidi: — Vou viajar. — Vai? — exclamou Odil, que não sabia para quem olhava, se para mim ou se para uma menina que tentava atravessar a rua e, na falta de um biquíni em casa, dera um jeito com a gravata do pai. — Está excelente como enfeite, mas desnecessário... — O quê, Odil? Apontou para a menina. Não consegui rir como Guilherme. — Para onde você vai? — Não sei. — Quando? — Agora. — Ué, deu zebra na cabeça do garoto. – 30 – — Deu mesmo, não estou agüentando mais nada disso. — Disso o quê? — perguntou Guilherme. — Também não sei, queria saber. Só espero que eu consiga não me levar comigo. — Pirou, desta vez não tem jeito, pirou total. Quer deixar você lá em casa antes de viajar? — Não vai dar tempo, me deixo aqui na mesa mesmo. — Ei, ei, e o chope, não paga? — Pergunta pro “Marco que ficou aí”, tchau. Trago essa decisão até hoje gravada em minha cabeça pelo fato de que, em qualquer outra circunstância, teria medo de tomá-la. Viajar sem rumo. Mas a verdade é que era extremamente necessário naquele momento. Arrumei todo o dinheiro que pude, juntei com um que já havia acumulado, fiz uma pequena mala e me arranquei para o aeroporto. Tinha de ser rápido. Não conseguiria passar mais uma noite sentindo as mesmas coisas, nos mesmos lugares, com as mesmas pessoas. — Quero uma passagem pro primeiro vôo. — Para onde? — Não sei ao certo, qualquer lugar, mas que seja rápido. Pra onde você tem? A moça estava séria, mas deu-me um sorriso meio irônico, bem parecido com o da Madona. — Serve Curitiba? — Serve. — O nome do senhor? Não estava dando para disfarçar a minha cara e achei que ela estivesse meio ruim para ser chamado de “senhor” (que eu me lembre, era a primeira vez). Depois, pensei que, logicamente, deveria ser formalidade da empresa. A passagem custou, só de ida, quase dois – 31 – terços do que eu carregava no bolso. Quarenta minutos depois já embarcara. Entrei no avião estranhando a mim mesmo. O que estaria resolvendo com aquilo? Por que estava tão perturbado? Olhava as pessoas e sabia que cada uma ali tinha um objetivo: o de chegar. O meu era o de sair. Desde a praia, procurava na fisionomia e nas palavras das pessoas alguma coisa que refletisse meu estado. Para Odil, eu deveria estar como sempre. Guilherme era mais perceptivo, mas também não entendera nada sobre mim. Minha mãe, aflita como sempre, agora ainda mais com uma viagem inesperada. Pensei comigo mesmo que quem me compreendeu mais foi a moça que me vendeu a passagem. Aquele sorriso de Madona dizia para mim algo como: um garotão com crise existencial e com papai que pode pagar uma viagem para qualquer lugar. Foi assim que me senti diante dela: meio ridículo, um garotão desorientado. Estava indo agora para Curitiba. E qual a diferença que faria ser Curitiba ou Salvador? Foi pensando nessas duas cidades que me lembrei de Sueli e de Jodécio, um casal que conhecera no Rio quando estavam de passagem vindos de Salvador a caminho de Curitiba. Su era muito observadora e crítica, além de “gorda, simpática e divertida”. Jô era mais fechadão e, por isso mesmo, se apagava um pouco na presença de Su. Quando eles chegavam, o pessoal brincava: “Su-Jô”. Nos entrosamos muito bem e fizemos muitos programas juntos, impulsionados pela energia de Su. Acabaram por me dar o endereço, mas eu não sabia se seria uma boa, eu queria tudo novo. Será que encontraria? Fiquei pensando em Su e, de repente, achei que sim. Mas chegar dessa maneira, sem aviso, é complicado. Pensei, então, em fazer o seguinte: deixaria a mala em algum lugar por perto, bateria na porta dela e, pela conversa, perceberia se dava para ficar ou não. Caso desse, pegaria a mala e tudo bem. A aeromoça passou com uns sanduíches e comi tudo o que tinha direito. Suava no clima ameno do avião. Estava tão fugitivo de mim mesmo que não percebia as razões de todo aquele tumulto de emoções que acabavam por gerar um grande vazio, o vazio de quem abafa seus sentimentos a qualquer preço. Primeiro eu não admitia a mim mesmo sentir tanta falta de meu pai e, mesmo que – 32 – sentisse, de nada adiantaria; ele estava morto há um ano. Dos oito filhos que tivera em seus dois casamentos, só eu e Anna, do último, é que restávamos vivos. Ele já perdera três filhos diabéticos, e quando fiquei diabético, aos três anos, enlouqueceu: poderia ser o quarto. Começou a estudar tudo sobre a doença que já conhecia um pouco, passando ele mesmo a ser meu médico. Minha dependência dele ficou total. Aplicava as injeções de insulina, fazia os exames de glicose e ditava minha dieta e todo o necessário para o equilíbrio da doença. Sua preocupação com a diabetes e, conseqüentemente, comigo era enorme. Entre ele e eu existiu sempre a diabetes. Para mim, isso era algo intransponível. Sempre tive tudo que quis em termos materiais, inclusive além de suas posses, segundo sei hoje. Aos quinze anos comecei a me angustiar muito com minha situação de dependência, que não era só financeira, como a de meus colegas, mas física. Precisava dele para viver. Como todo cara nessa idade, comecei a querer viajar, conhecer lugares novos, sair em excursões do colégio e coisas assim, e sem ele não dava, porque, mesmo que no grupo houvesse alguém que conhecesse a doença e soubesse aplicar injeções, ele não me deixava ir, alegando ser o único a conhecer bem a minha diabetes. Além disso, outra coisa também me angustiava: a idade do meu pai. Quando nasci, ele tinha cinqüenta e três anos, vinte a mais do que minha mãe, com idade para ser meu avô. Nos meus quinze anos, já estava ele com seus sessenta e oito. Eu sabia que não iria ter um pai para sempre. Comecei eu mesmo a tratar da minha diabetes e também a trabalhar. Queria simplesmente tomar posse de minha pessoa, e aí começaram nossos conflitos. Fazia de tudo para que eu não trabalhasse, inclusive argumentando que era época de estudo e não de trabalho. Quanto à diabetes, sempre arrumava um jeito de dizer que eu estava fazendo algo errado. Aquilo me transmitia muita insegurança; meu crescimento como pessoa estava sendo barrado. Mas não só como pessoa, como homem também. Lembro-me de que a primeira vez em que bati uma punheta ensinado por um colega, contei para ele, satisfeito, com orgulho de quem estava fazendo coisa de homem. Ganhei dele a única porrada que me deu na vida. Na primeira vez em que transei com uma mulher, ganhei bronca em vez de elogio. – 33 – Não conseguia entender aquela pessoa, nascida em 1903, no início do século XX e que ainda trazia consigo todas as tradições da educação de sua época. Ele queria uma criança do sexo masculino e não um homem dentro de casa. Passei a ficar dividido entre as delícias do meu sexo, minha liberdade e crescimento e as repressões do meu pai. Os conflitos que tinha comigo mesmo aumentaram tanto quanto os que tinha com ele. Era uma eterna batalha entre o amor e a raiva. A morte dele, aos meus vinte anos, mexeu muito com minha cabeça. Era a liberdade e a saudade convivendo furiosas. Com ele vivia numa gaiola de ouro. Uma gaiola, mas de ouro. Agora poderia voar, mas para onde, e como? O avião pousou junto com o entardecer em Curitiba. Para completar a história: poucos meses depois da morte de meu pai, minhas relações sexuais começaram a ficar gradativamente mais difíceis. O fato de a ereção ficar cada vez mais penosa me deixava angustiado. Passei a só ir para a cama com alguém quando minha tara era absoluta e a minha química com a da pessoa estava completamente a favor. Comecei então a fazer sexo muito menos do que desejava e do que fazia antes, e para esquecer meu sofrimento eu o afogava principalmente com vodca e Mandrix. Esse processo se intensificou cada vez mais e a doideira era a ordem do dia, de todo dia. Desde os quinze anos já conhecera o “fumo”, mas agora não sabia mais distinguir entre a curtição e a necessidade. O aeroporto estava cheio; me informei e peguei um ônibus para a casa de Su e Jô. Su abriu a porta, sorridente, demonstrando grande satisfação por eu estar ali. — Que é que houve? A gente estava te esperando pra ontem! — Pra ontem? Como? — Achei a coisa muito esquisita, já que nem eu mesmo sabia que iria viajar! — Como é que você soube? — Ah! Um passarinho me contou. — Passarinho? — É, um colega de Ucho que conhece o pessoal lá do Rio. Acho que ele estragou a surpresa que você queria fazer, não? – 34 – — Não, Su, estou completamente surpreendido, ele só trocou a surpresa de lado. — Você? — É, eu. Hoje de manhã nem sabia que vinha pra cá! Como é que ele sabia que eu vinha? Su riu sem entender, e eu menos ainda. Pouco tempo depois, ao saber com Ucho quem havia dado a notícia, percebi logo que o cara traduzira a vontade que eu tinha de ir curtir um pouco por lá por algo muito mais concreto, do qual decididamente eu não falara. Decididamente talvez seja uma palavra um pouco radical para quem, naquela época, por vezes não sabia o que tinha feito ao certo no dia anterior, só tomando conhecimento das loucuras através dos outros. Mas, no caso do cara que anunciara a minha chegada, com data marcada e tudo, não tinha lógica eu ter falado com ele de algo que nunca decidira antes. Fui apresentado a Ucho, no Rio, por Su e Jô, mas ele fazia programas completamente diferentes dos da gente. Naquela noite, passamos a madrugada inteira conversando até o amanhecer. Eu o achei um cara incrível, muito descolado; me senti um pouco filhinho de papai diante dele. Apesar dessa diferença, surgiu uma amizade incrível entre nós. Vinte dias de convivência diária fizeram com que a gente se ligasse muito. Seu sonho era morar num sítio perto de Curitiba onde pudesse ficar com a natureza e visitar a civilização de vez em quando, trazendo amigos para conviver com ele. Plantaria para sobreviver. Achava seu sonho um barato, e apesar de Ucho ter um jeitão meio urbano, também havia alguma coisa nele que me dizia que poderia se dar bem. Acho que era a facilidade com que fazia as coisas sozinho e seu desligamento, pelo menos geográfico, da família. Tinha cinco anos a mais do que eu e já havia cursado vários anos de Administração. Desistira para fazer vestibular de Engenharia Agronômica e começar a concretizar seu sonho. Eu dava a maior força e, às vezes, brincava dizendo que ele já tinha o sítio na casa dos pais, já que – 35 – decorara o seu quarto e o do irmão com um carpete verde e armário de cerejeira. Mas parece que aquele sítio não estava legal, pois ele já havia saído de lá. Passei muito tempo ligado a Ucho, e até hoje sinto falta de nossas conversas. Valquíria também me marcou muito. Era sócia de Jodécio numa transação que estavam fazendo juntos. Sempre tive atração por mulheres altas, talvez pelo fato de minha irmã ser alta e ter sido durante toda a adolescência um símbolo de beleza para mim. Valquíria era alta e seu corpo estava em perfeita harmonia com a beleza de seu rosto. Mas não era chamativa, pelo contrário, era discreta, e foi nessa discrição tranqüila que a fui percebendo, dia após dia. Fui me envolvendo aos poucos com aquela presença feiticeira. Ucho e eu começamos a ajudar Jô e a ela no trabalho. Por vezes passeamos juntos naquele Opala duas portas branco, bebedor de gasolina. Não sei por que, o carro parecia muito com a gente e me levava a criar milhões de fantasias. Ela tinha um rosto decidido, um olhar lento mas preciso. Quanto mais próxima de mim, mais angustiado eu ficava. Será que ela compreenderia meu “lance” sexual? Que merda, uma mulher ter de compreender o meu “lance” sexual! Todas com quem eu fazia sexo não participavam mais do meu grupo, para não ter de encarálas de novo, caso algo desse errado. Ficar doido de prazer numa cama, perder as rédeas da razão e o pau não ficar duro deixa qualquer um maluco. Ela me ajudaria, é lógico, mas eu não queria precisar de ajuda. — Já reparou como Valquíria te olha, Marco? — Não, Su, como? — Acho que ela está ligada em você, ainda não percebeu? — Não brinca não, Su. — Não estou brincando, estou te falando o óbvio, tá na cara. Você não é tão inocente e alienado assim. É claro que eu havia percebido Valquíria. Su é que não havia me percebido: eu fugia, tinha medo da ameaça de impotência sexual que me perseguia mesmo tendo apenas 21 anos! Estávamos em dezembro de 77, e eu, para comemorar o mês, o ano, a data, me entupi com umas bolinhas que um amigo de Ucho me – 36 – arrumou. Tínhamos ido assistir a um show das Frenéticas num ginásio e não me arriscava a sair da arquibancada; sabia que seria um tombo só. Eu não podia gostar de alguém, não devia gostar de alguém. Mas Valquíria estava lá, me agitando com seu corpo, me agitando com seu olhar, me agitando com seu jeito. E dá-lhe vodca, e dá-lhe vinho branco e seco, e dá-lhe “fumo”, e dá-lhe bolinhas, qualquer coisa que desse doideira. Ucho foi passar o Natal no litoral, com a família. O Natal transcorrera pela primeira vez longe de casa. Eu, Su e Jô. Dois dias depois iria embora. Novamente fugindo, e agora mais ainda. Por uma impossibilidade de Su e Jô, Valquíria foi me levar à Rodoviária. Chegou muito tempo antes da partida do ônibus para me pegar. A certa altura, ela me disse que estava gostando de mim. Dei-lhe a mão e nos abraçamos. Foram instantes angustiantes de liberdade. Na porta do ônibus nos beijamos. Estava apaixonado. Na viagem, durante a noite, uma estrela acompanhou o ônibus. Pensava que não precisava estar ali vendo aquela estrela sozinho. Aquilo me doeu durante um tempo. Nessa viagem de volta, pensei que Curitiba havia sido realmente muito importante para mim. Sueli, Jodécio, Ucho, Valquíria e tantas outras pessoas, lugares e programas. Mas, infelizmente, o Marco Antonio que pensara ter deixado no bar viera comigo. Lembrei-me de Quique, que também havia conhecido em Curitiba através de uma gravação de fita cassete em que ele relatava o que lhe estava acontecendo em Paris. Tudo o que ele dizia naquela fita era muito profundo, muito forte, muito humano. Fiquei impressionado com ele. Dois dias antes do Natal atendi a um telefonema na casa de Su e era Quique, de Paris, e não havia ninguém em casa a não ser eu. Ele havia feito um trambique telefônico e por isso conversamos muito. E se eu mudasse de país, como o Quique? Tudo seria muito mais novo. Será que me esqueceria um pouco? Cheguei à conclusão de que poderia ir para o Japão e nada mudaria se eu não mudasse. Muitas sensações juntas rondavam minha cabeça, desorientadas, e eu voltei a rondar os bares nas noites do Rio. Queria mudar mas não sabia como, o Ano-Novo que me dissesse. – 37 – Comecei a noite do dia 31 bebendo em casa do Guilherme — eu, ele, Odil e Marco Antonio, meu xará. Eu era o único que estava de carro e tinha um réveillon no Silvestre para onde as pessoas estavam a fim de ir. Não me lembro mais de quem foi àquela festa comigo, ou melhor: com quem cheguei lá. Só me lembro de que entrei agarrado com uma menina que logo se descolou. Era uma casa antiga, de quatro andares, entupida de gente, e estava tudo muito louco. Tinha samba no 1o andar e rock no último; encontrava-se qualquer coisa para ficar doidão. A alucinação era geral. Não sei até hoje se o pessoal estava fantasiado ou não. Tinha de tudo: machões radicais, homossexuais ousados, gataças supersensuais, casos de fulanas e noivinhas de beltranos. Não entendia aquela convivência fraternal e carnavalesca entre seres tão diferentes. Não sei quantas pessoas abracei e beijei naquela noite até me dar conta de mim: estava muito sozinho. Lá pelas tantas, percebi que já tinha nego fazendo sexo para tudo quanto é lado e que aquilo estava ficando festa de cabide. O clima era realmente de alucinação; já havia imaginado uma festa assim, mas nunca passado por uma. Só estava vendo a hora de pintar polícia. A coisa estava demais, mas devia ser porque eu já estava ficando careta. Um restinho de lança e uma cafungada: fórmula perfeita para tudo voltar ao normal. Não havia mais nenhum conhecido por perto. Deviam ter se perdido por lá, só me recordo que ganhei um arrocho de uma menina e o velho Marco estava ativo — que bom! Bom para o orgulho e bom para o prazer, mas tudo muito vazio. Resolvi assistir ao nascer do sol na praia. Saí à procura do meu carro, o “Abricô”, segundo Su. Ele era marrom-escuro e talvez fosse a melhor companhia para o resto do réveillon. Eu ia saindo quando um cara me segurou pelo ombro, me abraçou, me beijou no rosto e disse: — Boas festas e feliz 78! No portão encontrei dois conhecidos que tinham vindo comigo. Encontrei também o pára-lama do “Abricô” amassado, para maior glória da noite. Tudo bem; fomos para o Arpoador. Amanhecia quando lá chegamos. Um cara de uma rádio FM fazia um grande carnaval com outros caras e meninas em cima de carros, transmitindo a farra para – 38 – toda a cidade. Era uma rádio totalmente nova e informal, informalidade que se espalharia por todas as FMs do Rio. Ciidaaaaadi! A rádio mudava, o Rio mudava. E eu? Subi a pedra para esperar o sol nascer. Fiquei olhando para o mar, o céu, as pedras. Para as pedras, o céu, o mar... Aquilo era muito bonito, mas me sentia estranho, percebendo em mim, simultaneamente, alegria e depressão. De repente, um pedacinho de sol surgiu no mar, no horizonte, dentro de mim. Aos poucos ele apareceu inteiro, enorme, junto ao mar. Puxa! Nunca tinha visto esplendor tão grande... Estava isolado do mundo: eu e o sol. Uma brisa me envolvia; era como um sopro de vida em meu corpo. Um sopro no corpo que me acendia e me despertava para a necessidade de uma mudança. Alguma coisa me fez levantar, alguma coisa me fez chorar e aplaudir, mas não só eu aplaudia. De repente comecei a me sentir feliz, a descobrir a beleza do mundo dentro de mim, e não estava sozinho, muitos estavam ali compartilhando aquilo. Valeu, valeu, valeu! Esta cena não sai da minha cabeça. Tenho até hoje um sol no meio da testa. Será que 1978 começava, espontaneamente, a me mudar? – 39 – Europa Urgente O acidente que me deixou engessado aqui na cama foi registrado na 9a DP pelos culpados. Fiquei bastante cabreiro, porém, pela forma como foi feito. Um cara de nome Manoel registrou o acidente dizendo que sua mãe havia atropelado uma moto na Ladeira dos Guararapes, mas que não poderia comparecer à delegacia porque estava muito nervosa. O estranho é que a testemunha com a qual falei disse que todo mundo viu, inclusive ela, que não havia mulher alguma e sim três homens que saíram de dentro do carro para tirar a moto que estava debaixo dele e depois fugiram. Se a testemunha está certa, só há duas possibilidades: ou quem dirigia o carro não tinha carteira e os outros não quiseram se responsabilizar pelo acidente, ou a mãe de Manoel estava muito bem travestida. Resolvi telefonar para tentar negociar meus gastos e falei com Manoel. Primeiro, me baseei na culpa que eles tinham no acidente e depois na contradição entre o registro e a testemunha. Ele escutou tudo calado e, ao final, perguntou quanto havia sido a despesa. Interpretei seu silêncio e sua pergunta como a confirmação de que minha testemunha falara a verdade. Disse que iria conversar com a família e me telefonaria depois. Ainda liguei duas vezes e recebi a resposta de que eles estavam contratando um advogado. Acho muito estranha a consciência de alguém que sabe da própria culpa, mas foge na hora do acidente. Foge das responsabilidades posteriores e também da educação e da consideração humana, visto que jamais quiseram saber como eu e Cleber havíamos ficado. Se o caso não é grana, como sei, sinto pena dessa família tão desprezível do bairro de Laranjeiras. O sol anunciara mudanças para 78, mas janeiro ficou entre a solidão das leituras em que procurava me isolar e a solidão dos programas – 40 – em que procurava gente. O tempo passava, as pessoas passavam e eu não me liguei no tempo, nem nas pessoas, nem em mim, e sim no vinho, na vodca, no drake, nos xaropes, no optalidon, no fumo, na coca. Eu não me ligava, algo me ligava em nada. Pensei em morar em qualquer lugar para deixar de ser carioca. Olinda, Arembepe, São Lourenço, Curitiba, qualquer lugar. Mas me lembrava de Curitiba e percebia que nunca poderia ficar na mesa de um bar indo embora. O problema não era a cidade, nem seu rebu maravilhoso; era eu. Em fevereiro, no entanto, uma grande mudança estava para acontecer: pane em minha visão. Dizem que Deus “dá o frio conforme o cobertor”, mas no meu caso penso que ele exagerou no frio, e que o agasalho poderia ser mais caprichado. Como se não bastassem a morte de meu pai e o processo de impotência sexual pelo qual estava passando, outro processo começou a entrar no ápice. Uma pessoa se diz diabética quando tem insuficiência de insulina no corpo. A insulina digere os açúcares ingeridos pela pessoa, transformando-os em energia. Quando há insuficiência dela, sobra açúcar no sangue. As moléculas de açúcar vão se aglomerando e entupindo os menores vasos sangüíneos. As manifestações mais alarmantes desse processo em mim foram no sexo, como já vinha acontecendo, e nos olhos. Pode-se chegar, no entanto, a outras conseqüências crônicas, como perda das funções renais, neuropatias, cardiopatias, etc. Percebera pequena diminuição em minha visão em novembro daquele ano, 1977, antes do Natal, mas que não me afetou em nada. Continuava a ler, dirigir, enfim, a fazer tudo o que fazia antes. Preferi não usar óculos. Não sabia, porém, que a questão não era usar ou deixar de usar óculos, mas algo muito mais problemático. Fora as dosagens de insulina, o controle que eu estava fazendo da diabetes era, praticamente, nenhum. A maioria dos diabéticos, pela própria proibição de comer doces, como também por questões orgânicas, tem compulsão a entrar nas padarias mais próximas, atacar a geladeira à noite e se lambuzar do proibido. Assim, acabam comendo mais doces do que qualquer pessoa comum ou, no míni – 41 – mo, igual. Acho que isso faz parte de uma coisa de cabeça que vai crescendo dentro da pessoa. Lembro-me, com nitidez, de minha sensação ao tomar Coca-Cola na praia; se pudesse, eu o faria com um grande letreiro na testa: “Vejam, estou tomando Coca-Cola, sou igual a todo mundo...” Mas é lógico que, apesar de sempre ter feito tudo o que uma pessoa pode fazer, tendo ou não diabetes, a questão é que eu não me sentia igual a todo mundo. E, efetivamente, não sou, porque nem todo mundo é diabético. Além de meu descontrole alimentar, eu ainda estava sendo sobrecarregado pelo álcool, rico em calorias e açúcares, e pelas drogas. Algumas drogas até ajudam a queimar açúcar pela agitação que produzem na pessoa, mas eu me servia muitas vezes, por exemplo, de chá de cogumelo, feito de cogumelos, é óbvio, mais vinho e mel. Na sexta-feira, antes do carnaval, resolvi dar uma volta de carro pela praia, como sempre gostava de fazer. Ir até o Arpoador, parar o carro, ligar o rádio, observar um pouquinho as pessoas que passavam e o mar... (Hoje já não se pode mais parar o carro no Arpoador.) Sempre morei perto do mar e tive uma relação incrível com ele. Sempre o achei uma coisa misteriosa e bonita, aparentemente, pelo menos, muito mais intocável que a terra. O homem faz construções em cima da terra e a transforma. O mar está eternamente ali, igual a si mesmo. Sou da época, também, em que se podia fazer amor em alguns recantos da praia de Ipanema e Leblon, pois não havia luz fria nem assalto. Ia passar pela Vinícius de Moraes, era sexta-feira antes do carnaval, eram quatro e meia da tarde, e o dia estava claríssimo. De repente, duas luzes vermelhas. Estremeço. Fixo a vista: um carro branco, parado, perto. Piso no freio, jogo o carro para a direita, estou em apuros. A roda traseira bate no meio-fio. Jogo uma segunda, acelero, controlo o carro e avanço o sinal. Meu corpo formiga e suo. Vou embora. Devo ter dado um grande susto no dono do automóvel, mas tão assustado, ou mais, fiquei eu. Como pude não notar o sinal fechado? Como pude não enxergar o carro parado? E se tivesse alguém passando? Simplesmente, já era... – 42 – Mais adiante, procurei verificar o que estava acontecendo com minha visão. Parei ao lado de dois carros cinza-metálicos. Atravessei a rua e olhei para eles: não conseguia distinguir um do outro. Fui atrás de carros de cores claras para saber o que tinha acontecido. Peguei um branco que sumia na distância com a claridade do dia. Eu não estava conseguindo ver senão por contrastes. Fui dirigindo bem devagar para casa, morrendo de medo de encontrar coisas sem contrastes pela frente. Que loucura!... Encostei o carro na garagem com dificuldade: ela era escura. Fui até a rua e reparei que não conseguia ver o número dos ônibus, a não ser quando estavam parados no ponto. Fui para casa e percebi que, para ler, tinha quase de colar meu nariz no jornal. Aquilo, sim, era uma queda sensível de visão de um dia para o outro. Decidi que, logo que passasse a Quarta-Feira de Cinzas, iria procurar um oftalmologista. Estava assustado. Saí aquela noite, mas voltei cedo. Angustiava-me muito o fato de não poder distinguir a cara das pessoas do outro lado da rua, e por várias outras coisas que fui notando: não estava conseguindo enxergar. Por exemplo: espatifei um copo num balcão de vidro de um bar. Mas essa angústia estava acumulada também porque fazia uma semana eu havia decidido ficar careta. Mas, se não conseguisse, pelo menos um pouco mais careta. Alguns dias antes, eu entrara no Billy’s, um bar do Baixo Leblon, hoje com outro nome. Havia me empapuçado de optalidon e, quando começava a vir a ressaca química, pedia um steinhager e um chope. Foi a segunda e última vez em que tomei steinhager. Tocou uma música do Milton Nascimento na FM do bar, e uma frase me chamou muito a atenção: “Onde está a rainha que a lucidez escondeu...” Sim, onde estava o Marco Antonio expansivo, comunicativo, amigo de todo mundo? O Marco Antonio que saía beijando e abraçando mesmo quem não conhecesse? Esse Marco Antonio estava num copo, numa carreira, numa bola? E se estivesse? Mesmo assim não estava gostando muito dele. Onde estava o Marco Antonio que todos diziam narciso, apaixonado por si mesmo? A melhor pergunta seria simplesmente: onde está o Marco Antonio? Nada iria conseguir tirar de mim alguma coisa que eu já não tivesse. Eu estava enjoado dos meus – 43 – esquecimentos, duro de grana, tentando, portanto, me separar daquilo, mas muito angustiado. Dormi naquela sexta-feira pensando que, apesar de tudo, tinha resistido a mais um dia careta. Acordei no sábado de carnaval, cheio de preguiça. O quarto estava escuro e não me levantei de imediato. Quando fui ao banheiro para me lavar fiquei sem entender nada: estava vendo tudo difuso, avermelhado, borrões mais escuros, outros mais claros, aqui e ali. Lavei bem o rosto e saí imediatamente em direção à sala, onde, com mais claridade, poderia perceber melhor o que acontecia. O vermelho ficou um pouco mais transparente, mas estava tudo igual. Gritei. Minha mãe, que já havia me dado um bom-dia distraído quando passava pelo banheiro, veio rapidamente. — Não enxergo nada direito. Tá tudo vermelho. Tem sangue na minha vista! — É melhor você acabar de acordar, Marco... — Ela não tinha se ligado ainda em minha agonia. — Mamãe, quero o telefone daquele médico a que o papai me levava de vez em quando pra ver os olhos. — Mas hoje não deve ter ninguém lá, filho. — E o sobrenome dele? Qual o sobrenome? Vamos ver no catálogo. — Ah, deve ter alguns com o sobrenome dele, é Abreu Fialho. — Ora, porra, vamos tentar! Nunca falava palavrão na sua frente. Ela começou a achar que a coisa devia estar preta mesmo. Conseguimos localizá-lo e combinei ir a seu consultório após o almoço. Tentei me lembrar de pessoas que tivessem tido hemorragia na vista para entender o que houve depois. Lembrei-me de uma senhora de idade, vizinha do prédio, que encontrava sempre a caminho da padaria. Bem, pelo menos enxergar ela enxergava. Procurei me tranqüilizar com isso. Fui aplicar minha dose diária de insulina e percebi que não dava para ver a quantidade que estava entrando na seringa. Pedi para minha mãe que visse por mim e apliquei eu mesmo. Aplicar não era difícil, aplicaria até de olhos fechados. Era simplesmente uma injeção subcutânea. – 44 – Clareei o quarto e deitei. Fiquei esperando o tempo passar, mas não pude me tranqüilizar. Olhando para a direção da claridade da janela reparei que novas bolhas de sangue surgiam nas duas vistas. Não dá para expressar a angústia que se sente nessas horas, mas é muita. Não sabia o que era ser realista naquele momento. Entramos no consultório do Dr. Abreu Fialho. Eu, mamãe e Anna, minha irmã. Já não andava sozinho, ia com a mão no ombro de Anna. Ele foi cuidar dos aparelhos e ficamos na sala de espera. Todo o ambiente era uma mistura maluca de bege com vermelho. As paredes e o chão eram beges, o vermelho minha vista colocava. Ficava uma mistura de cores enervante. Um longo e silencioso exame e, finalmente, entramos no escritório. — Você está tendo uma retinopatia diabética. É o seguinte: os vasos vão se entupindo de açúcar até que chega uma hora em que a pressão do sangue os faz estourar. Você sabe como anda a sua diabetes? — Não, não sei. Tem muito tempo que não faço exame, e também tem muito tempo que não faço regime, mas acho que tá tudo bem. Não tenho me sentido mal. — Não, não está tudo bem. Caso contrário a sua vista não estaria assim. Procure um bom endocrinologista e se trate. Para o que está acontecendo com seus olhos, só há um lugar aqui, onde é feito um tratamento de fotocoagulação com raio laser. — Raio laser? — É um tratamento novo que está surgindo na oftalmologia. Ele vai procurar desobstruir as áreas atingidas pelas hemorragias e tentar também evitar que novas áreas sejam atingidas. Mas, se eu fosse você, não faria isso por aqui. O pessoal ainda não tem muita experiência. Meus olhos não estavam mais com sangue, mas com cifras. Raio laser me cheirava a coisa muito cara, ainda mais fora do Rio, e eu não conhecia ninguém em São Paulo. Onde seria afinal: Rio ou São Paulo? – 45 – — Se os meus olhos fossem os seus, eu iria para a Clínica Barraquer em Barcelona. — Barcelona? — É, Espanha. Gelei. Acho que perdi também todo o meu colorido de verão. Espanha! — É o melhor lugar para você se tratar. Se eu fosse você, arrumaria um jeito de ir. Tem a aparelhagem mais moderna e é um grande centro de pesquisa. Fiz a minha pós-graduação em Barraquer. Sei que um médico de lá está aqui no Rio, passando o carnaval. Vou tentar me comunicar com ele e fazer com que venha te examinar aqui amanhã. Ele é mais autoridade do que eu no que você está passando. Eu telefono hoje à noite para você. Entendi, como já esperava, que o meu caso tinha solução. Agora, era uma questão de eu conseguir me encaminhar para a melhor. Chegamos em casa e eu ainda tentei falar com algumas pessoas para saber sobre a clínica e percebi que eu tinha mesmo de ir para lá. À noite, Dr. Abreu Fialho ligou confirmando a consulta no dia seguinte, domingo. O barulho de carnaval da cidade, Dr. Abreu e Barcelona invadiam minha cabeça. Fiquei imaginando que, se o médico espanhol confirmasse a necessidade de minha ida, teria de vender o carro e tudo o mais que pudesse, tirar todo o dinheiro da poupança e ainda pedir emprestado. Mesmo assim, não sabia se iria dar. Mas no fundo, estava torcendo para ter de ir. Faria o tratamento e ficaria numa boa, em plena Europa. Poderia passar por uns dias brabos, mas depois era só curtir um grande sonho, um velho sonho. No entanto, com quem iria? As pessoas depois do carnaval recomeçariam a estudar ou trabalhar. Minha mãe não era tranqüila o suficiente para ir comigo e, não sei por que, pensei logo em enfermaria masculina do INPS,1 onde mulher não entra. Além disso, quando acabasse o tratamento, o que faria? Pediria para ela voltar 1. N.E.: Instituto Nacional de Previdência Social, atualmente Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). – 46 – e ficaria por lá aproveitando? Seria mais um motivo de briga entre a gente. Queria uma pessoa de minha idade, um cara esperto e descolado que me ajudasse a gastar o mínimo possível em acomodação e comida para ver o que se podia fazer depois. Ele não poderia ter nenhuma obrigação fora do período de férias e, além do mais, a gente tinha de se dar minimamente bem de cabeça. Pensei, pensei, pensei e encontrei logo a resposta: ninguém. Bom, mas deixaria isso para depois; nem sabia ao certo se teria de ir mesmo. O exame foi demorado e cansativo. Enquanto isso, o espanhol falava termos técnicos com meu médico e eu não entendia nada. Isso me deixava ainda mais ansioso. Mas a angústia aumentava quando os dois ficavam calados. Eu fazia tudo o que eles pediam: “Olhe pra cima, olhe pra baixo, para a esquerda. Arregale bem o olho.” Não sei o que eles tanto viam se só tinha sangue. Entramos mais uma vez naquele escritório, aquele era o lugar das grandes decisões. Sentei-me ao lado do Dr. Abreu Fialho e percebi, com a confirmação da audição, que ele folheava um livro enquanto o espanhol lhe dizia alguns nomes estranhos. — Fique tranqüilo; ele está me dizendo o nome de algumas substâncias e eu estou pesquisando em que remédios elas se encontram aqui no Brasil. Bem, se ele está procurando remédios para eu tomar aqui, de duas uma: ou eu não vou precisar ir para a Espanha, ou simplesmente preciso tomar remédios imediatamente. Continuava, portanto, sem a mínima dica. O espanhol começou a falar bem devagar para que eu entendesse. Apresentou-se como Dr. Dutrenitch. Quando eu fazia cara de pateta, por não estar entendendo nada, o Dr. Abreu Fialho traduzia para mim. Às vezes, uma palavra que eu não entendia acabava com o sentido de toda a frase, e por vezes, também, uma frase dava sentido à palavra que eu não entendia. Fez-me algumas perguntas do tipo: “Quando aconteceu?” Ou: “Como está a sua diabetes?”. Coisas do gênero, mas o importante, o que ficou gravado, foram principalmente três coisas. – 47 – A primeira era que a minha vista esquerda estava bem melhor que a direita e, portanto, seu tratamento seria mais fácil. Eu não percebia tanta diferença, mas ele me disse que não era a quantidade de hemorragia e sim as áreas que as hemorragias haviam atingido numa vista e na outra. A segunda era que, se tudo desse certo, eu iria ficar apenas um pouco prejudicado da visão periférica. Já não gostei muito da idéia de saber que, mesmo tudo dando certo, uma parte da visão seria reduzida. A terceira, mais importante e decisiva, é que para isso acontecer eu precisaria estar no máximo na segunda-feira seguinte na Clínica Barraquer, em Barcelona, Espanha. Ou seja: tinha oito dias para chegar lá, caso contrário, poderia perder definitivamente a visão. Estávamos no domingo de carnaval, fiquei assustado. Teria de vender o carro, arrumar passaporte, comprar passagem, tudo quinta e sextafeira, visto que Quarta-Feira de Cinzas quase nada funcionava. E quem estaria a fim de comprar um carro em pleno carnaval? Como é que eu arrumaria alguém para ir comigo tão rápido? Dr. Dutrenitch falou, com um jeitão meio paterno, que iria para lá quinta-feira e que me esperaria. Expliquei-lhe minha situação financeira, e ele me disse que daria um jeito de o tratamento não ficar muito caro. Dr. Abreu Fialho procurou dar sua força me dizendo que conhecia um despachante que, recebendo uma graninha por fora, conseguia o passaporte muito mais rápido. Mamãe disse logo que tinha “um dinheirinho” na poupança, e Anna, que me ajudaria a vender o carro e que a gente conseguiria isso de qualquer jeito, nem que vendesse bem mais barato ou o desse como garantia de um empréstimo. Todos me davam força, e eu não sabia mais se os meus pés estavam no chão, apesar de ter de ajeitar tanta coisa para poder ir. Estava preocupado e tenso, mas, ao mesmo tempo, bastante satisfeito por ir para a Europa. Vinte e um anos é uma idade ótima para a gente entrar de cabeça nas coisas, inclusive para aquela aventura criada pelas circunstâncias. Mas ainda restava uma questão fundamental: quem iria comigo? Pensei em vários colegas, e todos tinham algum compromisso. Dr. Dutrenitch não me deu um prazo certo para tratamento, mas disse que no mínimo seriam dois meses. — Sim, Bibi..., é claro! – 48 – Conheci Bibi fazendo um curso de teatro no Parque Lage com minha irmã. Anna falava muito do curso e das pessoas. Fui lá assistir a algumas aulas e acabei ficando. Conheci muita gente incrível, mas me liguei principalmente a ele. Era de Ribeirão Preto e tinha vindo ao Rio tentar alguma faculdade de arquitetura. Eu já fazia o curso de história na Federal, mas ele acabou me convencendo a fazer vestibular em janeiro para dar uma força. Fizemos as provas juntos e acabei passando, ele não. Teve de voltar para Ribeirão, não devia estar fazendo nada. Seria uma companhia fantástica! Anna, porém, sugeriu Carlos, seu namorado, que também era do teatro. A vantagem era que, por ser português, ele já possuía passaporte. Além disso, seu pai era um alto funcionário numa companhia de aviação e poderia facilitar as coisas, pelo menos as passagens para ele. Eu o conhecia, mas não muito bem, de qualquer forma parecia gente fina. Não estava estudando nem trabalhando. E, além disso, apesar de seus dezenove anos, por conta do cargo do pai, já tinha ido muito ao exterior. Perfeito! Não foi muito difícil convencê-lo a ir; eu iria pagar tudo, menos suas passagens, que ele conseguiria com o pai. Tudo foi dando certo. Vendemos o carro e juntamos todo o dinheiro que tínhamos: quatro mil dólares, além do preço das passagens. Falei com o despachante e tudo Ok. Sexta-feira estaria pronto meu passaporte. Tudo perfeito até a hora de irmos comprar as passagens na quinta-feira; os vôos estavam lotados até duas semanas após. O máximo que conseguimos foi sermos os primeiros da fila de espera em todas as companhias a partir de sexta-feira, quando eu já teria o passaporte. Tinha de chegar lá no máximo na segunda-feira. Aí fiquei louco. Eu poderia adivinhar que ia tanta gente para a Europa! Na sexta-feira à noite soubemos de uma desistência para o sábado. Asseguramos o lugar para Carlos ir na frente e, caso não houvesse outra desistência no sábado, ele arrumaria as coisas por lá e me esperaria. Não havia vôos diretos para Barcelona, todos eram para Madri, e lá se pegava uma ponte aérea. Isso já me deixou tenso; como iria transladar de um avião para o outro e esperar num aeroporto só enxergando borrões vermelhos? No sábado ainda soube que vagara um lugar para Lisboa, no domingo. De lá seria fácil chegar a – 49 – Barcelona. Deixei meu nome a confirmar, pois ainda tinha esperanças de arrumar um vôo direto para Madri. Uma ponte aérea é sempre mais fácil de conseguir do que um vôo internacional Portugal– Espanha. Eu estava tenso, muito tenso, apesar de tentar disfarçar. Sempre me tiveram como um poço de tranqüilidade, só que não sabiam o que havia no fundo, mas também não era difícil de imaginar... Quase dez horas da noite de domingo e eu continuava a ter de ir por Portugal, mas tudo bem: àquelas alturas eu já topava qualquer coisa, pois saindo no domingo ainda chegaria lá na segunda-feira, dia final do prazo. Fui com malas e bagagens para o aeroporto e, às onze e meia, recebi a grande notícia: vagara um lugar no vôo da Varig para Madri com escala em Roma. A companhia ainda por cima me garantiu que todos seriam avisados de meu problema, que fariam o meu translado em Madri para Barcelona e que seria bem acompanhado. Na hora de sair, me despedi do pessoal com emoção. Eram mamãe, Marco Antonio, Guilherme e Chico. Anna foi comigo e nos apresentamos ao embarque. Logo chegou uma funcionária e perguntou se eu era o rapaz deficiente visual; falei que sim. Ela me disse que estava ali para me acompanhar até o avião. Achei legal, senti-me seguro. Perguntei se minha irmã poderia entrar comigo e ela disse que sim. Fiquei mais satisfeito ainda. Só achei estranho o termo “deficiente visual”, que nunca havia escutado se referindo a mim; era uma novidade. Ficamos um tempo numa sala de espera onde havia muitas pessoas, provavelmente as que iriam no mesmo vôo que eu. A funcionária me informou que já havia marcado o meu lugar, e era uma poltrona legal, para ficar bem à vista do comissário e da aeromoça. Ótimo! Entramos por um corredor que, logo descobri, era um tubo que ia dar no avião. Já vira isso em fotografia. Na porta do avião me despedi de Anna. Agora era só eu. Se já estava aprendendo a ser decidido tinha de ser mais ainda. Por mais que a empresa tivesse armado o maior esquema para mim, qualquer coisa que acontecesse aconteceria comigo e com mais ninguém. Embora me sentisse aliviado por poder seguir minha trajetória, tive também muito medo. A semana se passara com muita tensão, providenciando tudo para eu poder viajar. E, finalmente, estava ali! – 50 – Anna foi embora e entrei com a funcionária. Agora eu estava só, até Barcelona o negócio era comigo, só comigo. Ela me apresentou à aeromoça e ao comissário, que reagiram como se já soubessem de mim. Legal! Colocaram-me numa poltrona que dava para um corredor por onde passava muita gente. Percebi também, pelo murmúrio das pessoas, que realmente o avião devia estar lotado. Procurei me ater a todas as coisas externas para não tomar muito contato com o medo que estava sentindo. Sabia que estava passando por uma experiência marcante, que não era comum uma pessoa em tão pouco tempo, uma semana, reduzir tanto a visão a ponto de ter de ir para a Europa com tanta urgência. Não é fácil para ninguém que não esteja acostumado encarar uma viagem internacional sozinho, ainda mais quase cego. Carlos, porém, já devia ter chegado a Barcelona; o que será que ele arrumara por lá? Era um cara esperto, falava várias línguas, já devia ter descolado uma pensão e avisado o Dr. Dutrenitch de nossa chegada. Provavelmente, pela manhã já iria me esperar no aeroporto. Pensar nisso era um alívio para mim. A aeromoça veio apertar meu cinto, coisa que eu já havia feito. O avião levantou vôo num tremendo silêncio: era realmente um baita avião. Logo depois, perguntou se eu queria colocar um fone para escutar música, me mostrou o cinzeiro, coisa que eu já havia percebido, e me ensinou a utilizar e para que serviam os botões do braço da poltrona. Um deles servia para chamá-la, ou ao comissário, mas mesmo sem eu chamar eles apareceram mais duas vezes para perguntar se queria alguma coisa. Desconfiei, com o tempo, que eles estavam com medo de eu não acertar o botão. Apertei-o e disse para ela que sabia qual era e, mesmo que me perdesse, apertaria todos; um, eu acertaria. Minha cabeça estava a mil. Comecei a conversar, então, com um casal ao meu lado. Era lógico que eles haviam percebido que aquela atenção especial do comissário e da aeromoça tinha algum motivo. Mas eles eram discretos ou inibidos, e não tocamos no assunto. Na hora do jantar, porém, servido de madrugada, eles logo se prontificaram a me ajudar, liberando a aeromoça. Não me lembro ao certo, mas acho que o nome dele era Sidnei. Enquanto cortava a – 51 – carne perguntou se estava com aquele problema (sem mencionar qual era o problema) há muito tempo. Contei-lhe a curta história de uma semana e ele ficou espantado. Disse que até Madri, tudo bem, eles estariam por perto. Descreveu o que havia no prato e me passou os talheres. Fiquei constrangido: era a primeira vez que iria comer sem estar enxergando a comida, e na frente de estranhos. Tinha medo de derrubar alguma coisa, mas fui à luta e deu tudo certo. Depois do jantar pintou um filme. Legal, dava para acompanhar tudo, e quando as cenas eram muito visuais e sem diálogo, Sidnei me dava um toque do que estava acontecendo. — O casal tá se beijando agora. — Eu sei. — Como você sabe? — Ah! É fácil, ele disse “eu te amo, meu bem”. Ela, “Oh! meu bem, eu também te amo”, e daí fizeram silêncio. Claro que ocuparam as bocas, né? — É, é claro. O beijo deles foi muito bonito. — É, mas o meu foi mais ainda. — O seu? — É, o que eu imaginei. Foi excitante, ainda mais com essa música de fundo. — Cuidado pra não extrapolar, hein, Marco. — Ah! Eles não foram pra cama, Sidnei? — Não. — É, então é bom eu parar por aqui. — Rimos os três. Depois do filme, eles dormiram. Eu não, fiquei escutando música acordado e com muitas expectativas. Logo senti vontade de ir ao banheiro. Como seria? A semana que passara eu só havia ido ao banheiro de minha casa, onde conhecia a disposição de tudo. Se errasse a pontaria (coisa que comecei a perceber pelo barulho do jato de urina na água da privada), apenas o pessoal de casa saberia. – 52 – Fiquei com medo de passar vergonha nessa nova aventura, mas acontecesse o que acontecesse, eu precisava mijar. Apertei o botão e veio a aeromoça. Disse-lhe o que queria e ela chamou o comissário. Ele me levou até em frente ao banheiro, abriu a porta e paramos. Um instante de silêncio se fez e ele perguntou: — E agora? E era a mesma pergunta que eu me fazia. Pensei rapidamente e vi que só havia uma solução: ele me mostrar a disposição das peças do banheiro e, depois, eu me viraria como pudesse. Dentro do banheiro ele me mostrou como fechar a porta, onde havia água para lavar as mãos e o vaso. Saiu e fechei a porta. Voltei na direção do vaso, dei uma palmada na tampa para me orientar, abri a braguilha, botei o “dito cujo” para fora e... cadê coragem! E se errasse muito a pontaria? Com que cara ficaria com o comissário? Senti raiva de mim mesmo. Afinal, passando uma situação de vida tão difícil, e ainda estava preocupado com a cara com que enfrentaria um comissário que eu nem enxergava. Depois, se errasse, era porque era cego mesmo, e estava acabado. Mas o orgulho falava mais forte e fiquei torcendo para que na hora que mijasse o avião desse um solavanco; teria uma ótima desculpa. Bem que poderia pintar uma turbulência esperta que sacolejasse todo mundo, inclusive o comissário... Nunca pensei que um dia pararia para pensar em como mijar, tendo um vaso na frente. De repente, em meio à turbulência que não acontecia no avião, mas em minha cabeça, pensei: poderia forrar o vaso, sentar, botar o pênis para baixo e mijar; não teria erro de pontaria mesmo que quisesse. Sentei e acabei não só mijando. Dei a descarga, lavei as mãos, abri a porta e lá estava o comissário me esperando. Fui até a poltrona com um risinho de vitória, alívio e orgulho. Tudo dera certo mais uma vez. O comissário voltou e reparei que seus passos iam em direção ao banheiro, provavelmente para ver o que eu havia feito por lá. Senti-me uma criança bem-educada, feliz porque fizera tudo certo e, ao mesmo tempo, puta, porque não confiaram nela. Aquela sensação de ser criança estava correta: havia uma semana eu tinha nascido naquela experiência, e também tinha razão o comissário, afinal nem eu mesmo confiara em mim. Mas as – 53 – experiências do jantar, do cinema e, principalmente, a do banheiro estavam me mostrando que para tudo havia uma solução, que era apenas uma questão de criar uma nova forma, um novo jeito. Percebi, porém, que o último que criara no banheiro não era adequado, pois nem sempre poderia sentar em algum lugar, mesmo forrando. Eu tinha mesmo é que perder o medo de mijar em pé e aprender a ter boa pontaria. As horas voavam rápidas no avião com a lentidão dos minutos. Os alto-falantes anunciaram Roma. — Quer dar uma volta pelo aeroporto, Marco? — perguntou Sidnei. — Pelo aeroporto? E dá tempo? — Dá. Dá bastante tempo. Eles param... Já estou acostumado. Não quer ouvir as italianas falando? Não quer mandar um cartãopostal, ou qualquer coisa assim, para o Brasil? Não estava com a mesma animação de Sidnei e recusei o convite. Além do mais, se o pessoal da empresa estava de olho em mim, não ficaria muito satisfeito que eu saísse por aí, pensei. Na verdade, porém, estava dando uma de matuto; tinha medo de que o avião partisse e eu ficasse por lá, como acontece em parada de ônibus em bares de estrada. Estranho era o que sentia: estava em Roma sem estar em Roma. Apesar de termos parado durante mais de meia hora, fora o avião que parara, não eu. Poderia ter sido Lisboa ou Paris, seria a mesma coisa. Estava, porém, emocionado; já pousara na Europa, ou pelo menos o avião. No curso de história na Federal, passei o ano inteiro estudando sobre gregos e romanos; seria muito interessante conhecer a Itália um dia. Partimos para Madri, e meu receio agora era a alfândega. Trazia comigo muitas seringas, agulhas e vidros de insulina; isso poderia complicar o meu lado, apesar da receita médica. Mas era uma receita brasileira... Tomara que o pessoal entendesse tudo. Procurei logo saber como se falava diabetes e insulina em espanhol. Outro problema era o meu passaporte; foi retirado tão às pressas... Será que o despachante falsificara alguma coisa? – 54 – Procurei conversar e esquecer o tema. Madri foi anunciada. A aeromoça se aproximou e me pediu que deixasse todos os passageiros saírem que depois ela viria me pegar. Meu coração estava na boca, finalmente pisaria em solo europeu. Para a minha cabeça, agora sim, eu saíra do Brasil, representado por um avião da Varig. Imaginei logo aquele tucano tropical, símbolo da empresa,2 saindo comigo para me dar uma força. Afinal naquela terra não estaria com brasileiros tão cedo. Carlos era português. Despedi-me dos companheiros de viagem para encontrá-los depois, na fila da alfândega. Eles estavam contentes e satisfeitos; eu, preocupado. Mostrei meu passaporte e minha receita. O funcionário da alfândega, todo simpático, perguntou para onde eu iria. Eu lhe respondi pausadamente e nos entendemos. Fantástico, já estava tendo meu primeiro diálogo na Espanha e tudo bem, até que ele me falou: — BALE! Gelei. O que queria dizer “bale”? Era bom ou ruim? Sidnei, vendo meu ponto de interrogação, se adiantou: — Ele quis dizer que tudo OK. Tudo em ordem — BALE! Fiz uma cara de interessado na expressão e depois respirei aliviado. Valeu, ou melhor, baleu... Despedi-me novamente de Sidnei e esposa e falei à aeromoça que precisava tomar uma injeção de insulina. Ela me disse que, para isso, o lugar mais tranqüilo daquele aeroporto seria o banheiro dos funcionários. Lá em casa, como ninguém soubesse aplicar injeção, continuei a me auto-aplicar, e isso me valeu uma certa autonomia. O problema começou, porém, quando tentei explicar ao funcionário que entrou comigo no banheiro a quantidade que queria que penetrasse na seringa. Ele não entendia nada do que eu falava e eu entendia que ele não entendia. 2. N.E.: Atualmente, o símbolo da Varig, ou logomarca, é uma rosa-dos-ventos. – 55 – Numa seringa de insulina, a marcação vai de duas em duas unidades para cada traço pequeno, e de dez em dez unidades para cada traço grande. Se eu quisesse 34 unidades era fácil: eram três traços grandes mais dois tracinhos. Tentei explicar isso para ele dez vezes, falando pausado, mas sempre que ele tentava colocar uma quantidade eu percebia que estava errada. A minha prática me permitia perceber mais ou menos o local certo, medindo a distancia entre o êmbolo e a seringa: essa distancia era próxima de dois dedos meus, mas ele nunca deixava por ali. Eu sabia que conseguiria colocar uma quantidade aproximada sozinho, mas colocar a quantidade exata seria pura questão de sorte. E foi o que acabei fazendo, antes que meus instintos nervosos me fizessem lhe dar uma agulhada na bunda. E foi aquilo que realmente me deu vontade de fazer, mas não poderia começar os meus primeiros minutos de Espanha como um selvagem subdesenvolvido. Sempre pensei que fosse indiferente à ignorância, mas naquele dia percebi que a detestava. Lavei as mãos e saí do banheiro sorridente, com a fisionomia alegre de quem gostaria de matá-lo. — Tudo em ordem? — Bale — respondeu ele. — Bale é o cacete — escapou. — Como? — reagiu a aeromoça, enquanto eu escutava os passos do cara indo embora. — Ah, esse cara é muito burro, a gente não se entendeu! — Ele não deve ter entendido sua língua. — É, mas eu acho que esse cara aí não entende nem a minha nem a dele. Os números em espanhol são muito diferentes dos números em português? — Não, dá pra compreender. — Ah, então ele não sabe os números nem em espanhol. — Mas você conseguiu fazer tudo certo? – 56 – — Acho que sim, possivelmente. Pensei que você não fosse perguntar isso pra mim. — Perguntar o quê? — Se tudo tinha dado certo. Você perguntou pra ele, em espanhol, não pra mim, em português. — É que ele era responsável por você. — Acho que o maior responsável por mim sou eu mesmo, não é não? — É que ele poderia conferir visualmente. — É, poderia... se tivesse alguma coisa na cabeça. Desculpe, estou muito nervoso, mas esse cara daí foi realmente a gota. Peguei em seu ombro e fomos andando; procurei relaxar. Logo depois, chegamos a um balcão onde ela passou a conversar com uma mulher. Falaram sobre passagens, horários e sobre mim e meu problema. Compreendia quase tudo o que falavam e achei fantástico. Virou-se para mim e me explicou aquilo que mais ou menos já havia entendido: minha passagem era para quatro horas depois, mas ela havia trocado por outra para daqui uma hora. Eu iria esperar ali sentado em frente ao balcão e alguém me pegaria dentro de meia hora ou quarenta minutos. Iria numa ponte aérea, portanto, num vôo doméstico, até Barcelona. Será que me entenderia tão bem com as aeromoças da ponte aérea quanto com o quase-agulhado do banheiro? Procurei relaxar. Aliás, era o que mais fazia — procurar relaxar. Estava agora ali, sentado e só, em Madri, torcendo para que não me esquecessem no aeroporto. Aquilo era loucura purinha, sem limão para disfarçar o gosto. Não via a hora de entrar no avião novamente. Isso significava estar mais perto de Carlos, de alguém que eu tinha certeza de que estava ali para me ajudar. Comecei a prestar atenção no que as pessoas em volta falavam. Escutei um papo de temperatura, que provavelmente estávamos a cinco graus, temperatura bem baixa para alguém vestido como eu. Ou o aeroporto tinha aquecimento interno, ou eu, de tão nervoso, não sentia nem mais frio. Carregava o tempo todo nos braços um sobretudo de lã, que – 57 – Guilherme havia me emprestado. Pensei em colocá-lo, mas desisti, decididamente não estava sentindo frio. Comecei a pensar, então, no que ocorrera com a aeromoça. Será que sempre perguntariam para os outros aquilo que tinham de perguntar para mim? Será que a falta de visão inspirava tanta alienação que eu não poderia responder se a aplicação que eu mesmo fizera havia ido bem ou não? Realmente passara dos 37 graus do verão carioca para os cinco do inverno de Madri. Havia muitas diferenças nessa “viagem” que eu teria de aprender. O avião agora era menor e estava um pouco mais vazio. Ninguém se sentou ao meu lado. Fui pensando em meu medo, em minha covardia, em minha falta de experiência. Será que toda aquela insegurança que estava sentindo era porque era um garotão da zona sul carioca, que sempre fora um filhinho de papai? Ou será que qualquer um sentiria aquilo? Tudo dera certo até ali, inclusive passar de um avião para o outro, que era um dos meus medos. Então, se os fatos me diziam que tudo acontecia naturalmente e sem maiores problemas, por que persistia dentro de mim todo aquele temor? Carlos era um cara descoladão, possivelmente já havia arrumado muita coisa por lá; iria me avisar de tudo e estaria me esperando no aeroporto. O que me faltava para relaxar só um pouquinho? Convenci- me de que o que estava colocando problemas nas coisas era a minha cabeça, e não que os fatos fossem difíceis. Mas, aos poucos, comecei a pensar de novo nos fatos e a exigir um pouco menos de mim. Provavelmente o Carlos, sem aqueles problemas de visão e já acostumado a viajar e até a morar no estrangeiro, estaria com a cabeça muito mais fria que a minha, e isso me ajudaria. Eu chegava a Barcelona, na Europa, realizando meu sonho impossível. Os alto-falantes anunciaram o pouso e que Barcelona estava a 10 graus. Melhor assim, menos frio. Pousamos e, como antes, esperei todos os passageiros saírem. A aeromoça se aproximou e me avisou que um amigo me esperava no guichê da companhia. Fantástico, Carlos conseguira até se comunicar com o avião. Realmente o garoto era uma fera! Dessa vez foi o comissário quem me levou. Já dentro do prédio do aeroporto ele avisou que Carlos vinha – 58 – em nossa direção. Nos abraçamos, eu estava emocionado. Dei “gracias” ao comissário e saímos, já com as malas. — Ainda bem que você chegou, estava morrendo de medo. Ficar nesta terra sozinho não é fácil! Por um segundo não acreditei no que estava escutando. Não era isso o que eu esperava, nem o que queria escutar. — Descolou lugar pra gente dormir? — Dormi no primeiro hotel que encontrei e é um pouco caro. — E suas malas, estão no hotel? — Não, estão aqui. O que vamos fazer agora, Marco? Aquela imagem que estava fazendo de Carlos, do cara descoladão, despencou num abismo incrível. Não só pelo que falava, mas também pelo tom que usava. Estava mais inseguro do que eu. Parei um pouco para tentar pensar e também para sentir meus pés no chão e falei: — Quero escrever um cartão-postal para o Brasil, pra dizer que cheguei bem. Vamos ver se a gente descola um. Precisamos de algum dinheiro. Você já fez câmbio aqui, pelo aeroporto? — Já, mas peguei muito pouco, é bom trocar uns cem dólares. — Tudo bem. E depois vamos direto pra clínica. — Direto pra clínica? — É, lembre-se de que hoje é o último dia do prazo, segundafeira, e já são quatro e meia da tarde. Quero chegar lá ainda hoje. — De malas e bagagens? — É, de malas e bagagens. Não quero chegar lá e não encontrar o Dr. Dutrenitch. Vamos nessa. Senti-me ali quase sozinho e dono absoluto de meu destino. Precisava agora mais do que nunca confiar em mim. – 59 – Blackout Meu gesso está uma verdadeira festa: mil assinaturas, desenhos de flores, pão-de-açúcar com um tremendo de um sol, Snoopy, um dorminhoco — espero que não seja eu — um personagem com a cara de pêra, corações flechados, etc. Há também muitos recados, entre eles: “Paz profunda e gestalt na cabeça”, da Verônica; “Nunes esteve aqui e eu também”, Gil; “Marcão, um beijão do Oscar e Marilda”; “Honda, Suzuki, Yamaha”, do Cleber; “Sol e vida, caminho e vida”, Anna; “Juízo”, de Antônia; “Seja você quem for, eu posso gostar de você”, meu mesmo; “Lembra daquele dia na praia? Foi bom te conhecer”, da Inês; “Um abraço do paulista que pintou nesse pedaço”, do Li. E, também, muitos costumeiros, mas sinceros, “Feliz 1985”. O espaço está cada vez mais reduzido, apesar de o gesso vir do pé até o final da coxa. Isso me deixa contente. Das lembranças concretas do acidente vou querer guardar esse gesso, além de dois pedacinhos de osso que o Dr. Cláudio me disse não ter sido possível colocar no lugar. Pensei em fazer uma aliança para mim e outra para Sônia desses pedaços. Já pensou que inédito ter uma aliança feita do osso de sua própria perna? Parece que minha cicatrização vai muito bem, segundo o Dr. Cláudio. Outro dia estivemos lá e foi um problema chegar até a clínica, já que não posso pisar, pois meu osso não está devidamente consolidado. Isso, segundo ele, vai levar ainda mais ou menos uns dois meses. Tive de sentar numa cadeira enquanto duas pessoas me carregavam e outras seguravam minha perna na frente. Parece que a turma na rua adora ver essas coisas assim, meio diferentes. Um cara com uma perna toda engessada em cima de uma cadeira. Isso dá assunto... Dr. Cláudio abriu uma janela no gesso para tirar os pontos da operação. Sônia viu a cicatriz e achou-a um pouquinho grande; disse – 60 – que dava um palmo, dos dela. Em volta da cicatriz ainda havia muita pele escamada, morta, devido a estar abafada pelo gesso. Não achei nada agradável saber que ia ficar com uma cicatriz dessas na canela. Por outro lado, ela era até pequena considerando o que podia ter acontecido. Foi gostoso sair à rua depois de um mês de cama. Em Barcelona, chegamos à recepção da clínica com malas e bagagens e perguntamos à recepcionista pelo Dr. Dutrenitch. Pedimos para que nos repetisse a informação, desta vez devagar, e fomos ao seu encontro. Havia uma enorme sala de espera, murmúrios de muita gente. Pedi para Carlos me dizer mais ou menos quantas pessoas havia por ali e ele contou vinte e cinco. E cada dois ou três, no máximo, falavam uma língua diferente. Era uma misturada de francês, inglês, alemão, italiano, uma língua que me pareceu oriental, mas não sei qual, e também uma outra que não sei como as pessoas conseguiam se entender porque os fonemas eram todos muito parecidos. Além disso, havia o próprio espanhol e nosso humilde português abrasileirado. Carlos me disse que o Dr. Dutrenitch já havia nos visto e que fizera sinal para que esperássemos. Esperamos bastante; fomos os últimos a ser atendidos. Só uma coisa me deixava de pé: a expectativa. Aos poucos, tive a impressão de estar num INPS de luxo, impressão que com o passar dos dias cada vez mais se confirmou. Aquela clínica realmente era um formigueiro internacional. Quando entramos, o médico nos cumprimentou um pouco descontraído, mas percebi que era sua rotina fazer aquilo e que eu era apenas mais um. Não sabia se ele estava considerando meu caso um problema fácil ou se todos ali eram problemas difíceis. Só sei que eu estava me sentindo emocionado e ansioso, apesar de não deixar transparecer isso e estar muito atento ao que ele dizia. Combinou comigo de fazer a primeira sessão de fotocoagulação no dia seguinte pela manhã, bem cedo. Disse-me ainda que procurasse uma pensão perto da clínica (havia muitas), pois não ficaria internado, visto que minha operação não era de corte. Saímos. Em volta da clínica tudo ocupado. Andamos um bocado. Já me sentia quase sem resistência quando Carlos me disse que – 61 – estávamos em frente a um hotel, que não parecia uma pensão, mas algo de mais luxo. Não me importei, queria só uma coisa nesta vida: descansar. Tomei um banho, comi qualquer coisa no quarto e telefonei à recepção para pedir que nos acordassem às seis; eram dez horas da noite. Estava muito cansado, não dormia desde o dia anterior, quando havia acordado às oito da manhã. Não sabia, realmente, há quanto tempo estava acordado; os fusos horários me confundiam. Desconheço o que pensei ou o que senti antes de dormir. Sei que apaguei geral a noite toda. Andávamos para a clínica quando percebi que a manhã estava muito fria. Não me lembro ao certo, mas penso que foi naquele trajeto que pela primeira vez reparei na temperatura. Acho que foi pelo fato de estar fisicamente descansado e emocionalmente um pouco menos tumultuado. Tínhamos tempo de sobra para chegar na hora marcada. Passamos por uma loja de câmbio, fechada. Curioso, pedi para que Carlos desse uma olhada na cotação do cruzeiro,1 pois estávamos em frente a uma vitrine e ele lia o nome de tudo quanto era moeda estrangeira. Estranhei que o cruzeiro não figurasse ali, embora, pelos nossos cálculos, em relação ao dólar, estivesse mais valorizado que o dinheiro espanhol. Realmente, me sentia um pouco mais relaxado. Já me dera ao luxo de ter curiosidade a respeito do cruzeiro e reparar no frio. Cheguei mesmo a ter a sensação de que a minha vista não estava mais com aquele vermelho tão denso. Mas não quis me aprofundar muito nas minhas percepções visuais. Quando cheguei perto da clínica percebi que a minha tranqüilidade não era tão grande assim. Fui o último da salinha a entrar para fazer a minha primeira sessão de fotocoagulação. Éramos seis: quatro espanhóis, um português e eu. O português, que obviamente falava a minha língua, era o único que eu não entendia. Falava muito rápido e enrolado. Achei incrível o fato de um mes- 1. N.E.: Moeda em vigor de 1970 até 1986, quando seria substituída pelo cruzado. Em 1989 surgiu o cruzado novo, em seguida o cruzeiro novamente, então o cruzeiro real, para, finalmente, em 1994, chegarmos ao atual real. – 62 – mo idioma poder ser falado de formas tão diferentes a ponto de duas pessoas não se entenderem. O pior de tudo é que os espanhóis tentavam nos ajudar traduzindo o que conversávamos. A coisa estava engraçada, mas vergonhosa. Carlos havia saído para comprar alguma coisa para comer. Possivelmente, como português, deveria entendê-lo... Junto ao Dr. Dutrenitch havia mais dois médicos, estagiários, pelo que entendi. Colocaram em meus olhos uma lente enorme que não impedia de fechá-los, mas forçava-os a ficarem bem abertos. Era tremendamente incômodo e me pareceu algo medieval, diante da tecnologia do laser — pelo menos diante da tecnologia que eu imaginara. Não me lembro se ele me disse, ou se calculei, que não poderia piscar os olhos na hora do disparo do laser, senão queimaria minha pálpebra. Objetivamente ele só deveria atingir a minha vista, mas na realidade atingia também os nervos. Era massacrante, pelo menos em 78. Acho que isso deve ter melhorado hoje. O médico apertava um botão que fazia um barulho, e eu sabia que, um segundo após, o raio penetraria em meus olhos. Um raio de cada vez, e foram dezenas em cada sessão. Procurei não deixar transparecer minha aflição, para que ele fizesse um bom trabalho, mas ele sabia como eu estava e pedia para que relaxasse de vez em quando. E eu pensava: se aqueles caras que vieram antes passaram por isso eu também posso passar. Finalmente terminou a sessão. Tiraram a lente de vidro e me colocaram vendas nos olhos. Marcamos para voltar ao consultório dias depois e possivelmente marcar nova sessão. Antes de sair perguntei se havia alguma dieta, ou algo que eu não pudesse fazer. — A dieta é a dieta normal de sua diabetes. Agora, durma de cabeça alta e procure não subir escadas ou fazer qualquer esforço; o sangue não deve ir para a cabeça. Controle bem a sua diabetes. — Tudo bem, doutor, até a próxima. Esse ritual se repetiu cinco vezes em pouco mais de dois meses. Fazia a sessão de fotocoagulação, aparecia em seu consultório quatro ou cinco dias depois. Ele tirava as vendas, me examinava e eu ficava sem elas até a data marcada para a próxima sessão. – 63 – Maravilha... gradativamente Barcelona ia se fazendo mais visível, mais nítida e mais ainda Europa. Os séculos e a história pesavam na maior parte de sua arquitetura e eu me espantava com isso. Mas tão inesquecível quanto a arquitetura era aquele raio laser quando passei a enxergá-lo. Era um pontinho azul, que ficava no fundo do aparelho e que vinha de repente, após um clique. Dr. Dutrenitch fazia a pontaria e lá vinha aquele feixezinho de luz azul entrando. Eu não podia desviar os olhos, pois a pontaria do médico dependia disso: eu tinha de esperar aquele raio. A luz era ligeira. Puxa, se pelo menos não houvesse aquele aviso prévio do barulho... Isso era péssimo! Saindo da primeira sessão era visível o quanto eu estava nervoso. Também não precisava mais escondê-lo. Pensei em tomar um calmante e Carlos me falou que em frente à clínica havia uma loja de produtos naturais que vendia ervas tranqüilizantes. Uma senhora nos atendeu gentilíssima. Deu-me espaço para que desabafasse e foi o que fiz. Acabou me levando para uma salinha dentro da loja e me fez um chá, enquanto o filho tomava conta do balcão. Ficou comigo um tempão. Até hoje não sei se naquele primeiro dia ela entendia tudo o que eu falava, pois não estava medindo a velocidade das palavras, tanta era a emoção que precisava colocar para fora, ainda mais ouvido por uma pessoa que me inspirou algo materno. Não chorei em seu colo, mas deveria. O desabafo, seu carinho e o apoio do chá me deixaram mais tranqüilo. Apresentou-me seu filho Felipe, dois anos mais velho do que eu, e Violeta, da minha idade. Além de tudo isso, a loja ainda tinha produtos dietéticos para diabéticos. Era fantástico! Não é preciso dizer que voltei várias vezes lá. Tanto, que em algumas horas eu passava até por balconista. Por indicação de Felipe fomos a uma rua bastante central, onde havia muitas pensões. Ficamos numa, por menos da metade do preço do hotel, e era muito mais aconchegante. Lá é que comecei a me sentir um jovem na Europa. Ela ficava numa rua com muito comércio, e andando-se uns cinco ou dez minutos desembocava-se na Praça da Catalunha. Essa praça foi marcante. Diversas vezes fiquei ali sentado olhando os pombos, as pessoas e o tempo passarem, diante do chafariz. Foi lá também que pela primeira – 64 – vez vi venderem balas de café “made in Brazil”. Era um saquinho plástico amarelo com um grão de café no meio e atrás escrito: “made in Brazil”. Senti-me ridiculamente orgulhoso. Perto dali ficavam as Ramblas, um lugar de lojas, teatros, bares e boates de show pornô. A impressão que dava é que toda a juventude underground européia se encontrava à noite nas Ramblas. Os duros iam para lá depois das nove, numa espécie de feira hippie, vender tudo quanto é tipo de sucata. Outros iam aos bares, teatros, ou mesmo só para passear e encontrar alguém. Estávamos quase sempre com o grupo de Felipe, que era muito descontraído e divertido, embora demonstrasse uma seriedade de fundo que nunca compreendi direito. Quando queria encontrá-lo, era só ir a determinado bar nas Ramblas a partir das dez. Nas vezes em que apareci lá sozinho, poucas, aliás, logo que surgia na porta eles gritavam meu nome, pois nunca sabiam o quanto eu estava enxergando. Acho que fiquei conhecido pelo menos de nome naquele bar. Quando não estavam, deixavam um recado com o garçom dando a direção; era tudo muito gostoso. A democracia invadira a Espanha naquela época. O sexo tomou conta das revistas nas bancas de jornal. Mas tudo tão explícito que achava que realmente não estava enxergando bem. Foi lá que assisti a O Último Tango em Paris. Minha cabeça rodava. Comecei a associar, então, democracia a sexo, e nunca me senti tão politizado. Viera de um Brasil em que o máximo que aparecia em publicação do gênero eram mulheres que posavam insinuantes de peito nu. Aquilo que eu estava vendo não existia. Homens e/ou mulheres absolutamente nus que, em algumas revistas, trepavam à vontade. Eram verdadeiras surubas fotográficas e cinematográficas. Felipe curtia meu espanto e brincava: “la democracia”. Tudo isso, por outro lado, me perturbava muito, visto que eu tinha questões sexuais ainda não resolvidas. Mas também estava me envolvendo com o outro lado da Espanha: o clássico. Mozart, Beethoven, Bach, Debussy, muitas vezes tocados ou cantados dentro de igrejas de uma arquitetura maravilhosa. O tempo parecia ter – 65 – parado por mil anos em Barcelona, e só havia avançado em algumas boates, filmes e bancas de revistas. Eu me sentia dividido entre o clássico e o erótico, seguro pelos pés pelo tratamento que estava dando certo, mas que não havia terminado. Não só me situava, mas me sentia em outro mundo, e eu mesmo mudando. Em meio a tudo isso conheci duas pessoas muito importantes para mim: Lila e Manuel Enrique. Lila era amiga e também colega de faculdade da namorada de Felipe: faziam Psicologia. Não era o que sempre imaginei de uma espanhola, com a ajuda das agências de turismo. Não era morena, de cabelos e olhos escuros, ou mesmo negros, e não tinha uma castanhola na mão. Loura, de olhos castanho- claros e bem alta. Lenta como eu no andar, mas sem minha preguiça característica. Olhava para as coisas completamente sem compromisso e quando as fixava dava a impressão de estar desviando seus pensamentos para elas. Parecia ser distraída, mas não era. Seu jeito a envolvia de certa magia e mistério, apesar de sua extroversão comigo. Eu não podia passar por outra Walquíria em tão pouco tempo, mas isso estava acontecendo. Nossa paixão foi se escancarando e nos denunciamos aos poucos. Não dava para esconder nada quando, sem as vendas, eu a olhava ou, com as vendas, a tocava para que me guiasse. Sentia o arrepio característico e a vontade louca de abraçar. Por vezes passeávamos abraçados e perdíamos completamente o passo quando espontaneamente nos fazíamos ligeiros carinhos. Até que um dia rimos de nosso jogo de esconde-esconde e nos beijamos. Toda essa história durou quatro do total de treze dias que ficamos juntos. Manuel Enrique conseguiu me achar num apartamento que eu havia descolado com um amigo de Felipe. A pensão era ótima, gostosa mesmo, mas depois de uns dez dias percebi que era preferível um apartamento grátis, mesmo que num subúrbio. Ele se localizava num conjunto operário e me impressionou pelo fato de ter três quartos e também por seu enorme estacionamento, superlotado de carros, raramente novos, mas, enfim, superlotado. Não havia luxo algum no lugar, mas mesmo assim pensei que um operário europeu era outra coisa. E ficava mais impressionado ainda quando me diziam que – 66 – Portugal e Espanha eram considerados os países “subdesenvolvidos” da Europa Ocidental. Ele tocou a campainha e perguntou se eu morava ali. Carlos disse que sim e o fez entrar. Antes mesmo que eu acordasse direito, ele entrou no quarto. Eu tinha os olhos vendados, mas sua voz parecia jovem. — Marco Antonio? — Sim, sou eu. Aproximou-se rapidamente, me deu um beijo e colocou um pacote em minha mão: era um presente. Fiquei sem entender. Não era uma voz conhecida e o castelhano era perfeito. — Suely, de Curitiba, me falou de você. Sou Quique, aquele da fita cassete, do telefonema de Paris, perto do Natal. — Que loucura, o que é que você tá fazendo em Barcelona? de lá com um caso que tive, e vim pra cá também porque é mais barato viver por aqui. — Chegou aqui tranqüilo? — Cheguei. É longe, mas não é tão difícil. — O que atendeu a porta é Carlos, o que veio comigo do Rio. Os dois se cumprimentaram e não escutei o barulho de beijos. — Quando você tira as vendas? — Amanhã. Vou a Barraquer de tarde. — Tá dando certo o tratamento? Já tá no final? — Não, ainda tem um tempinho pela frente, mas parece que tá indo tudo bem. — O que é que você tá enxergando? — Eu enxergo tudo, mas meio nublado. De noite é que é pior. — Dá pra ver as pessoas? — Dá. Dá pra ver as pessoas, mas não as fisionomias. – 67 – — Já é alguma coisa, né, Marco? Quanto tempo você calcula, mais ou menos, que ainda vai durar o tratamento? — Segundo o Dr. Dutrenitch, no mínimo, um mês. — Ah, então temos bastante tempo pela frente ainda. Estou com pressa, Marco, tenho um compromisso, mas estava ansioso de te ver, por isso vim. Vou deixar o endereço e o telefone de onde estou com o Carlos; a gente se acha por aí. — Lógico, tô a fim de te conhecer, coisa que pensei não fosse acontecer tão cedo. O beijo que ele fez questão de repetir ao sair não havia ainda se desgrudado de meu rosto, nem da minha cabeça. Quique era argentino, e eu não tinha intimidade suficiente com o castelhano para perceber trejeitos em sua voz. Perguntei ao Carlos como ele se vestia e ele respondeu que normalmente. Homossexualismo não era algo estranho para mim desde os meus dezessete anos, quando Anna, minha irmã, se apaixonou por um cara homossexual. Ela passou, então, a andar no meio em que ele vivia e me chamava muitas vezes para lhe fazer companhia. Depois passei a ir mesmo sem ela para conseguir as drogas que tinham em abundância. Mas também não era só isso, havia algo por ali que me atraía muito: a marginalidade. Apesar de achar horroroso o jeito efeminado de alguns caras, não me chocava mais ver dois homens juntos. Tudo aquilo era um não às normas da sociedade. E foi aí que percebi o quanto estava dentro dessas normas, ou melhor, o quanto havia dessas normas dentro de mim. O preconceito rondava minha cabeça, e eu não sei até hoje se consegui, realmente, dar um jeito nisso. Fora o fato de gostar de mulher e de futebol, eu não me sentia igual aos caras de minha idade. A partir dos 15 anos comecei a ler Gibran, Hesse, Huxley, Jung e até Platão. Isso fazia com que me sentisse bem diferente dos demais. A preferência por esse tipo de leitura foi influência de minha irmã e de Carla, sua melhor amiga, arrastando comigo Chico, meu melhor amigo. Mas o quarteto não era suficiente para trocar idéias a respeito de leituras tão profundas, que tiravam de dentro de mim algo desconhecido mas concreto e que eu queria a qualquer preço do – 68 – minar. Naquele meio minha linguagem era entendida, não tanto a respeito de sexo, mas a respeito de vida, e eu me sentia muito à vontade assim. Duas coisas, porém, fizeram com que eu me afastasse posteriormente. A primeira era que o cara por quem minha irmã era apaixonada se apaixonou por mim. A outra é que conheci Valéria, meu grande amor daquela época. Apesar de achar o pessoal “supercurtível”, nosso mundo de paixão adolescente não deixava tempo para qualquer outro tipo de interesse. Até hoje me recordo, e por vezes até escuto, os argumentos a favor do homossexualismo e os compreendo. Por outro lado, acho estranho aqueles que vivem com as mãos no que possuem entre as pernas, mostrando a todo mundo o óbvio. Não percebem que para serem o que a sociedade determina como macho não basta ter um pênis... Aprendi com tudo isso, sexos à parte, a ser muito mais carinhoso com meus amigos. A não precisar dar tapões nas costas na hora de um abraço. A responder carinho com carinho e não com tapas e socos. A dizer que estou sentindo saudades e não inventar desculpas outras para telefonar. A dizer que um homem é bonito e não ficar inventando palavras do tipo “boa-pinta”, ou “boa aparência”. E, antes de mais nada, aprendi a respeitar a diferença do outro e não deixar de ser homem por isso. Esses assuntos, realmente, são muito polêmicos, porque existe por trás uma herança cultural que efetivamente nos condiciona. Penso que isso pode ser quebrado ou não, dependendo do processo de vida de cada um. Ninguém faz nada sem motivos, mesmo que os ignore. Acho complicado, por vezes, compreender pessoas preconceituosas que, no entanto, acham fantástico o Nei Matogrosso e aplaudem de pé peças do tipo O Beijo da Mulher Aranha. É o homossexualismo em pauta sendo glorificado por opositores agressivos e radicais. Para minha surpresa, Quique nos encontrou na saída da clínica. Ele era bem diferente do que imaginava. Uns dez anos mais velho do que eu, um pouco calvo, estatura média e a pele bem branca. Sugeriu que fôssemos os três conhecer o zoológico, e acabamos – 69 – indo. Conversamos muito durante o caminho e percebi que ele tinha reflexões muito profundas a respeito de sua vida, que era um cara muito decidido e que precisava mesmo ser. Havia se jogado no mundo com a cara e a coragem. Aparentemente, aprendera muita coisa em suas andanças. Era criterioso e confiava muito em si mesmo. Não era difícil para ninguém admirar Quique e, por isso mesmo, ele fazia muitos amigos. Estava meio duro em Barcelona e se hospedara na casa de uma amiga que conhecera em Paris. Ela era cantora de ópera e ele fazia o figurino de suas roupas, em troca da hospedagem. Estava mal de grana, mas me pareceu bem de cabeça. Eu havia tirado as vendas na clínica mas ainda não estava enxergando bem. Em relevo acidentado, ou em lugar onde havia muita gente, precisava ser guiado. Fui, então, andando com Quique, e parecia que nossos assuntos não terminavam nunca. Os pequenos macacos ficavam todos em cima de galhos secos dentro da jaula. Percebi que alguns olhavam curiosos aqueles outros animais que, livres, do outro lado da grade, os observavam. Éramos nós, mais um americano típico, de bermuda, máquina fotográfica, blusa florida, e, ao seu lado, uma negra toda enrolada num pano, com uma pena na cabeça, vindo a seguir um senhor de terno e gravata. Era óbvio que aqueles macacos deviam estar curtindo com a nossa cara. Que animal estranho é o homem... Depois de dar uma volta de trem pelo Zôo, fomos parar em frente a um prédio onde havia jaulas especiais. Entre elas estava a do urso polar, um animal que eu nunca tinha visto antes e que, realmente, me impressionou. Era uma jaula climatizada especialmente para ele. Era todo branco, enorme. Estava sentado preguiçosamente e alienado de seus admiradores. Mas sua presença era realmente marcante, dava medo só de pensar encontrar um bicho desses por aí. Fiquei tão ligado no urso que me perdi de Quique e Carlos, pois a mais de dez passos eu não distinguia ninguém. Tentei encontrá- los, mas eles não estavam num raio de visão em que pudesse – 70 – identificá-los. Achei melhor ficar por ali até que um aparecesse. Voltei novamente para o urso, que agora estava em pé vindo em minha direção. Sem pensar e apavorado, instintivamente comecei a caminhar para trás. A frente da jaula era feita basicamente de vidro, por causa do ar-condicionado. Não estava enxergando o vidro, havia me esquecido completamente dele. Em poucos passos, nessa minha fuga desesperada, derrubei dois enormes sorvetes de um casal de franceses. Quique e Carlos se aproximaram de mim que nem uma flecha. O urso parou e ficou olhando para o público como se nada estivesse acontecendo. Do desespero passei à raiva; da raiva, passei a me sentir um boboca. Sem querer chamei o urso de palhaço, e os quatro ficaram rindo de mim. A partir de então, considerei o pavão real o animal mais bonito que havia visto por lá e a desclassificar completamente aquele urso polar. Em alguns segundos havia passado por um pesadelo, e acabei rindo disso também, aliviado, é claro. Quis pagar o sorvete dos franceses, mas eles não deixaram; quiseram, sim, tirar fotografias. Numa, fiquei abraçado a eles com o urso por detrás; na outra, fiz aquela cara de sobressaltado de minutos antes, contrastando com a do urso que, ainda em pé, só faltava lamber o vidro para dizer que era mansinho... Essas fotografias devem estar rolando até hoje em alguma casa francesa, onde aqueles dois contam as coisas mais típicas de suas viagens e narram meu susto, às gargalhadas. Uma semana com Quique e já éramos velhos amigos. Acabamos por alugar um apartamento juntos, e para lá fomos: eu, ele, Carlos e Jorge. Era um apartamento grande, de três quartos, todo equipado para temporada, e pertencia à sua amiga cantora, que morava no terraço do mesmo prédio. Jorge era um amigo de Quique que nunca parava em casa. Ele era dono de um bar e vivia dia e noite trabalhando nele. Quando aparecia, o que mais fazia era gozar o meu portunhol, principalmente quando eu falava seu nome, muito mais cheio de erres do que eu pudesse imaginar. Jorge era mais ou menos da idade de Quique e se relacionava com um cara um pouco mais novo do que eu, que sempre entrava no apartamento meio encabulado. No princípio, se sentia à vontade com Quique, mas meio inibido comigo. Até o dia – 71 – em que ficamos sós no apartamento e tivemos de puxar assunto. Eu estava vendado e acho que isso o ajudou. Falou um pouco da sua vida e eu da minha. Até que tocou num ponto: a namorada. Ele percebeu minha cara de surpresa por saber que tinha uma namorada e ficava com o Jorge ao mesmo tempo. Daí em diante foi só um desabafo. Ele parecia desentalar algo que estava há muito tempo engasgado em sua garganta. Vivia um tremendo de um conflito interno pela relação que mantinha com o Jorge, mas não conseguia deixar de fazê-lo, e tinha a namorada para manter as aparências em casa e diante dos amigos. Mas já estava de saco torrado dela. Ele nunca havia falado daquilo com ninguém, e eu mesmo estava levando um susto pela conversa tão direta. Disse que se intimidava comigo porque sempre sentia em mim uma posição de crítico, o que o levava a achar que eu não gostava de vê-lo ali. Eu não me sentia um crítico, se o fosse não estaria naquela casa. Mas, ao mesmo tempo, o que dizer para ele? Não me parecia nada bem. Era um cara bonito e inteligente, o oposto do que eu via em Jorge. Não cheguei a conhecer os dois o suficiente para entender aquele negócio, e ele queria justamente entender por que aquilo estava acontecendo com ele. Achei que, sinceramente, só o tempo poderia lhe dar uma resposta e foi o que disse. A partir de então, abria o maior sorriso quando me via em casa e, por algumas vezes, Quique e Jorge vieram me dizer de sua admiração por mim. Meu dinheiro já estava indo “pro brejo” quando Carlos resolveu, e eu dei uma força, ir à casa de parentes em Portugal e depois voltar ao Brasil. Isso me ajudaria financeiramente. Apesar de eu ainda não conseguir ir a qualquer lugar sozinho, já estava tendo alguma autonomia. Além do mais, Quique estaria ali para qualquer necessidade, ou mesmo o Felipe e sua mãe. Mas, no fundo, estava contando mesmo era comigo, e isso já era uma grande transformação em minha vida. A amiga de Quique gostava muito de dar reuniões e nos convidava para quase todas. Apresentava-nos sempre, orgulhosamente, como seus amigos sul-americanos. Devia ser alguma coisa exótica. Éramos facilmente reconhecidos por nossas roupas, pois éramos os – 72 – únicos que usavam cores claras. Todos eles se vestiam em tom pastel, tendendo para o escuro, talvez mais apropriado para o inverno. Estávamos, porém, na primavera, e eu tinha vindo do verão de um país ensolarado. Eu me sentia, às vezes, que nem o americano do zoológico: caracterizado. Certa vez, resolvi ir a uma dessas reuniões todo de branco, com cinto, botas e sobretudo marrons. Quando tirei o sobretudo, a reunião quase parou. A partir de então, a cantante de óperas passou a me intitular de “o manequim sul-americano”, o que justificava minhas roupas extravagantes. Os papos eram sempre os mesmos: Copacabana, Pelé, carnaval e, às vezes, alguns diziam, para me agradar, que gostariam muito de conhecer Santiago ou Buenos Aires. Tudo bem, não conheço nada da África, pensava. Santiago, Buenos Aires e Rio de Janeiro ficavam tudo no mesmo lugar: América do Sul. Achei essa desinformação estranha, para os que foram colonizadores e vizinhos imediatos de Portugal. Aquilo não era só uma questão de geografia política, mas de sua própria história. Quando conheci Lila, num bar freqüentado pela turma do Felipe, já estava me acostumando ao cotidiano espanhol. Eu me sentia como um carioca internacional que, vira-e-mexe, sente saudades da terra. Certa vez, passeando com ela, passamos por uma agência de turismo que exibia em uma tela, na vitrine, slides do Brasil: do Rio, com o Corcovado, o calçadão e as praias cheias de sol; de Salvador, do elevador Lacerda, de Itapuã, aquele lugar que eu adorara tanto; Recife e sua praia de Boa Viagem, com aquela água tão quentinha; e a cidade de concreto de que São Paulo tanto se orgulha. Fiquei maluco contando do Brasil para Lila, delirei, viajei, amei. Já havia mostrado para ela, também, as balas de café “made in Brazil” em embalagens supermodernas, o que era um orgulho idiota, mas o único que eu podia ter por ali. Outra vez, num bar, um amigo de Felipe me perguntou sobre Chico Buarque. Não sei se foi para me agradar, mas tenho a impressão de que torrei o saco de tanto falar dele. Por mais que por vezes eu me sentisse familiar, no fundo era um estrangeiro, uma curiosidade. Que coisa estranha... Lila e Quique se adoraram. Chegamos a sair juntos os três, de braços dados, e até a ir a uma reunião gay. Ficávamos tão juntos que – 73 – o pessoal não sabia se eu era caso de Lila ou de Quique, ou mesmo de nenhum dos dois, o que deixou a situação gozada. Achei também engraçado o fato de muita gente pensar que eu era francês. Respondia falando o idioma e logo percebiam que não. Tenho até hoje uma fotografia divertidíssima dessa reunião, abraçado com Lila, Quique e mais um cara, onde estou acenando, com uma cueca branca na mão, para um outro cara todo emplumado que vinha em nossa direção. Para desespero de Felipe, ele e a namorada foram também a essa reunião. Lila e ela foram superassediadas pelas poucas mulheres que havia lá. Ele só ficava observando, preocupado e puto da vida por eu não estar ligando para o fato. Fui eu quem brincou naquele dia: — “La democracia”, meu amigo... Percebi que ele só gostava daquela política quando era de seu interesse. Eu estava curtindo demais aqueles dias, tudo ia dando certo, inclusive minha visão, que ficara quase perfeita. Respondia às cartas que chegavam do Brasil com toda a euforia que estava sentindo. Pensava até em ir para Marrocos, conhecer as ilhas gregas, quem sabe Roma e Paris? Estava me sentindo quase totalmente feliz, mas algo não estava bem: já tinha tido oportunidade de ir para a cama com Lila e não o fizera. Mais cedo ou mais tarde isso seria inadiável. O medo e o desejo se avolumavam dentro de mim e eu procurava disfarçar. Numa daquelas noites fomos à casa de um casal amigo dela. Os dois trabalhavam numa peça de teatro, e boa parte do tempo em que ficamos lá se passou entre ensaios dos diálogos de Sonhos de uma Noite de Verão, de Shakespeare. A certa altura, me ofereceram uma droga que não conhecia: heroína. Sabia, por ouvir falar, que era algo muito forte. Fiquei curioso, mas não me atrevi. Em verdade, nunca soube realmente se era heroína, não tive oportunidade de confirmar. Estava em tratamento, tinha de cuidar da minha diabetes e da saúde em geral. Fora isso, prometera a mim mesmo ficar careta. Lila me fez companhia, só bebendo um pouco de vinho. Saímos depois, andando por uma avenida larga e moderna, uma das únicas que vi por lá do gênero. Lembrava perfeitamente a – 74 – Avenida Paulista, não sei por que, visto que eu mal me recordava de São Paulo. Passamos por um prédio com um letreiro que me assustou: SEARS!2 Senti, de repente, como se estivesse em plena praia de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Só faltavam, realmente, os barcos ancorados na enseada em frente... Então era isso que representava ser uma multinacional! Associei logo os Fiats que haviam sido lançados no Brasil e muitos que via nas ruas de Barcelona, só que com o nome de “Seat”. Antes que começasse a falar muito do Brasil, Lila disse que queria ir para casa; a minha casa... Entramos em casa e todos estavam dormindo. No quarto, acendemos o aquecedor e deitamos. Não sei, realmente, o que a democracia espanhola tinha a ver com nossos 21 anos de amor, mas, efetivamente, nunca tinha transado com uma mulher tão ativa, que explorasse tanto o meu corpo, expondo tanto seus desejos. A princípio fiquei temeroso; aos poucos, porém, ela percebeu minhas dificuldades e me senti protegido por isso. No final de tudo, ela me fez imaginar que eu era o homem mais gostoso do mundo, mas acho que não era difícil para ninguém experimentar isso com aquela deusa. Tudo deu certo. Naquela noite, fiquei com um sorriso no rosto, com um sorriso no corpo, como um indisfarçável adolescente apaixonado. Senti alguma coisa na vista, mas imaginei que só poderia ser o cansaço e a sonolência. Ela foi ao banheiro se lavar enquanto eu tomava coragem para fazer o mesmo. Era uma barra sair daquele lugar tão quente para um ambiente gelado. Antes de conseguir forças para isso, adormeci. Quando acordei, ela não estava mais ali. Sabia que iria para Madri visitar os pais e fiquei tranqüilo, mas por pouco tempo. Aquela coisa horrorosa que acontecera no Rio estava se repetindo: TUDO VERMELHO. Gritei por Quique e ele apareceu rápido. Telefonamos para o médico e fomos para a clínica. Eu estava com medo, angústia e expectativa. Já enxergava uns 90% de tudo, o que teria acontecido? O que fizera? Será que não poderia ser feliz? Isso Dr. Dutrenitch não havia me dito. 2. N.E.: Cadeia de lojas existente na época também no Brasil. O autor se refere àquela que deu lugar, hoje, ao Botafogo Praia Shopping, no Rio. – 75 – O exame foi menos demorado do que eu esperava e sua voz, quando começou a falar, era uma mistura de tristeza e frieza: — Você dormiu com a cabeça alta, conforme mandei? — Sim, sempre com dois travesseiros. — Subiu muita escada, fez esforço? — Nada que me fizesse cansar, doutor... — Como está a diabetes? — Dentro do possível, acho que bem. — O que você fez ontem? — Andei um pouco, à noite, mas sem pressa. Depois fiz sexo com uma garota. — Ejaculou? — Sim, gozei. — Sabe, isso comprime o diafragma e pressiona o sangue na cabeça. Acho que isso pode ter contribuído para esta situação. — Mas, doutor, mesmo que quisesse, seria impossível ficar mais de dois meses sem gozar... Ele me explicou então que a ejaculação pura e simples não despendia tanto esforço quanto a que exige uma relação sexual, mas que não deveria ter sido só aquilo. Esta contribuíra para algo que um dia aconteceria de uma forma ou de outra. Disse-me, também, que não me alertara porque os diabéticos com a minha situação de visão, normalmente, não conseguiam mais ter relações sexuais e que, em alguns casos, até já possuíam ejaculação retrógrada, ou seja, para dentro da bexiga. Fiquei chocado, mas ainda esperançoso, pois ele havia dito que esperava que aquilo acontecesse mais cedo ou mais tarde com a visão. — Então está tudo mais ou menos dentro do previsto... Qual é o próximo passo? — Não há muito o que fazer, Marco... – 76 – — Como? — interroguei embasbacado. — Creio que agora é definitivo. Você chegou muito tarde, nós fizemos o possível para adiar isso... — Como? — estava mais desorientado ainda. — O que podemos fazer é tentar manter o pouco que você está vendo agora... — Mas eu estou cego! — exclamei, já gritando. — Você deve estar enxergando vultos, isso é melhor que nada. Você tem de ser forte... — Mas não sou, doutor. Isso não pode estar acontecendo comigo, não é verdade, não é verdade! — berrava bem alto, enquanto novas bolhas de sangue apareciam na vista. Quique não se agüentou e entrou na sala. Não era preciso dizer nada; o clima já mostrava o que estava acontecendo. Deram-me um calmante e, não sei por quê, percebi naquela hora que tocava a Quinta de Beethoven. Por que aquela música, justo naquela hora? Não poderia ser algo mais suave? Toquei em meu sexo e percebi que as marcas de amor da noite anterior ainda estavam nele, e nos pêlos também: eu não havia me lavado ainda. Dormira antes de fazê-lo e acordara muito assustado. A vida, com toda a sua força, me mostrava a morte. Pensei nas pessoas queridas que estavam do outro lado do Atlântico, pensei em Lila, em Felipe e sua turma, na cantora de ópera e em Quique, que estava ali comigo, segurando minha mão. Chorei. Aquela seria a primeira das únicas três vezes em que chorei a cegueira em minha vida. Estava lutando há dois meses e meio contra um predestinado vencedor e não sabia. Será que meu destino era ser diabético, cego e impotente? Deitei na cama em que havia sido tão feliz, naquele quarto aconchegante que quisera ser meu e de Lila. Toquei novamente em meus pêlos grudentos e em meu sexo ainda sujo. Sim, sujo pela repressão de meu pai e também de minha mãe, que queria que eu fosse padre católico e dizia ser “um homem nu a coisa mais nojenta – 77 – que existe”. Agora ele estava sujo novamente, só que pela vida, que me dera uma porrada por causa dele. Se o meu caminho era a impotência total, o que restaria de meu futuro? O celibato? A morte? A bunda? Quique saiu para comprar nosso almoço, eu estava só. Conhecia a casa como a palma de minha mão. Levantei-me e fui ao banheiro me lavar. Precisava lavar a alma e não só o sexo. Este ficou duro em minha mão, masturbei-me desesperadamente, mas broxei antes de gozar: gozei broxa. Estava chorando. Lavei o rosto e senti uma frieza de quem está trancando tudo, de quem não agüenta mais pensar ou sentir... Fui à sala porque necessitava de ar e abri a porta da varanda. A temperatura, como sempre, estava baixa, e com o frio veio também a zoeira do trânsito. Algo me conduziu para a frente e, como um robô, pus uma perna para fora da varanda. Na diagonal, sabia, havia uma grande igreja e pensei em Deus. Por que isso? Senti câimbras em todo o corpo, todo ele estava rígido. Tirar a perna que restou na varanda requeria coragem para morrer, mas também covardia por não conseguir viver. Voltar para dentro significava covardia de se matar, mas antes de tudo coragem, muita coragem, para viver. Em minha cabeça começou a passar um filme ao qual não queria assistir. Cenas do passado muito longe e esquecidas. Uma a uma, como fotografias animadas em minha cabeça. Minha infância, meus amigos, meus pais, o amor que já havia recebido de todos. Será que me amariam como antes? Deus, o que era Deus para mim? Seria aquela imagem do carrasco que tudo sabe e tudo vê, pronto para me castigar por tantos pecados? Minha infância se passou num grande temor a Deus. Deixar-me em frente da imagem de Cristo era pedir para me ver desesperado; ela criaria vida, na certa, só para me colocar na linha. Não tinha medo das almas ruins do outro mundo e sim das boas, porque poderiam querer me aplicar um corretivo... Deus era espírito, e aí estava a loucura. Às vezes via minha imagem refletida no espelho e tinha a sensação que, de repente, ela poderia não mais corresponder aos meus gestos, simplesmente por ser um espírito, e sobre ele Deus tinha domínio. As imagens, agora, eram as da minha cabeça. Algo gritava dentro de mim: “Eu estou vivo”. – 78 – Era preciso que eu me amasse. Será que me desprezaria por ser cego? E por ser impotente? Talvez... “As células do dedão do teu pé estão vivas, Marco. Teu cérebro e coração funcionam, milhões de células estão vivas em você. NÃO MATE TODAS POR CAUSA DE ALGUMAS.” Criei coragem e tirei a perna: a que estava fora. Sentei no sofá da sala e pouco depois Quique chegou com o almoço. Disse-lhe que queria marcar a data de minha volta para o Brasil e que desejava que isso ocorresse o mais rapidamente possível. Eu estava assustado. Dei-lhe alguns dólares para que comprasse lembranças para os amigos, As Quatro Estações de Vivaldi e a Quinta Sinfonia de Beethoven para mim. Até hoje não consigo escutar com tranqüilidade essa sinfonia, mas era algo que precisava ter junto a mim. — E tua mãe? — Vou telefonar para ela — respondi. — Vai contar tudo por telefone? — Não, só que vou voltar. Quique, Felipe, Lila e Jorge foram me levar ao aeroporto, três dias depois. A emoção era grande, diferente. Quanta experiência havia ganhado, quantas coisas vivera, e tudo se concentrava naqueles abraços de despedida... Será que reveria aquelas pessoas algum dia? Agora necessitava de forças para começar não sabia o quê. Antes de partir me encontrei novamente com o Dr. Dutrenitch, pois ele precisava me entregar uns remédios que seriam bons para mim. — Com o tempo, doutor, ficarei com blackout total? Seu silêncio foi a resposta mais completa que poderia me dar (e o tempo a confirmou). Solidário, pôs a mão em meu ombro e entrei no carro... O avião decolou e não sentia mais medo de estar ali sozinho. Aquele vôo não era só em direção ao Brasil; era também para uma nova vida. – 79 – New Life Hoje, o colégio abriu as portas para eleger Tancredo Neves presidente de nosso país. Parece que os “alunos” seguiram o conselho da turma aqui de fora, que, aliás, há muito tempo não opinava. Mas o rock também anda movimentando as cabeças do Rio e do Brasil. É o Rock in Rio. Passamos por uma fase agitada. Sem querer fui viajando até a época dos Beatles, Joplin, Hendrix e Pink Floyd. Todos me vinham com a resistência das calças Lee, com os cabelos compridos para homens, com a contracultura dos hippies, com um “não” aos costumes e às estruturas vigentes. Abrimos as portas para muito além das 10 da noite, as cabeças para muito além do álcool, os corpos para muito além do compromisso. Mas com tudo isso ainda existe o grito de sempre: LIBERDADE? Quanto falta? Seria ótimo escutarmos o conteúdo de nosso próprio grito. É bom saber por quem e por que gritar. Se não emudecer, o grito fica bem mais forte... Barcelona é parte da minha história. As pessoas, as coisas, os acontecimentos de lá ficaram num pedaço de mim. Agora era diferente. Tudo estava por começar. Os alto-falantes do avião anunciaram o Rio de Janeiro e seus 30 graus. Já havia fantasiado em dez mil formas o encontro com minha mãe e meus amigos. Dez mil maneiras de dizer o que havia acontecido, mas sabia que nenhuma delas seria igual à que iria viver. Queria me sentir preparado para dizer tudo, controlar a situação e não ser traído pela emoção. Não desejava fazer de minha realidade uma tragédia. No entanto, suava naquela poltrona e a gola de minha camisa já se encontrava bastante babada de tanto que eu a mordia. Imaginei que seria bom ficar pensando em algumas piadas para me distrair da tensão, mas só me vieram à cabeça as de humor negro. Realmente, não era uma boa – 80 – solução. O que seria melhor? Me ligar no pouso do avião? Não, aquilo, naquela situação, não me atraía mais. O jeito era mesmo esperar e deixar pintar na cabeça o que viesse e morder mais um pouco a gola da camisa. A fila da alfândega me irritava, tudo me irritava, mas permanecia com aquele ar sereno de sempre. Tremia ao pensar que logo me encontraria com alguém conhecido, e engolia em seco. Tudo daria certo. Não sabia, porém, que as pessoas já se encontravam por trás dos vidros da sala onde eu estava e me observavam atentamente. Acontecesse o que acontecesse, eu queria mostrar a todo mundo que estava pronto para encarar minha nova realidade que, em verdade, ainda não conhecia. — Marco, como está? Como foi de viagem? Está tudo bem? — Está tudo bem, mamãe. A viagem foi ótima. — Enquanto você viajava, Quique me telefonou e me falou algumas coisas. É verdade? — Ele não devia telefonar, estava duro — protestei. — Filho, como você está? — Cego, mãe. A senhora é um vulto difícil de enxergar, mas, logo, logo, nem isso. — Diga alguma coisa, Marco. Qualquer coisa, só uma esperança... — Temos de encarar, mamãe... Os sentimentos explodiam dentro de mim. Mas, se minhas armaduras de aço e nervos deixassem escapar uma só lágrima, eu sabia que muitas outras viriam atrás. Segurei-me. — A senhora veio com quem? Uma voz conhecida e um pouco embargada respondeu: — Oi, Marco, sou eu, o Chico, viemos com a Carminha. Demos um abraço, sérios, mas cheios de emoção. Vi uma sombra do lado de Chico e cumprimentei: – 81 – — Oi, Carminha. — Sou a aeromoça. Vou embora, tudo de bom. Agradeci. — Estou aqui, Marco! Carminha veio e me beijou. O silêncio constrangedor do engano com as sombras parou no ar. Fiquei chocado. Senti as lágrimas de mamãe rolarem através de um barulho sufocado de sua garganta. Coloquei a minha mão em seu ombro e a pressionei contra meu peito abraçando-a. — Tudo bem, mamãe. Vamos aprender a lidar com isso. Passei por aquele teste sem lágrimas. Sentamos no carro de Carminha, o mesmo que eu já havia dirigido muitas vezes a seu pedido. Desde pequeno tinha fissura por carros e adorava dirigir. Aos poucos, fui tomando contato com essa nova impossibilidade. Conheci Carminha num cursilho — TLC — promovido pela Igreja Católica para dar e/ou incentivar a consciência de Deus nos jovens. Isso se passou num final de semana quando, numa casa bem retirada, participávamos de palestras e mais palestras sobre temas religiosos, seguidas de reflexões e debates. O encontro era dirigido pelo padre Gui. Ele era um cara bem aberto e, por mais chocantes que me parecessem ser minhas perguntas, ele as respondia com muita segurança. Acho que já estava vacinado contra caras como eu. À noite, me colocaram como companheiro de quarto de um veterano de cursilho que coordenava grupos. Tinha vinte anos como eu, estudante de engenharia e bastante convicto de suas prerrogativas católicas. Passamos a noite inteira em claro, falando sobre Deus e a igreja. No dia seguinte, muito cansado, mais palestras, mais reflexões, mais debates. Minhas afirmativas descrentes passaram a ser dúvidas, minhas dúvidas, conversão. A despedida do casarão foi feita numa missa onde eu sentia, com nitidez, a presença de Deus no altar... No ônibus de volta, todos cantavam músicas religiosas e eu me espantava com a profundidade da oração de São Francisco de Assis. Carminha sentou-se a meu lado e, entre as canções, conver – 82 – samos alguma coisa. Eu estava convencido de que poderia ser um ótimo padre e ela olhava para mim com ar de “deixa disso”. Para surpresa de todo mundo, nossos pais estavam nos esperando com uma grande festa, no pátio do Colégio Santo Inácio, de onde partíramos. Mais surpresos ainda ficamos quando percebemos que o meu pai e o dela eram velhos amigos. Cresceu uma amizade entre nós que, hoje, não sei onde foi parar. Quanto a ser padre, com o tempo achei a castidade inoportuna. Estávamos agora ali no carro. Será que ela pensava em Deus? E a castidade que a vida estava me impondo um ano depois, será que Ele tinha a ver com isso? O que será que as pessoas pensavam naquele grande silêncio cheio de palavras? E o Chico, o que sentia? Desde os doze anos de idade crescêramos juntos. Quantos programas, quantas viagens já tínhamos nos ajudado a fazer... Em Arembepe, na Bahia, passamos o maior sufoco de dinheiro e começamos a fazer pulseiras de palha africana para vender na rua. Foi gostoso provar que conseguíamos produzir dinheiro fazendo algo tão terapêutico. Deu certo e chegamos a trazer a idéia para o Rio. Voltamos de ônibus-leito por causa disso. Hajam pulseiras! Só tinha um detalhe: enquanto eu fazia duas, Chico produzia três e a mesma proporção era nas vendas. Admirava sua habilidade manual. Mas, daquela viagem à Bahia, não trouxéramos só aquilo de original. Fôramos para lá com Márcia, uma garota que conhecêramos em Araruama, e, por ser época de férias, não encontramos em Salvador, na primeira noite, onde dormir. Acabamos os três num mesmo quarto que conseguimos alugar numa zona e, além disso, numa mesma cama de casal para todos. Márcia ficou entre nós dois, abraçada a seu violão de doze cordas, que tinha medo que roubassem. Dormimos entre os sussurros de sexo dos quartos vizinhos. Foi uma maneira muito original de conhecer uma zona, ou seja: sem prostitutas e com um amigo... Chico estava ali comigo sem saber o que fazer. Aliás, como todo mundo. Mamãe jamais pensara em ter um filho cego. Como reagiria nos dias seguintes? E eu? Quando cheguei à esquina do meu prédio, uma emoção me invadiu. Aquela esquina, com a qual por tantos anos convivera e – 83 – pela qual tantas vezes passara dirigindo meu próprio carro... Muito viva em minha mente, nunca quis tanto que nada tivesse mudado nela. Arrepiei-me ao pensar que todos os lugares que conhecia visualmente e amava ficariam guardados como imagens do passado. Como renová-las? Minhas perguntas não tinham respostas que eu soubesse e minha emoção continuava solitária. João, o porteiro, me perguntou como tinha sido, se estava tudo bem, e eu lhe respondi rapidamente sem dar nenhuma dica. Não tinha consciência, mas estava com vergonha de ser cego. Se ele percebesse, logo muita gente iria saber. Meu pai, aposentado desde cedo, vivia perambulando ali por baixo no bar, no jornaleiro, na padaria, na farmácia e todos no quarteirão o haviam conhecido. Papai possuía características pouco comuns. O ano de seu carro datava da Segunda Guerra Mundial, 1939, e era azul-pavão. Como se não bastasse, todos os vidros do carro eram emoldurados com decalques de bandeirinhas do Brasil desde a Copa de 70. Era um homem de 1,90 metro, magro e barrigudo, e, como não gostasse de sentir o sol na cabeça, usava sempre um chapéu panamá para se proteger. Mamãe sempre o acompanhava quando ia dar seu passeio de carro pela praia e, freqüentemente, davam carona para algum amigo meu até em casa. Eram conhecidos, portanto, não só no quarteirão. Acabaram até sendo apelidados de “Bonny and Clyde”. Eu era o filho de tal figura. Muitas vezes me chamavam de “Birinha”, diminutivo de seu nome, Ubirajara... Como encarar a todos, principalmente ali no quarteirão? Teria de enfrentar o sentimento, calado ou não, de cada um que o conhecesse e soubesse que eu era seu filho. Pensaria nisso depois... Chegando em casa encontrei Carla. Do antigo quarteto só faltava minha irmã, que estava morando em São Lourenço e, provavelmente, ainda não sabia de nada. Nos dias seguintes percebi que, se mostrasse algum sentimento de tristeza, depressão ou revolta, as pessoas desabariam a minha volta. Mamãe, principalmente, estava supersensível, chorando à toa. Que chorasse, então, somente pelo seu sentimento. Não quis incentivá- la com os meus. Antes de tudo, precisava ter forças, deixar assentar a poeira para saber o que fazer de mim. Qualquer sentimento de – 84 – autopiedade me derrotaria antes de a luta começar. Fiquei dando uma de durão e de forte de forma tão espontânea que, às vezes, eu mesmo me perguntava o que em verdade sentia. Coloquei muita gente no ombro a chorar minha cegueira. Um espanto! Comecei a aprender a ser cego dentro de casa. Percebi que através do eco e do peso da água poderia encher um copo ou garrafa sem transbordar. Passei a tomar meus remédios sozinho, distinguindoos pela forma dos comprimidos quando as embalagens eram muito parecidas. Na cozinha, realmente, foi a maior luta. Não pelas dificuldades das experiências e sim por causa de minha mãe. Ela ficava aterrorizada quando eu pegava a faca para cortar o queijo ou punha a torradeira, que não era automática, para funcionar. Para cortar o queijo colocava a faca na direção dos cortes anteriores e descia a mão. Quando a faca perdia a resistência era um sinal óbvio de que tinha saído do queijo. Então, antes que perdesse totalmente a resistência, eu a enfiava um pouco mais para dentro e, dessa forma, conseguia o pedaço do tamanho desejado. Com a torradeira, dava um tempo até puxar o pão para cima e sentir, através de sua densidade, o quanto estava torrado. Fazia isso com um leve toque: quanto mais duro, mais torrado. Reconhecia minhas roupas pelo tipo de tecido, botões, bolsos ou mesmo detalhes do corte. Cada nova alternativa era uma descoberta que me excitava. O tato era, efetivamente, algo fantástico e do qual nunca me dera conta. Com uma pedra na mão pude perceber que não existiria nenhuma outra pedra igual àquela, pois só ela tinha aquele peso, aquela porosidade, aquele tamanho e umidade... Eu me encontrava, na verdade, redescobrindo o mundo, tocando, cheirando e aprendendo a ouvir tudo. De 3 às 5 da madrugada o silêncio era total. Às 5, a passarinhada começava a cantar; às 6, João começava a lavar os carros na rua; às 7, o movimento de carros e ônibus aumentava consideravelmente. Somente aquela criancinha chorava em horários completamente diferentes: devia ser diarréia. Durante o dia, os horários dos programas de rádio e TV me davam noção do tempo. Tudo foi assim, até importar um relógio norte-americano, igual aos relógios de pulso comuns, com a diferença de que se pode levan – 85 – tar o vidro e, com o dedo indicador, tocar seus pon- teiros para saber as horas. Um relógio desses –- sem nenhuma tecnologia especial a não ser a colocação de uma dobradiça no vidro, um pouco de endurecimento dos ponteiros para não oscilarem ao tato e colocação de relevo na numeração — custa, no mínimo, 35 dólares lá, fora o extra, por ser “muamba”. Isso, se for um relógio de corda vagabundo. Sendo um automático bom, pode chegar a um preço bastante “excêntrico”. Necessitava agora aprender três coisas fundamentais: andar, ler e escrever de forma independente. Procurei, então, o Instituto Benjamin Constant, que, apesar de me ter recebido muito bem e me conseguir professores de locomoção e do sistema de escrita e leitura de cegos, o Braille, não possuía um setor específico de reabilitação, acontecendo tudo na base do “quebra-galho”. Achei estranho uma instituição federal de assistência ao cego não estar preparada para casos como o meu. No mínimo, deveria existir lá alguém que nos dissesse as dificuldades de nossa nova realidade, os meios alternativos de superá-las, alguém que preparasse a pessoa para uma nova característica físico-sensorial que é acrescentada à sua identidade. Todas essas informações fui obtendo aqui e ali, de um e de outro, o que muitas vezes gerava idéias conflitantes. Uma pessoa tímida e sem iniciativa sairia de lá podendo andar, ler e escrever, mas desorientada e confusa. A técnica de locomoção é simples: com o braço esticado para a frente leva-se a bengala para um lado qualquer. Dessa forma, a bengala mostra que a perna do lado escolhido pode ir para frente até onde foi a bengala e que se pode dar o passo. Quando isso acontece, joga-se a bengala para o lado oposto, ou seja, para o lado da perna que ficou para trás com o passo dado. Se a bengala esbarrar em algo é só parar e estaremos a um passo do obstáculo. Desse jeito, fica-se sempre um passo atrás de um possível perigo. De resto, é só perder o medo e a vergonha. Aí é que, normalmente, começa o problema... Dei várias voltas perto do Instituto com a professora, até me sentir minimamente seguro para minha primeira tentativa de andar sozinho. Fui vencendo o medo aos poucos. Precisava começar a andar pelo quarteirão em volta de casa. Era um novo espaço. Além do medo, sentia vergonha. Se errasse muito, poderiam sentir mais pena de mim do que muitos já sentiam. – 86 – Andar sozinho perto do Instituto, por lugares que já havia passado várias vezes com a professora, era uma coisa; mas andar só por um lugar onde nunca tinha passado depois de cego, sem conhecer os macetes e com muitas pessoas conhecidas me observando caladas, era outro barato. Um dia, fui até a porta do meu apartamento com a bengala na mão. O prédio eu conhecia de cor, já entrara e saíra dele várias vezes e morava ali desde criança. Chegar até a rua seria fácil. — SAI, MARCO ANTONIO, SAI! — ordenei nervosamente para mim mesmo. Voltei, bebi um copo de água. Eu estava com os nervos à flor da pele. Dizia para mim o muitas vezes pensado “se outros cegos podem, você também pode”. Mais um copo de água. Cheguei até a porta novamente, resolvi não pensar e saí. Bengala para a direita, bengala para a esquerda, bengala para a direita, PLUMMM. O barulho metálico me assustou, quase a deixei cair. Era o pára-choque de um carro que estava na calçada. Sabia que me encontrava na lateral do meu prédio pela direção que havia tomado. Coloquei minha mão no carro e segui em direção oposta ao barulho da rua. Assim, passaria entre o carro e a parede do prédio. A parede eu encontrei, o carro estava na minha mão, só não havia o espaço. Filho da puta, encostou rente à parede! Eu mesmo já havia encostado meu carro tantas vezes assim... Dei a volta pelo outro lado e segui meu caminho. Estava muito atento ao que fazia, mas comecei a cantarolar baixinho para distrair minha tensão: “Bengalando contra o vento, sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro, EU VOU...” Repentinamente, um pedaço de pau na minha cabeça. Por essa eu não estava esperando: uma árvore com o galho baixo. A bengala não me avisava do espaço aéreo e eu tinha 1,82 metro de altura. O que fazer? Usar um capacete de motoqueiro? Achei que um cego de capacete na rua seria demais... OK, não seria sempre que encontraria galhos baixos por aí. O barulho e o cheiro de pão me avisaram de que estava em frente à padaria, já perto da minha portaria. Só faltavam o antiquário, a loteria e o bar e eu estaria em casa. O anti – 87 – quário não produzia nenhum barulho característico, mas a loteria sim e, além disso, o desnível na calçada em frente a ela me assustou. Tudo bem, aquele desnível seria fundamental quando o comércio estivesse fechado... O bar não tinha erro: o barulho das xícaras de café e copos era inconfundível. Acabando aquele barulho seria a portaria. Cheguei suado, nervoso, mas feliz. Consegui! Em todo o percurso só fui abordado por um senhor que se ofereceu para me atravessar a rua. Não quis atravessar e agradeci. Que bom, estava feliz! O “serviço secreto” avisou minha mãe do ocorrido. Ela ficou aterrorizada, como sempre: — E se você bater num poste, cair num bueiro, for atropelado, o que vai ser de mim? — Nesse caso, mamãe, seria o que vai ser de mim e não o que vai ser da senhora — respondi brincando, mas esses eram meus maiores temores. Tive de impor meus objetivos com muita rigidez para ela para poder continuar. E continuei. Normalmente, a família e suas preocupações se tornam o maior obstáculo para a pessoa cega se reabilitar. Nos dias seguintes, dei voltas e mais voltas pelo quarteirão, até que comecei a achar sem graça. Fui para o próximo quarteirão e depois para o próximo e, assim, fui conquistando os espaços. Andar sozinho, porém, acarretava outros problemas. Um dia arrumei uma confusão na rua com um senhor que me atravessou: — Você não repara não, mas se eu fosse cego que nem você eu me matava... Eu, surpreso e não estando a fim de muita conversa, respondi: — O senhor não repara não, mas pessoas fracas que nem o senhor já estão mortas há muito tempo. Não consigo entender como o senhor está vivo. Sabe como conseguiu? Ele começou a falar alto para todo mundo ouvir. — Tá vendo só? A gente ajuda esses ceguinhos e ainda leva desaforo para casa! – 88 – Eu havia percebido num esbarrão que lhe dera, sem querer, que se tratava de uma pessoa gorda e continuei: — Não fica chateado comigo não, gordinho... — Você não tem intimidade pra me chamar de gordinho. Você é um ceguinho revoltado mesmo, hein? — Eu te chamei de gordinho porque você me chamou de ceguinho... Eu também nunca te dei intimidade pra isso. — Mas você é um ceguinho! — E você também é um gordinho, aliás, um gordão! — Seu sem-vergonha — gritou ele. Deixei-o falando sozinho, aliás, com o público que começou a se juntar. O problema dele não era a gordura, mas a ignorância. Sabia que tanto a palavra cego quanto a palavra gordo eram pejorativamente conceituadas e me utilizei da segunda no diminutivo só para tentar fazê-lo compreender. Eu mesmo utilizava “deficiente visual”, em vez de cego, para amenizar o impacto, mas era mal empregado. Deficiente visual é usado para quem possui uma diminuição do campo visual, tal como um míope. Mas quem não possui visão alguma é cego mesmo. O problema é que na palavra cego estão embutidos muitos valores depreciativos, como dependência, tutela, alienação, ignorância, etc. Se chego para alguém que não é cego e o chamo de cego, a pessoa se sente agredida, mas se alguém me chama de cego não me sinto da mesma forma. Por quê? Será só pelo fato de eu ser cego mesmo? Não, é porque o significado, o conteúdo da palavra, para mim, é bem diferente do que é para as pessoas em geral. Muita gente tenta me consolar e diz: “Cego é aquele que não quer ver”. Eu diria que essa pessoa não é um cego, mas um idiota. Para elas deve haver dois tipos de cegos: o cego simplesmente cego e o “cego” simplesmente idiota que, usualmente, tem visão. Brabo mesmo deve ser o cego que é cego e que também é idiota. Seria no conceito dessas pessoas, no mínimo, duas vezes cego... Realmente me sinto constrangido quando alguém chama a outro de cego na minha frente, porque normalmente o cara não possui nenhuma das minhas características. – 89 – Se o conceito que possuo de cego fosse o mesmo das pessoas em geral, seriam evitadas cenas como a de um casal que me ajudou a atravessar na Nossa Senhora de Copacabana: — Mas, Cláudio, você não está vendo que está completamente cego? Ela só estava querendo curtir com a tua cara! Ela parou, por se lembrar que estava guiando um cego, e desculpou- se: — Bem, eu não quis dizer isso... — O quê, que Cláudio é cego? Mas ele é ou não é? — É... Quero dizer... Não é, sei lá, mais ou menos... — respondeu ela embaraçada. — Você já teve notícia de alguma mulher mais ou menos grávida? — perguntei. — Mais ou menos grávida não pode; ou está grávida ou não. — Também não conheço ninguém mais ou menos cego. Ou é, ou não é. Também não conheço nenhum cego que tenha visão... Ela não fez por mal, mas acabou ficando muito sem jeito. Levou azar, pois eu estava pensando sobre aquilo justamente naquele período. — Tudo bem, ele não é um cego, é um tapado, pronto. Ela resolveu a parada e nos despedimos. Depois vim pensando que, realmente, todo cego tinha os olhos “tapados”... Aprendi os rudimentos do sistema de escrita e leitura Braille também no Benjamim Constant... Isso, porém, de início, só me foi útil para anotar telefones, etiquetar discos e fitas. Resolvi recomeçar a faculdade. O curso de história baseia-se principalmente em textos muito compridos, tornando-se mais fácil gravá-los em fitas cassetes do que passá-los para o Braille. Minhas provas eram orais ou datilografadas em máquina comum. Tive, por isso, de aprender a datilografar com os dez dedos, pois catava meu – 90 – milho somente com os indicadores. Assim, ficava mais difícil e mais lento. Passei a ser relativamente rápido nisso. “O bom datilógrafo é aquele que não vê.” Pedi transferência da Federal, do Largo de São Francisco, para a PUC, que ficava pertíssimo de casa. Para quem tinha a prática de somente dois meses e meio de rua, era bom diminuir as distâncias. Fui apoiado por Anna a fazer uma psicoterapia. A idéia foi ótima, apesar da resistência inicial. Já havia lido vários livros de psicologia e psiquiatria e quis ver, na prática, como era o negócio. No mínimo mataria minha curiosidade. A coisa funcionou bem para mim; aliás, até hoje. Consegui me conscientizar mais dos meus problemas e assim canalizar mais energia para realizar meus objetivos. A terapia não se centrou na cegueira, mas em toda a minha vida. Isso me instrumentalizava, me dava armas para um autoconhecimento mais profundo, para poder pensar melhor os meus problemas. Sempre fui meio “CDF”. Na faculdade, porém, exagerei um pouco. Aquilo ocupava minha cabeça e meu tempo e me ajudava na auto-afirmação pessoal e intelectual de que necessitava. Eu marcava uma boa presença em todas as aulas e a experiência foi muito válida enquanto não saturou. Se a minha psicoterapia servia para me pôr em contato com meus sentimentos e processos de vida, a faculdade servia, por outro lado, para me fazer esquecê-los. Eu estudava, estudava e estudava. Era como se toda a minha vida fosse só aquilo, até que percebi que não. No segundo semestre conheci Sônia. Ela já era licenciada professora, mas estava fazendo bacharelado e freqüentamos uma aula comum. Logo que cheguei ao Rio me perguntei se com visão normal me atreveria a namorar uma cega, mesmo que fosse inteligente e carinhosa. E o inverso? A faculdade me deu parte da resposta. Muitas garotas, explicitamente, quiseram ficar comigo, e eu sem saber o que fazer com minha maldita impotência sexual. Por vezes, cheguei a fugir de mulher como rato fugindo de gata. O clima com Sônia, no entanto, foi mais forte que qualquer possibilidade de fuga, pois não se reduzia à atração sexual. Dizem que o homem é o sexo forte. Mas é só entrar – 91 – no clima que fica todo descontrolado. Era isso que sentia com sua presença; ficava todo desbaratado, querendo imaginar o que pensava e sentia com minha presença. Aquilo era paixão, mas não mais uma paixão adolescente, que se desfaz no primeiro obstáculo, e sim algo firme, que cresceu sólido com a densidade de nossas experiências. Sônia era dois anos mais velha do que eu, morava sozinha e já trabalhava para seu próprio sustento. Eram características que me punham medo quanto à sua aceitação de meus limites. Acabei me envolvendo pela dona daquelas mãos de unhas compridas que roçavam na pele de meu braço para me avisar que ela estava ali. Eu sentia que éramos grandes e adultos e que queria crescer ainda mais com ela. A princípio, experimentei muita insegurança, pois estava havendo uma movimentação política na faculdade em torno de um edital publicado por um jornal carioca a respeito da unilateralidade ideológica (marxista) que impregnava o ensino em nossos cursos. Sônia foi redatora da carta aberta à população, na qual nos posicionamos contrários àquela afirmativa. Ficava cercada de líderes dos diretórios acadêmicos durante as reuniões e encontros estudantis. Eu me perguntava se não havia caras bem mais inteligentes e interessantes do que eu por ali... Aos poucos, porém, fui perdendo meus receios, acreditando mais em mim, e resolvi declarar meus sentimentos, no que ela correspondeu inteiramente. Estávamos nos amando. No dia em que resolvemos nos declarar passeávamos na praia. Eu me sentia completamente inibido de lhe falar aquilo que já era óbvio em minha fisionomia. Naquele momento, sim: me sentia um crianção. Nem diante da primeira namorada ficara tão sem jeito. — Sônia, eu não sei o que eu faço; se pego suas mãos, se te abraço, se te dou um beijo. Estou acanhado. — É, eu também estou, também não sei o que fazer. A situação estava estranha realmente. E, por dentro, estava me xingando... “Porra, Marco, você que sempre deu uma de seguro, de gostoso! Num tá sabendo nem pegar na mão de uma mulher?” — Vamos ver se a gente dá uma volta e acaba com esse constrangimento. – 92 – Levantamos e eu lhe dei a mão para que ela me guiasse. Nos demos as mãos. Mas, e agora? O que fazer com as mãos dadas? Andamos mais e, aos poucos, comecei a lhe fazer um carinho com o polegar. Fomos ficando numa boa. Mas o início de nosso relacionamento foi um tanto difícil. A impotência mexia com a minha cabeça e com a de Sônia também. Tentamos de muitas formas, mas a única coisa que aconteceu de bom foi que aprendemos a nos curtir melhor. Quase oito meses de incríveis tentativas e... nada. Nunca conseguia ereção suficiente para penetração. Minha terapeuta e Sônia me incentivavam para que eu procurasse a Dra. Ing, minha endocrinologista, e me abrisse com ela. Mas é difícil para qualquer homem falar desse tipo de dificuldade; o orgulho atrapalha tudo e, além do mais, eu não acreditava numa solução. Estava feia a coisa e, no auge de minha angústia, tomei coragem, deixei os meus resquícios de machismo na escrivaninha e fui com Sônia ter uma conversa com a Dra. Ing. Conversamos muito a respeito e, ao final, ela disse que havia uma solução simples, através de operação. Deu-me o telefone do Dr. Fernando Vaz para que marcasse uma consulta. Ela mesma teria um papo com ele explicando as minhas condições. A coisa ficou facilitada porque a operação seria feita no hospital onde os dois trabalhavam. Fiz todos os exames e fui à luta. A operação teria sido realmente simples se não fosse por dois acidentes. O primeiro foi causado pela anestesia, que me proporcionou uma bonita parada cardíaca pós-operatória. Senti que não conseguia respirar e comecei a pedir socorro, mas era um pedido apenas mental. Por mais que gritasse dentro de mim não conseguia abrir a boca. No auge dos meus esforços, do desespero, consegui dizer: — Não consigo respirar, estou morrendo! Dra. Ing estava a meu lado. Havia acompanhado clinicamente a operação. – 93 – Acordei em outro boxe, com Sônia e outras pessoas das quais não me lembro ao meu lado. No dia seguinte, conheci o pessoal que se movimentou em torno de mim. Era um tal de: — Eu sou fulano, que massageou seu coração. — Eu sou o que trouxe o oxigênio. — Eu fiz isso... — Eu fiz aquilo... — Como está? Tudo bem? Os doentes dos outros boxes da enfermaria vieram me visitar, quase todos, e me contaram que foi o maior rebu. Realmente fui assunto para aquelas horas tristes de espera e recuperação do pessoal. Eu era o mais jovem da enfermaria e o único por ali que tivera parada cardíaca nos últimos tempos. Aquilo era um ótimo motivo para troca de idéias e histórias e também para integrar o pessoal que, mal ou bem, ficava isolado por aquelas divisórias. Foi uma experiência interessante conhecer a vida de algumas pessoas, falar sobre a forma de senti-la, as perspectivas de futuro e alguns encontros com a morte. Dentro de um hospital o tema morte é tabu, motivando as pessoas a falarem muito da vida. É um tema íntimo, profundo, cheio de mistérios e que revela muito das pessoas. Foi estranho; depois que pedi socorro não esperava mais viver. Relaxei simplesmente. Se tivesse morrido, acho que, apesar da contradição, teria sido num segundo de tranqüilidade. Senti como se nada existisse, nada além do nada. Foi um momento que não vivi história, nem Marco, nem paixão ou medo. Era só NADA. Sônia me contou depois que, ao se aproximar da enfermaria, percebeu a movimentação apressada dos médicos e enfermeiros. A enfermaria fora fechada para visitas e ela logo pressentira algo, visto que a Dra. Ing não escondia seu nervosismo ao solicitar ajuda. – 94 – Anna também estava no hospital mas, distraída, conversando, só achou estranho quando passou o balão de oxigênio, e comentou: — Alguém está passando mal por aí. Sônia não ousou confessar seus pressentimentos e esperou as coisas se acalmarem para ver, afinal, o que havia acontecido. Quando a percebi ao meu lado me fazendo carinho é que notei que não havia morrido. Fiquei feliz; Marco ainda existia e tinha uma história com Sônia. O segundo acidente foi uma infecção que consegui com a sonda que me introduziram pelo pênis até a bexiga, para que urinasse sem dificuldades. (Ô dorzinha filha da puta!) Nunca pensei que fosse sentir tanta dor de cabeça entre as pernas. Meu pênis ficou inchadão, e me lembro como me diverti quando soube que Sônia levou um susto ao pensar que depois da operação “ele” poderia ficar sempre daquele tamanho. Não ia ser fácil agüentar aquele “negócio”... Mas depois de muitas injeções de antibióticos e de algafan, tudo voltou ao normal para alívio de ambos, se bem que por motivos diferentes... O resultado final de toda essa arriscada e simples loucura foi fantástico. Nas semanas que se seguiram às de recuperação, quis descontar com Sônia todos aqueles meses anteriores e, mesmo assim, não conseguia cansar. Queria colocar lembranças do meu passado que substituíssem aquelas de frustração e de raiva calada, por sair de cima do corpo de uma mulher sem nada ter realizado. O gozo voltou a ser algo realmente pleno, instintivo, fora de sintonia da terra, uma conversa de amor com os deuses. Fantástico! Simplesmente fantástico! Poderia, agora, não somente fazer amor, mas sentir amor sem medo. As coisas, porém, não foram tão simples assim. A impotência me marcou com uma insegurança que só o tempo fez desaparecer, como também crer que o sucesso da operação havia sido realmente total. Mas não foi tão-somente isso que vivi em meus tempos de faculdade. Em termos de cirurgia, enfrentei ainda, mesmo antes de conhecer Sônia, uma de glaucoma. Eu que pensei que depois de cego – 95 – não haveria mais nada a acontecer com minha vista! Estava, realmente, enganado. Fui operado em Ribeirão Preto, ficando hospedado na casa de Bibi. Já tivera contato com a família dele quando fora passar umas férias em Baraqueçaba, uma praia pequena entre montanhas, perto de São Sebastião, no litoral paulista. Quando fizemos amizade aqui no Rio, em meio a estudos de vestibular e aulas de teatro, conversávamos sempre sobre a família dele, o que me despertara muita curiosidade. A ajuda e a solidariedade deles foi algo muito bonito. Seu Teotônio, Dona Mariazinha, vovó Judith e as irmãs de Bibi, enfim toda a família Junqueira, deram-me a força e o carinho de que eu estava precisando. Eu e Bibi já não tínhamos contato próximo há um ano e foi incrível essa reaproximação. É estranho quando duas pessoas que estiveram juntas cotidianamente, numa amizade bonita como a nossa, se afastam numa distância Rio, São Paulo, Ribeirão Preto. Conheci também, nesse período, Oscar, um amigo de Bibi, que agitou muito a minha ida para lá. O curioso disso tudo é que fui sem saber que seria operado. O médico me disse pelo telefone que era apenas um tratamento. Fiquei com a pulga atrás da orelha quando percebi que estava indo para a sala do “tratamento” de maca. Quando entrei e me deitaram na mesa de cirurgia, perguntei assustado: — Vou ser operado? Ele me respondeu: — Sim. Mas não deu tempo nem de sentir medo. Colocou um pano no meu nariz e fui acordar muito tempo depois, já operado. Meu companheiro de quarto era Saint-Clair, um amigo aqui do Rio que fez questão de me fazer companhia. Quando acordei da anestesia perguntei a ele, ainda tonto, se sabia que tipo de “tratamento” era aquele. Ele sabia, todos sabiam, menos eu. Fiquei puto. – 96 – Fizeram aquilo para não me assustar, como se fosse fácil me assustar depois de tudo o que já tinha vivido. Conformei-me, visto que a operação tinha sido muito boa e dado resultado sem eu precisar me preparar psicologicamente. Hoje em dia tenho pouco contato com Bibi, contudo sinto que somos muito amigos, que nos consideramos e que fomos muito importantes naquilo que aprendemos juntos. Seis anos nos separam e, apesar de agora sermos estranhos um ao outro, há algo que nos une. É uma semente que foi plantada e é muito bonita. Ele acabou de ser papai e eu lhe telegrafei: “FILHO VAI PARIR PAIS. FELIZ NASCIMENTO PARA VOCÊS”. A faculdade realmente me abriu o caminho da rua, pois eu precisava sair de casa todo dia. Esse mundo significou pessoas, idéias, sentimentos. A cegueira, que é minha característica mais visível, punha sempre à prova a estrutura das minhas emoções na relação com as pessoas. Cansei de ganhar na rua cartões de centros espíritas que “resolveriam o meu caso”. Ou mesmo, de ser consolado com a doença de outras pessoas, como um câncer ou coisa semelhante, o que era “muito pior do que o que eu tinha”. Grande consolo... Quando tinha paciência, tentava explicar que, apesar de ser algo que não desejasse a ninguém, a cegueira não tinha a dimensão sentida pelas pessoas. Elas tentam imaginar o que é ser cego fechando os olhos por um minuto. É lógico que muito pouco pode ser feito, visto que a pessoa não tem a prática nem a necessidade constante de se virar sem a visão. Ela se sentiria insegura em fazer as coisas mais simples, como discar um número de telefone, coisa fácil de fazer para um cego, já que os números estão sempre no mesmo lugar e em relevo, seja em telefones digitais ou não. Iria se atrapalhar muito para entrar num ônibus, coisa que não tem mistério, quando se sabe que todos os ônibus têm um corredor no meio e bancos nas laterais e que a maioria deles, principalmente os urbanos, possui ferros horizontais no teto que guiam a pessoa até a porta de saída, onde há um ferro vertical, ótimo para a orientação. Tudo isso e muito mais. A desinibição, a curiosidade, a prática e principalmente a necessidade ensinam. Para uma pessoa que não conhece nem convive com essas experiências, um cego torna-se um sujeito completamente alienado – 97 – no espaço e no tempo, incapaz de realizar qualquer tarefa. Essa idéia preconcebida gera várias conseqüências. No âmbito familiar, os parentes mal informados acabam, geralmente, por assumir uma das duas posições: de rejeição e abandono ou de superproteção e tutela. No caso de superproteção, os familiares procuram suprir todas as necessidades da pessoa cega, sem lhe dar muita chance de fazer algo por si mesma. Tudo chega às suas mãos. Normalmente essas pessoas se tornam anti-sociais: mesmo porque têm medo que, ao sair de casa, os amigos não consigam fazer por ela tudo o que os familiares já estão acostumados a fazer. Tive oportunidade de conhecer uma cega que morava no Leblon que chegava a passar sede, caso alguém não lhe fosse apanhar água. O extremo oposto disso são os cegos que trabalham e moram sozinhos. Entre um extremo e outro há diversas variações. Percebi, com isso, que o limite mais concreto do cego não é a cegueira, mas sim a educação, o condicionamento, a prática, as emoções. E foi isso, justamente, que me incentivou a ir à luta. Se outros cegos podiam andar na rua, trabalhar e viver sozinhos, ficar parado em casa não seria por causa da cegueira, mas do meu medo, aliado ao medo de minha mãe. A relação com a cegueira que predomina no âmbito familiar traduz a vivência dominante no social. É mais fácil dar uma esmola a uma pessoa cega do que acreditar em sua capacidade de trabalho. E é óbvio que qualquer pessoa neste mundo, cega ou não, se ressente em ter de esmolar para sobreviver. Isso fere a dignidade de qualquer um, pelo menos até se adaptar à situação. Apesar de haver alguns de nós que esmolam por “vocação”, a maioria o faz por total falta de oportunidade de trabalho. Se para mim, que fiquei cego depois de adulto, é difícil suportar o preconceito e a discriminação, fico imaginando como deve ser para uma criança ao perceber que causa pena aos outros e que é motivo de filantropia. Alguns cegos, de nascença ou de infância, são portadores de um equilíbrio emocional e de uma personalidade que me causam espanto. É preciso, realmente, ser forte para superar as informações que as pessoas nos dão, direta ou indiretamente, sobre nossa diferença, como se ela representasse obrigatoriamente uma inferio – 98 – ridade. A auto-estima fraqueja por vezes, mesmo que já tenhamos conquistado muitas coisas. Pelo menos, até que a pessoa supere as pressões que sofre, é muito mais fácil ser cego do que ser visto como cego. Quando duas pessoas se conhecem, ligam-se primeiro nas aparências. Aos poucos, isso vai sendo superado até se conhecer o que está por trás dela. Com o cego, normalmente, esse processo é mais demorado. É como se a cegueira ofuscasse seu portador. Para algumas pessoas ela chega até a representar uma barreira intransponível. Uma coisa também muito comum de acontecer conosco é a generalização. É como se para as pessoas todos os cegos fossem iguais. Assim, da mesma forma, os japoneses: “Tudo com a mesma cara”. Como se por trás de cada japonês não existisse um indivíduo que pensa, sente e produz de forma particular. Isso nos autorizaria a dizer que todas as pessoas que têm visão normal são iguais pelo simples fato de verem. Às vezes estou bengalando sozinho na calçada e, ao pedir ajuda para atravessar a rua, escuto coisas assim: — Eu não sabia que cegos andavam sozinhos. Eu costumo responder: — Os cegos, eu não sei, mas eu ando. Essa generalização, muitas vezes, me fez sentir mais responsável ainda em minhas atitudes, pois elas poderiam significar a simpatia ou antipatia que as pessoas teriam por todos os cegos. Outra coisa que reparei também é como o cego é “dessexualizado”. Muitas vezes, na rua, já escutei de pessoas estranhas, inclusive homens, o seguinte: “Você é o cego mais bonito que já vi”. Normalmente pergunto quantos cegos a pessoa já viu: raramente respondem que mais de um. Respondo, então, que não devo ser tão bonito assim, visto que estou sendo comparado a poucas pessoas. É muito mais fácil dizer que sou um cego bonito do que um homem bonito. A cegueira diminui muito o caráter sexual do indivíduo. Há uma história que já virou piada entre cegos amigos meus, que é a seguinte: Uma mulher cega estava com sua filha de meses esperando – 99 – que uma senhora lhe conseguisse um táxi. Passaram dois caras e comentaram um com o outro: “Veja só, coitadinha, o que foram fazer com ela”. E o outro respondeu: “Poxa, mas nem cega escapa...” Não passou nem de longe pela cabeça deles que ela poderia ser casada ou, mesmo que não fosse, que tivesse uma vida sexual normal. Da mesma forma que todos, as pessoas cegas podem ser pais, separadas, divorciadas, casadas, solteiras, podem ser hetero ou homossexuais. Já me diverti muito com Jô Soares, ao representar papel de cego em seu programa, fazendo confusão de uma coisa com a outra, na maior cara-de-pau. Inclusive com as partes do corpo. Não é difícil imaginar que o corpo seja uma das coisas mais bem conhecidas de uma pessoa cega, posto que está mais perto de suas mãos e de seu próprio ser. Mesmo uma pessoa que não seja cega, num escuro total, não confunde um joelho com um nariz, muito menos um pé com uma barriga. O corpo humano é algo óbvio, bastante conhecido, não só pela visão. Hoje, com a liberação sexual isso não é tão comum, mas um tempo atrás as relações sexuais eram realizadas normalmente no escuro ou à meia-luz, e ninguém errava o alvo. O cego, simplesmente, não precisa apagar a luz. Jô Soares consegue fazer graça do absurdo não só nesse quadro (que, aliás, não existe mais), mas em todos eles. Fiquei temeroso que as pessoas acreditassem que um cego pudesse ser tão confuso. A idéia que eu próprio fazia de pessoas cegas, antes de ser uma delas, não era bem definida. Mal conhecia dois tipos de cegos: os dos filmes hollywoodianos e os tupiniquins. Os primeiros com seus cães superamestrados, deixando-me em dúvida se o herói do filme era o cego ou o cão. Exibiam todos os artifícios de um país superdesenvolvido, em que a beleza dos atores e o sentimentalismo das estórias eram, realmente, as coisas mais importantes a transmitir. Os tupiniquins, por sua vez, vendendo bilhetes lotéricos, batendo de porta em porta, pedindo uma contribuição para a instituição de caridade que os acolhera, ou mesmo os de frente de igreja com chapéu na mão. Todos eles, legítimos representantes do subdesenvolvimento das idéias, e também provas substanciais de que a crise de empregos para cegos não começou com a crise econômica mundial ou – 100 – nacional. Simplesmente, teve início com os gregos, quando então a cegueira era fruto da maldição de algum deus sobre um ser humano castigado por um mau comportamento, ou causa de superdotação de algum sábio, poeta ou mesmo filósofo. De qualquer forma, como infradotados ou superdotados, a discriminação é antiga. E eu próprio a tinha, como a maioria das pessoas, mesmo um tempo depois de ficar cego. Enquanto enxergava, a única experiência concreta que tive com uma pessoa cega foi no metrô de Barcelona. Era um cara alto e forte. Entrou no metrô com um labrador preto, que combinava perfeitamente com sua imponência. O metrô parou: tanto por conta dos usuários, que ficaram atônitos com a presença daquele homem, quanto pelos funcionários, que não queriam permitir que o cão viajasse no vagão. Um funcionário meio franzino veio lhe dizer que ele não poderia viajar ali. Ele respondeu, em alto e bom tom, que só sairia carregado pela polícia. O funcionário olhou-o meio irritado, mas ciente de que não seria ele que iria conseguir tirar aquele passageiro com seu cachorro dali. Outros funcionários apareceram e mudaram de tática, implorando que ele saísse. O cara ficou ali, firmão. O trem acabou partindo com ele, o cachorro e tudo, e eu fiquei quinze reflexivos minutos a observá-lo. A seu lado havia uma cadeira, queria me sentar ali, mas cadê coragem? Queria perguntarlhe como era aquele negócio de ser cego, por que era cego e há quanto tempo. Se precisava que eu o ajudasse a ir a qualquer lugar, pois eu estava ali com Lila, de bobeira. Se não tinha medo de estar sozinho no metrô e também quais eram os problemas, enfim, que enfrentava. Queria fazer todas as perguntas que geralmente as pessoas fazem a si próprias, mas, na maioria das vezes, não conseguem ou não sabem expressar e que hoje, quando tenho tempo, respondo numa boa. Disse para mim mesmo que estava com medo de encarar aquele lindo, mas enorme, labrador preto sob as pernas de seu dono. Logo percebi que não era verdade. O cachorro estava ali lânguido, curtindo o carinho que o dono fazia em sua cabeça, e tive a impressão de que ele jamais atacaria, se seu dono não desse uma ordem. Compreendi que meu medo real era o de saber coisas pelas – 101 – quais um dia eu poderia vir a passar. Um impulso ansioso me fazia querer sentar ao seu lado; outro, a ficar ali com Lila. Eu estava de frente para ele, do outro lado do metrô, e ninguém entre nós. Aquilo estava ficando aflitivo; ele saiu e eu fiquei puto por não ter tido coragem. — Lila, e se eu ficasse assim? — Você é inteligente o suficiente para saber o que faria da sua vida. Nunca me esqueci dessa resposta, porque foi algo frustrante, não acreditava tanto assim em minha inteligência, ou mesmo se era caso somente de inteligência. Na verdade, eu queria que ele tivesse respondido e não ela. Essa era toda a minha experiência com cegos: os sensacionais de Hollywood, os das ruas do Rio — diante dos quais jamais parei para prestar atenção — e aquele do metrô (dias antes de ter novas e fatais hemorragias). Mas ele me deixou uma forte impressão. Era bonito, bem vestido, decidido e estava sozinho. Penso que essa primeira impressão me aliviou um pouco a barra. É por isso que, às vezes, me sinto responsável: porque sei que posso ser a primeira impressão de alguém a respeito de cegos. Naquela mesma noite do metrô, como me sentisse muito bem com Lila, lhe perguntei se alguém como aquele cara poderia ser feliz embora cego. Hoje, a minha experiência percebe o óbvio: a felicidade não tem forma nem cor. Ela pode ser provocada por algo ou alguém, mas sua existência é interna. Por isso, posso perguntar a qualquer pessoa que seja: — Você vê a felicidade? Você vê seus sentimentos? — e eu já sei a resposta... – 102 – Nas Quebradas da Vida Cortei o cabelo e fiz a barba; fiquei com a cara limpa. Recebi protestos e elogios, e Sônia me disse que isso era uma demonstração de que tanto minha barba quanto o meu cabelo eram mais públicos do que pensava. Acho que ela ficou enciumada; não tenho certeza, mas gostaria que sim. Não é dada a esse tipo de manifestação. Isso só aconteceu duas vezes, por causa de duas outras mulheres, e lhe foi difícil admitir que, embora pudesse haver vários nomes para aquilo, era ciúme mesmo. Para quem nunca percebe o ciúme da companheira, uma pitadinha que seja é delicioso. Gostei da reação do pessoal, nada como um novo visual para chamar atenção. Às vezes faz bem, mas não sou muito chegado a isso e houve época em que era a última coisa que eu queria. Sentia um certo temor de as pessoas me observarem muito e se aproximarem de mim. Os homens porque poderiam falar de mulher, e aquilo me angustiava. As mulheres porque poderiam me gerar desejos que só conseguiria realizar através de fantasias eróticas antes de dormir. Era como uma reza, não conseguia embalar no sono antes de imaginar uma boa trepada. Isso durou até um pouco depois da operação. Nada de amizades. Não sei, até hoje, como eu e Sônia conseguimos nos ligar. Eu, realmente, me tornei um cara anti-social. Não queria a aproximação das pessoas e até dos meus amigos mais chegados — que, sabia, gostavam de mim, como o Chico, a Carla e a minha própria irmã — me afastei. Com Carla tivera uma experiência marcante. Certo dia, ela me chamou até sua casa porque estava querendo levar um papo muito sério. Começou dizendo que achava que o motivo de todos os seus problemas era a repressão sexual. Tinha certeza de que iria se sentir muito melhor, mais livre, mais madura, no dia em que perdesse a – 103 – virgindade. Ao mesmo tempo em que ansiava por isso tinha medo, porque sabia que a primeira vez era algo marcante e tinha de ser com a pessoa certa. Concordei inteiramente, porque era bem o que eu havia experimentado. Na minha primeira vez, realmente, me senti muito mais maduro, mais crescido, um adulto, um homem. Foi incrível a sensação de liberdade. Tudo aquilo, que pensava ser muito complicado, foi simples e maravilhoso. É, realmente, alguma coisa de inesquecível nossa primeira vez. Me deu vontade de sair à rua e gritar para todo mundo: “Trepei, trepei! Sou macho! Sou adulto!”. Ninguém faz isso. Nem eu fiz, apesar da vontade, mas olhava para as pessoas com ar de satisfação e para as mulheres com uma cara de “cuidado comigo”. Isso passou logo, é claro, mas o mundo em minha volta tinha se transformado. Achava que a Carla merecia aquilo, ela era uma pessoa fantástica, linda. Dei a maior força até saber a pessoa que ela achava ideal. — EU?!?!?! — É você mesmo, estou certa disso. — Mas, Carla, te vejo como uma irmã! Reparei, de repente, que o tempo todo em que conversamos não havia ninguém em casa e que tocava uma música tranqüila na vitrola. — Mas a tua mãe e a tua irmã podem chegar de repente. — Ah, não chegam não. Foram pra Saquarema. — Não sei, estou inibido. Nunca imaginei isso com você. — Inibido por quê? Eu já te vi nu, e não foi só uma vez. Era verdade, nunca tivera muita preocupação de fechar a porta do quarto para trocar de roupa, ou mesmo a do banheiro para tomar banho. Ela e Anna já haviam me visto nu várias vezes. Mas eram aquelas olhadas furtivas e, na maioria das vezes, sem querer, fato que, com pessoas tantas vezes juntas, era normal acontecer. Eu mesmo já havia visto minha irmã nua. Anna também, certo dia, chegou para mim e disse que queria conhecer o pênis de um homem, que – 104 – tinha curiosidade. Se podia mostrar o meu para ela. Fiquei roxo de vergonha, mas mostrei. Ela olhou, perguntando o que era isso ou aquilo. Depois, alegou que não queria ser pega de surpresa quando acontecesse. Olhava para mim com a naturalidade de uma cientista e isso me deixou mais tranqüilo. Depois achei até que tudo havia sido muito natural. — Mas, Carla, você me ver nu é uma coisa, já eu tirar a roupa na sua frente, com intenções de fazer sexo, é outra. — Tudo bem, se você quiser eu tiro a tua roupa. — Não sei, estou me sentindo meio esquisito. Acho que pode não dar certo. — Marco, a gente vai pra cama, relaxa e vê no que dá. Achei que qualquer homem gostaria de estar no meu lugar, mas fora daquela situação. Meu orgulho masculino, porém, tinha receio de Chico e Anna, posteriormente, ficarem sabendo da minha recusa. Além do mais, quem poderia me dizer que meus sentimentos de fraternidade não se transformariam na cama? Foi muito difícil para mim mas, a duras penas, acabamos realizando o que Carla queria. Esforcei-me ao máximo para que ela gostasse e não se decepcionasse. Mas sempre pensei que havia sido uma péssima para os dois. Fiquei achando isso dos dezoito aos vinte e seis anos, até que Anna, minha irmã, me contou que eu havia sido um dos melhores caras com quem Carla tinha ficado e ainda me deu uma bronca por nunca ter contado para ela. Fiquei bobo; se fui um dos melhores, então os outros caras devem ter sido horríveis! Fiquei depois pensando em como uma relação pode ser tão boa para uma pessoa e ruim para outra. Acho que deve ter sido pelo esforço que fiz para lhe dar prazer, esquecendo até do meu. Isso aconteceu também no início de minha impotência. Tinha medo de não satisfazer as mulheres. Minha relação com Carla não se reduzia a esse parêntese sexual, de outra forma já haveríamos nos separado há muito tempo, é lógico. Mas, numa época em que o sexo me atingia em tudo, isso também deveria contar. Ela era uma mulher que me conhecia e, prova – 105 – velmente, nenhuma outra me conhecia mais. Minha cabeça estava realmente muito tumultuada e, tendo motivos conscientes ou não, me afastei de todo mundo. Desde que dei início a esse processo de isolamento, até encontrar André, a única pessoa com quem consegui me relacionar com freqüência foi Sônia. André me ajudou a transformar isso. Era um cara com uma voz bastante grave, que se distinguia das vozes das demais pessoas na faculdade. No final da aula, freqüentemente arrumava um jeito de aparecer para me levar à sala onde seria a aula seguinte. Era difícil andar sozinho por ali, alguém me pegava pelo caminho. Quando ele me acompanhava, me passava todas as informações sobre as agitações políticas da faculdade, me convidando para alguma reunião ou palestra que estivesse acontecendo. Eu sempre tinha um bom motivo para recusar. Depois, por umas três ou quatro vezes, passou a me convidar para tomar um cafezinho. Continuei a dar desculpas. Até que um dia me pegou e percebi que estávamos fazendo um caminho diferente do normal. Perguntei por que e ele me respondeu que, querendo eu ou não, iríamos tomar um cafezinho juntos. Pagamos o cafezinho, naquela cantina entupida de gente, e saímos. Encostamos num carro e pensei que ele fosse começar novamente o assunto de política. Mas não. Disse que queria simplesmente me conhecer melhor. Sabia que tinha perdido a visão há pouco e me achava muito inteligente. Perguntou como tinha sido a minha barra e o que eu sentia. Aquele já era o terceiro semestre depois que me transferira para a PUC, portanto, já havia perdido a visão há mais de um ano. Mas ele achava que era pouco tempo para quem estava por ali sozinho, com cara de que está tudo bem. Na verdade (isso eu não disse para ele), as coisas não estavam tão bem. É certo que já havia feito a operação que solucionara meu problema de impotência sexual, mas estava ainda readquirindo minha confiança. Minha relação com Sônia era o maior combustível mas, por outro lado, estava me adaptando à discriminação, ao preconceito e à sensação de inferioridade que as pessoas socialmente me impunham e que, por vezes, eu próprio sentia. Mas a admiração que ele me demonstrou era a mesma que, geralmente, as pessoas me passavam, e por mais que me sentisse colocando uma máscara de “estou feliz – 106 – e saltitante”, realmente já tinha conquistado alguma coisa. Não havia parado em casa, aprendera muita coisa de como ser cego e freqüentava a faculdade. Tudo resultado de muita luta, mas ainda não estava satisfeito com minhas conquistas, ainda tinha muita coisa pela frente a aprender. Além do mais, ficara sem amigos e, principalmente, tinha muito medo do futuro em relação ao trabalho. Dessa forma, estava tentando fazer com que Sônia e a faculdade preenchessem todos os meus espaços. Também não contei isso para ele. Disse-lhe que o que tinha conquistado fazia parte da minha estrutura, pois jamais me conformaria em ficar em casa parado, caso contrário, não me chamaria Marco, ou seja, não seria eu próprio. Além do mais, a terapia estava me dando um grande apoio. Conversamos muito tempo sobre psicologia e acho que consegui mudar sua idéia a respeito. Lembro-me de que comparei a psicanálise a uma nave espacial que explorava um planeta desconhecido chamado EU. Ninguém conseguia observar esse planeta imparcialmente, portanto, outra observação feita por uma pessoa técnica e experimentada nos ajudaria a ver outros ângulos, a princípio obscuros à nossa percepção. A partir dessa simbologia nos aprofundamos no assunto. Daí em diante, nossa amizade foi crescendo de forma muito bacana. Passei a andar com André mais freqüentemente e a ser menos bicho-do-mato. Cada vez mais a gente se encontrava. Nunca me esqueço de um dia em que ele passou lá em casa para me ajudar a comprar uma escrivaninha de madeira crua, que eu havia tateado em seu quarto e achado incrível. Fomos até a loja onde ele havia comprado e depois resolvemos dar uma volta. Paramos num trailer de praia que vendia panquecas. Acabei pedindo a mais problemática possível: panqueca recheada com molho de estrogonofe. O molho vazava pelos cantos da massa, me borrando todo. Enquanto tentava comer aquele desastre em forma de panqueca, André pegou um guardanapo e foi me limpando: na calça, na blusa e até no rosto. Tinha molho para tudo quanto era lado. Quando ficou sacramentado que, realmente, estava sem nenhum jeito para comer aquilo, ele resolveu me ajudar. Só que ele também não tinha jeito e se borrava todo. Parecíamos duas crianças se divertindo em se lambuzar, ríamos às gargalhadas. De repente, uma menina que estava por ali falou com o cara do trailer: – 107 – — Essas bichas não disfarçam mais nada. Acho que ela estava meio indignada com a nossa palhaçada. Resolvemos curtir com a cara da menina e passamos abraçados em frente ao seu carro. Paramos ali e André me deu um beijo no rosto. A menina ligou o carro e saiu raivosamente. Pensei, depois, que ela já devia ter perdido o namorado por causa de seu melhor amigo. André foi, para mim, alguém muito importante nesse início de reintegração emocional com pessoas amigas. Ele me deu sede de querer conhecer mais e mais pessoas. Sinto muito sua falta. Casou e foi para Paris fazer pós-graduação, mas um dia volta, como todo mundo, espero. Dois anos de PUC e já estava saturado. Já havia cursado dois anos na Federal e, no pedido de transferência, descartaram metade do meu currículo. Já estava de saco torrado de repetir matérias e ainda faltava um ano e meio para o término do curso. Por outro lado, o mercado de trabalho para professores de história era péssimo; cego, então, mais ainda. Além disso, não tinha o grande ideal de ser um historiador, queria simplesmente fazer um curso superior que tivesse a ver com Ciências Humanas. Já tinha até tentado passar para Psicologia, mas não aceitaram minha transferência. Sinto nunca ter canalizado de forma definida minhas aptidões profissionais. Quando era pequeno, queria ser engenheiro mecânico ou desenhista industrial, para projetar o carro mais aerodinâmico e moderno do mundo, justamente o contrário do carro do meu pai. Depois disso, quis ser arquiteto e levantei e derrubei muitas paredes da casa de minha mãe, enquanto morava lá, com muita imaginação; aliás, só na imaginação. Já na adolescência comecei a achar que qualquer coisa técnica fugiria à minha personalidade, mas, mesmo assim, ainda quis ser médico. Eu trataria da vida, existe algo mais profundo? Acabei parando em História. Procurei o Benjamim Constant novamente em 1981, visto que havia me afastado um pouco de lá. Queria saber o que um cego poderia fazer além de ser professor. Estavam em voga dois cursos profissionais: revelação de raios X em câmera escura e programação de computadores. Mas existia, também, o curso de massagem (fisio – 108 – terapia). Além disso, sabia-se de cegos que eram desde operários de fábricas até advogados, exercendo plenamente a profissão. Passandose ainda, tradicionalmente, pelos músicos. Computador? Esta era uma palavra tão estranha quanto robô para mim. Até então, tinha preconceito em relação às pessoas que trabalhavam na área técnica. Pareciam-me sempre frias, calculistas, racionais. Enfim: “técnicas”. Como poderia equilibrar minha pessoa com a técnica? Eu estava normalmente muito mais no ar do que na terra. Como conseguiria trabalhar com uma máquina? E, além de tudo, não era qualquer máquina, mas um computador. Mais ainda: era totalmente contraditório para um cara que se sentia marginalizado como eu (não no sentido do banditismo, mas à margem dos padrões) trabalhar com algo que era o próprio cerne do sistema. Somado a isso, para fazer o curso, era preciso saber escrever e ler o Braille correntemente. Tinha muito pouca prática no Braille, visto que, como já disse, só fazia etiquetar discos, fitas, escrever alguns endereços e poderia demorar o tempo que fosse para isso. Como aprender a escrever e ler rapidamente até início de março, se estávamos em fevereiro? Mas havia, também, fatores favoráveis para que eu fizesse o curso. Vivia da pensão deixada por meu pai pelo fato de eu ser “inválido”. Pelo menos, legalmente inválido. Essa pensão já estava sendo corroída pela inflação e eu começando a pedir ajuda à minha mãe, que também era pensionista. O dinheiro estava curto, bem curto. Não só pelo que fui acostumado, mas também para as coisas básicas: condução, cigarro, etc. Eu era bolsista na PUC, mas ficava muito caro freqüentar a faculdade. Todos os livros precisavam ser gravados em fita cassete. Agora, já não gravava livros inteiros, mas textos ou capítulos. Parei para pensar: deveria fazer uma coisa que não estava seguro se queria, por parecer a melhor opção? Informei-me sobre salários com programadores cegos e, realmente, era um atrativo. Por outro lado, apesar de não serem as matérias de minha preferência, sempre tinha sido bom em ciências exatas. Comecei a considerar seriamente o assunto, mesmo não tendo muito tempo para isso, porque, se decidisse fazer o curso, precisaria ir correndo aprender melhor o Braille. – 109 – A verdade é que não havia mais a tranqüilidade de ter um pai que me sustentasse. Nunca havia passado tanto aperto de grana. Isso, sim, foi fundamental em minha decisão. Inscrevi-me no curso e me arranquei para casa, a fim de que as pessoas me ditassem textos de jornal ou coisas no gênero, para treinar o Braille. Todo dia era a mesma rotina: ler, escrever, ler, escrever, ler, escrever. Comecei o curso já acompanhando relativamente bem a turma. As duas turmas iniciais foram diminuindo com o tempo, a partir do momento em que se realizavam provas ao final de cada matéria. Aos poucos fui notando que entendia bem o assunto e que, no fundo, estava gostando daquilo. Tranquei matrícula na faculdade e resolvi me dedicar exclusivamente ao curso. Aliás, mais que isso, procurei programadores profissionais que me dessem programas das empresas em que trabalhavam. Comecei assim a apurar minha lógica e técnica através das críticas e dos conselhos dos colegas profissionais. Dessa forma, me adiantei em relação ao andamento do curso. Estava satisfeito, mas não só com isso. O contato diário com pessoas cegas era fantástico. Aprendi muita coisa, troquei muita experiência e conheci pessoas maravilhosas. Além daquelas indesejáveis, como há em qualquer lugar. Foi assinado um convênio com o PRODERJ, que ofereceria estágio aos dois melhores do curso. Sabia que tinha condições de ser um deles. Também a concorrência não era muita, visto que começara com pouco mais de cinqüenta alunos e, ao final, restavam por volta de vinte. Mesmo assim, eu achava o número bastante alto, já que conhecia o potencial dos melhores, uns cinco ou seis que se destacavam muito dos demais. Não achava certo o Instituto dar o diploma para pessoas que não tivessem capacidade de ser bons profissionais. Isso seria um cartão de visitas negativo nesse mercado de trabalho para cegos, posto que, em geral, quando um cego faz uma besteira numa empresa, culpam a cegueira e não o profissional. Desde que a cegueira pertence a todos os cegos, começa a ficar difícil a entrada de outros naquela empresa, fechando-se o mercado. Um pouco antes de terminar o curso, porém, André me disse que o pai tinha conhecimentos na área e que poderia me arrumar – 110 – colocação em determinada empresa. Pedi para ele dar um tempo pois preferia entrar no convênio com o PRODERJ: aquilo seria através de minha capacidade e não de pistolão. Realmente, garanti a vaga do convênio e pedi a André que não perdesse a oportunidade de arrumar aquele estágio para outro cego. Mas ele acabou me dizendo que não era possível, que a vaga era minha, que seu pai me conhecia e confiava em mim. Fiquei num beco sem saída. Se fosse para o PRODERJ, ocuparia a vaga de um outro colega, sabendo que aquilo era muito difícil de conseguir. Por outro lado, não me agradava nada entrar pela janela. Ser um “peixinho”. Se bem que só muito tempo depois fui perceber o que era ser um “peixinho” dentro de uma empresa. Dificilmente ele perde o estigma, mesmo que se mostre um bom profissional. Digo isso não só pela minha experiência, como pela de outros colegas também. Por outro lado, tenho a impressão de que, se fossem colocar todos os empistolados no Brasil dentro do mesmo aquário, Itaipu seria pouco para guardar tanta gente. Em relação ao meu trabalho, incluindo-se aí o fato de ser cego e “peixinho”, vivi diversas fases dentro da empresa. Antes de mais nada, passei dois anos e oito meses estagiando. O pessoal do trabalho já brincava comigo dizendo que eu era “estagiário consultor”, “sênior” ou coisa do gênero. Nunca soube ao certo que tipo de discriminação estava sofrendo, mas alguma realmente havia, já que vários colegas foram promovidos durante esse período, inclusive estagiários com menos experiência do que eu. Isso me virava a cabeça, me tirava do sério. Algumas vezes cheguei mesmo a ser antiético ao apontar colegas que considerava menos merecedores de promoção. Realmente, estava com a cabeça quente, pois é difícil trabalhar dentro de uma empresa onde algumas pessoas-chave não reconhecem nossa capacidade e serviço. Eram visíveis os meus esforços. A coisa começou a mudar quando Adélia assumiu a chefia. Ela foi a nortista mais maravilhosamente maluca que conheci: se expôs, lutou e usou toda a sua credibilidade para conseguir minha promoção. Mas, antes mesmo desta acontecer, já estava me realizando, pelo fato de alguém acreditar no meu serviço e mostrá-lo a quem deveria. A coisa demorou, mas aconteceu. Depois disso passei a trabalhar com mais satisfação e, por sorte, as novas chefias ime – 111 – diatas que se sucederam à de Adélia foram de colegas que conheciam minimamente minha capacidade profissional. Fui me sentindo mais à vontade. Tinha conseguido chegar a um estágio de minha batalha: o trabalho... Seria difícil acreditar poucos anos antes que ficaria cego e, além do mais, trabalharia em processamento de dados. Era uma virada geral entre mil sensações e sentimentos, vitórias e derrotas. Ainda no período de estágio conheci Ênio, um cara dois anos mais velho do que eu e que acabara de perder a visão também por diabetes. Tínhamos o mesmo professor de violão e este me deu seu telefone para lhe dar uma força. Um processo parecido aconteceu com Fernando, que conheci poucos meses depois, mas foi com Ênio que fiz grande amizade: um típico garoto de Ipanema, de classe média, que sempre tivera tudo nas mãos. A identificação era óbvia, pelo menos até antes de nos aproximarmos mais. Nesse estereótipo generalizante, a única diferença é que eu era do Leblon. Entrei em contato com ele e fui muito bem recebido. Incentivei- o a aprender o Braille e a ir ao Benjamim Constant a fim de ter aulas de locomoção. Comecei a lhe mostrar que um cego poderia ser muito mais autônomo do que imaginava: “Cego só não pilota avião porque ainda não criamos os meios para isso”. Apresentei-lhe colegas cegos para que a convivência, em si, lhe ensinasse. Foi assim que ele acabou conhecendo Leda. Ela era, e ainda é, “minha ídala” em termos de cegos que conseguiram autonomia. Sempre me mirava nela: analista de sistemas do CNPq na área de suporte, estudante de pós-graduação em Informática no Fundão (UFRJ), vanguardista como cega profissional em Processamento de Dados. Era o máximo para mim. Falava de Leda para Ênio com toda a admiração que sentia. Foi com ela que entrei pela primeira vez num restaurante sem a companhia de uma pessoa que tivesse visão. Chegamos à porta do restaurante com nossa bengala e o maître veio nos atender. Ele nos encaminhou à mesa, dispensamos o serviço de entrada e Leda pediulhe que lesse o cardápio. Fizemos os pedidos. Lembro-me até hoje da sensação de liberdade que senti. Para ela, aquilo era algo normal, mas para mim uma grande novidade; mais ainda para as pessoas do restaurante, creio. – 112 – Sempre que entro com alguém num lugar assim, percebo que o tilintar de talheres e copos diminui, ou mesmo pára, e aos poucos volta ao normal. Nessas ocasiões fico precavido com a bengala à frente, para evitar maiores danos, pois um esbarrão é quase certo. A platéia do restaurante, depois de olhar para mim, vira-se para quem está me acompanhando e observa-nos atentamente. Aí, a pessoa se constrange e, encabulada, se apressa para chegar à mesa: nessa eu “danço”. Aliás, acostumei a andar com a bengala mesmo sendo guiado, pois se alguém esbarra em mim pede desculpas; sem ela, sou xingado. A bengala é um símbolo significativo da cegueira, em especial para as pessoas que não têm aparência de cegas. Quando isso acontece, colocar também óculos escuros completa a fantasia. Naquela noite os talheres silenciaram-se por um pouquinho mais de tempo, pois a primeira e a segunda pessoa estavam na mesma condição. Foi realmente incrível! Leda e Ênio se aproximaram bastante e eu e Sônia intuímos de cara o que iria acontecer. Ela passou a ser sua musa, só falava nela. Curtíamos muito com a cara um do outro: ele, por causa de meu liberalismo; e eu, por causa do seu machismo convicto e radical. Certa vez, com a intenção de incentivá-lo a se empenhar mais na conquista de sua autonomia, provoquei-o: — Você não vai casar e deixar que a mulher te sustente, né, machão? Ele ficava puto com esse tipo de coisa, mas, puto ou não, três meses depois, em 1983, casou-se com Leda. Nunca vi algo tão rápido. Foi somente o tempo de se operar e solucionar sua impotência sexual. Fui padrinho de casamento de Leda, mas um padrinho bastante assustado. Ela juntara uma grana para realizar aquilo que realmente desejava: fazer um curso de pós-graduação em psicanálise reichiana, em São Paulo. Leda já tinha intimidade com a Via Dutra porque optara por um terapeuta que atendia lá... Apesar de sempre ter trabalhado em processamento de dados e ser tremendamente competente, eu sabia que ela poderia se dar bem em qualquer coisa de que gostasse e a que se dedicasse. – 113 – Alugaram um apartamento em São Paulo e foram morar lá, logo após o casamento. Mas Ênio não estava preparado para aquilo, pelo menos eu achava que não havia tido tempo. Ou eu era lento demais, ou alguma coisa estava errada. Ainda não sabia bengalar bem sozinho, em casa faziam tudo para ele e não se conscientizara do mal que a diabetes ainda poderia lhe fazer, se não a tratasse severamente. Foi em São Paulo, penso eu, que ele começou a perceber a dimensão de seus limites. Teve de começar a se virar sozinho quando Leda ia para o curso. Aí é que deve ter principiado a aterrissagem em sua inexperiência. Um pouco mais de um mês depois, Leda me telefonou dizendo que estavam no Rio e que ele se encontrava hospitalizado. Foi ficando muito tempo de cama, e a família, não sei por que, nunca dizia exatamente como ele se encontrava. O pouco que sabia era através de Leda, que passou a reviver uma verdadeira maratona Rio– São Paulo a fim de poder acompanhar o marido e o curso. Para a família dele, além do mais, ela era a culpada de tudo, como se Leda tivesse de tomar conta dele e não ele de si mesmo. A coisa foi ficando feia. Ele passou a não mais atender aos telefonemas e eu recebia sempre, como resposta, que estava dormindo ou que estava cansado demais para conversar. O pior de tudo é que, na maioria das vezes, era verdade. Aos poucos Ênio ou a família, não sei, foram cortando as visitas, e ele foi se entregando cada vez mais ao cansaço de uma diabetes descontrolada e de uma depressão profunda. A experiência paulista foi muito dura: quis abraçar o mundo de uma só vez e não conseguiu. A última vez em que conversamos foi dolorosa: sua voz era baixa, mole, sem vida, como de quem estivesse só esperando o tempo passar... Começou a fazer perguntas sobre a diabetes e a cegueira, coisas que já havíamos conversado há muito tempo e das quais já deveria estar sabendo. Saí de lá impressionado e me preparando interiormente para a sua morte. Naquele dia tentei convencê-lo, numa última esperança, a fazer psicoterapia. Procurei, ainda, dar-lhe uma injeção de ânimo, mas foi ele quem conseguiu furar todos os meus pneus. Eu, Sônia e Leda fomos conversar no Gordon e soube que a operação havia dado certo para ele; um motivo a menos para seu desânimo. Não quis demonstrar para Leda o quanto ficara – 114 – descrente da recuperação de Ênio, mas acho que o clima ficou no ar. Quando me deram a notícia de sua morte, pouco tempo depois, retruquei que já sabia que isso iria acontecer. Falei com Leda com igual consciência com que havia reagido à notícia. Ela, realmente, passara por uma barra. Em menos de um ano havia noivado, casado e ficado viúva. Procurei confortá-la, mas ela parecia estar mais cônscia de seus sentimentos que eu dos meus. Não fui ao velório nem à missa de 7o dia. Achei estranho, porém, seu corpo ter sido velado com o caixão fechado, aliás, como ele pedira. As pessoas que me contaram não souberam me dizer por que, mas certamente ele tivera tempo de pensar na morte a ponto de fazer tal pedido. Realmente, não consegui entender sua preocupação. Uma coisa é certa: ele quis a morte e teve a complacência silenciosa e, possivelmente, inconsciente da família. Aparentemente, aquilo não me abalara, mas a diabetes ficou durante algum tempo descontrolada e comecei a ter pesadelos à noite. Meu terapeuta, Sônia e Leda é que foram me mostrando, aos poucos, o quanto estava me sentindo atingido. Fernando foi outra história. Tinha os mesmos problemas que eu e Ênio, mas aparentemente estava numa boa. Falava comigo sobre trabalho, pois ele já era analista de sistemas antes de ficar cego. Batalhava para procurar emprego, mas, além de toda a crise que o país passava, e ainda passa, no mercado de trabalho, ele ainda enfrentava o que todo cego enfrenta: a discriminação. Fernando casou-se com uma mulher também cega, que trabalhava como advogada na administração de uma entidade de cegos. Acabou indo trabalhar lá também. Isso me lembra uma conferência a que assisti na Câmara dos Vereadores, promovida pela Associação Carioca dos Diabéticos. O tema era “O Mercado de Trabalho” e tratava da discriminação sofrida pelas pessoas diabéticas. Era incrível o índice de discriminação. Fiquei só pensando quando esse diabético se tornasse cego. Pode crer que é barra. Certa vez, eu mesmo alterei o exame de urina, levando a da minha irmã para o laboratório em vez da minha. Como o exame de sangue tinha dado OK, não restaria nenhum vestígio. Mas nem sempre essas coisas são possíveis... – 115 – Fernando parecia animado e sua voz era de quem estava enfrentando bem as dificuldades. Mas havia algo com que eu não concordava: ele sempre me dizer que não tinha problema algum com a ereção. Pensava, no entanto, que se tinha se casado e se dava bem com a mulher, realmente poderia ser uma exceção à regra. Mas não era. Depois que soube de sua morte levei um papo com sua ex-mulher e ela me disse que conversara muito a respeito com ele e tentara convencê-lo a fazer a operação que eu havia indicado, mas ele não quis. O sexo realmente não é tudo na vida, mas quando não vai bem, aí sim, passa a ser quase tudo. Dizem que a diabetes, por si só, não mata ninguém,1 mas pode ser um instrumento perfeito para quem queira fazê-lo. Eu tinha consciência de que seguia um caminho bem diferente do que eles tomaram, mas aquelas duas mortes, uma perto da outra, me afetaram. Comecei a dar um tempo nas consultas que fazia trimestralmente com a Dra. Ing, pois fiquei com arrego de saber como ia minha diabetes. Ela podia estar me preparando alguma e aquilo era ameaçador. Com o tempo reagi novamente, mas não pretendia saber mais de cegos diabéticos, pois não queria sequer imaginar passar por outra experiência desse gênero. Cheguei a conhecer mais duas pessoas nessa situação e não dei trela à amizade. Ainda num último papo com Ênio, tentei, como de costume, apelar para seu machismo, lhe dizendo algo que, na realidade, não tinha nada a ver com masculinidade e se encaixa em pessoas de qualquer gênero. Eu lhe disse, não me lembro com quais palavras, que para ser forte não era preciso mostrar para todo mundo que se pode sair na porrada com qualquer um, mas sim mostrar a si mesmo que se pode sair na porrada com as circunstâncias da vida e, aos poucos, entrar em um acordo com elas. Na última visita que Leda me fez, escreveu algo no meu gesso que, tenho certeza, ela gostaria de ter escrito para Ênio e Fernando: “Nas quebradas da vida, um Marco de determinação, entusiasmo e criatividade”. A vida não é fácil para mim, nem para ninguém, ou é? 1. Hoje, a tese de que a diabetes não é uma doença que mata já é bastante questionada. Veremos isso depois. – 116 – Coisas de Criança Viver a recordação das emoções passadas é o mesmo que recriálas com a aparência do passado e a força do agora. É incrível a viagem que faço, a dimensão do que vivo, para escrever uma ou duas frases quase sempre sem o revestimento da intensidade de tudo o que sinto. Percebo que as palavras tornam-se idéias já limitadas da emoção. Tudo se resume, então, em se preencher com palavras o indescritível. Saio disso quase sempre frustrado. Às vezes, uma única palavra resume toda uma vivência e acabo fazendo dela um parágrafo ou um capítulo para que se torne inteligível. Um certo sujeito que andou por aí escreveu: “Penso, logo existo”. Realmente, para se ter consciência de sua própria existência basta pensar, mas acredito que para se ter consciência da vida é preciso amar. Sendo assim, posso dizer: “Amo, logo vivo”. Hoje, sei que existo porque estou vivo, logo amo... Todas essas elucubrações são resultado dos sentimentos vividos e revividos nas últimas páginas. Foram momentos de vida e são recordações muito fortes para mim. Já tive comas diabéticas que, realmente, me ameaçaram muito. Uma vez cheguei a acordar completamente desmemoriado; não tinha passado, não tinha história, nem mesmo do meu nome me lembrava. Isso sim, por um longo momento de hipoglicemia severa, foi existir sem viver, pois não tinha nada a que me apegar, amar, pois nada reconhecia, era simplesmente um corpo num espaço e tempo desconhecidos. Foi um grande susto que, com outros, me obrigou a trabalhar vinte e quatro horas por dia, com a cabeça e o organismo, para me relacionar bem com minha doença. Ela me acompanha há vinte e cinco anos e, portanto, faz parte quase integral de minha história... – 117 – Meu pai sempre procurou me convencer de que eu era um menino comum. Penso que ele não deveria ter tentado camuflar minhas condições, mas sim me apoiar como doente. É óbvio que eu não sentia a normalidade que ele pregava, mas compreendo que é muito difícil saber o que uma criança está passando interiormente. O fato é que não me sentia igual aos outros, mesmo fazendo o possível para me integrar, ou seja, para receber dos outros a aceitação que eu não tinha de mim mesmo. Essa tentativa de integração fez com que o sentimento de ser diferente não correspondesse a um isolamento. Pelo contrário, cheguei a freqüentar, em determinadas épocas, vários tipos de grupos: o grupo dos politizados e o dos alienados; o dos “caretas” e o dos “doidões”; o da zona sul e o da zona norte; o de homo e o de heterossexuais; o de religiosos e o de ateus. Eu era um camaleão me transformando em cada ambiente, sem me sentir parte de nenhum deles. Me identificava com algumas pessoas, jamais com grupos; e a coisa assim ficava difícil. A minha não-aceitação da diabetes era bastante perceptível desde criança. Algumas vezes, cheguei a percorrer os apartamentos de vários prédios, arrecadando donativos para flagelados de alguma enchente. Só que os flagelados não deviam ficar tão satisfeitos quanto o dono da padaria: gastava tudo em doces. Recordo-me, também, das festas de aniversário infantis a que eu ia. A princípio, se me oferecessem doces ou Coca-Cola, dizia que não. Se insistissem, dizia que não podia porque era diabético, e aí logo recebia elogios por ser um menino responsável. Aquilo me deixava orgulhoso... Havia, no entanto, as festinhas em que as pessoas eram avisadas previamente do meu problema, mas eu logo sacava o lance. Alguém sempre vinha com uma bandeja de Coca-Cola e oferecia para o coleguinha da frente, o da direita e o da esquerda, e passava direto por mim. Tinha, então, certeza de que já haviam espalhado a notícia... Pegava escondido o máximo possível de Coca-Cola e doces e ia comer trancado no banheiro, de frente para o espelho, fazendo as mais variadas caretas, como se meus pais estivessem ali para vêlas. Ficava com muita raiva, principalmente de meu pai, que era – 118 – quem, normalmente, avisava das minhas proibições nas festinhas. Acho que sou Flamengo por causa de meu pai; ele era Fluminense... A raiva, porém, era conjugada com amor. Sua proteção era algo que eu detestava, mas que também me dizia que eu era importante para ele. Eu tinha dificuldades de perceber os sentimentos, tanto os dele quanto os de minha mãe. Uma única vez, que me lembre, na minha infância, participei de uma manifestação clara dos sentimentos do meu pai em relação a mim. Eu estava com um colega que me ofereceu jujubas. Pensei que ninguém estivesse nos observando e aceitei. Papai estava olhando para mim, havia assistido a toda a cena. Senti vontade de colocar rapidamente todas as jujubas em minha boca, mas antes disso olhei para ele. Sua expressão estava tão triste que me paralisou. Abri a mão, devagarinho, deixando que as jujubas caíssem uma a uma no chão. Ele se aproximou de mim e me abraçou carinhosamente, me levantou em seus braços e apoiou minha cabeça em seu ombro, enquanto me afagava. Chorei por tê-lo visto tão triste por minha causa, mas ao mesmo tempo estava feliz porque, daquela forma, eu estava recebendo simplesmente tudo o que queria: um abraço, um carinho, um amigo. Eu não queria proteção, queria aquilo. Jamais esqueci as lágrimas que chorei naquele dia, muito menos o silêncio de meu pai. A idéia que passei a ter, durante todo o resto da infância e adolescência, do que era ser um grande amigo, foi ter um ombro disponível para que o outro pudesse chorar. Não chorei, porém, em outro ombro, embora tenha tido grandes amigos. Mas o símbolo, o ritual sagrado do chorar, ficou marcado. Apesar desses sentimentos e lembranças confusas, minha infância me traz recordações maravilhosas e gratificantes. Morávamos num conjunto de prédios no Jardim de Alá, onde havia pedreira, campo de futebol, muitos amigos e espaço para brincar. Dudu, Serginho, Wellington (Bundão), Marco Antonio do 7o (eu era do 9o andar), Pedro, Maluco, Maluquete e Malucão, Guilherme e uma cambada de outros moleques que se dividiam em grupos, mas acabavam por se misturar. Foi com Dudu (Eduardo Rodarte Campos) que passei a usar Brim no cabelo. Ele era meu melhor amigo e, quando o vi passando aquele creme branco que saía daquele tubo que mais – 119 – parecia pasta de dentes, achei supermoderno. Deixei de usar Gumex. Éramos tão pequenos para usar essas coisas... Simplesmente imitávamos os adultos. Eu tinha medo de brigar com Wellington; com Serginho, porém, me garantia e, tendo Wellington medo do Serginho, eu mandava este bater naquele, caso o primeiro me ameaçasse. A coisa era gozada. Marco com medo de Wellington, Wellington com medo de Serginho e Serginho com medo de Marco. Nesse equilíbrio triangular de forças, acabei sendo grande amigo dos dois e sempre gostei muito deles. Minha primeira namorada foi Maria Luíza. Brincávamos com a turma de esconde-esconde e íamos sempre para o mesmo esconderijo, é claro. Certo dia, não resisti, peguei em sua mão atrás da moita onde nos escondemos e disse que gostava dela. Ela me respondeu o que eu já sabia: que gostava de mim. Todo mundo já sacava o nosso clima: um sempre estava do lado do outro, defendendo-o, mesmo que não tivesse razão, sempre cedendo lugar a troco de nada, perguntando por que o outro não tinha vindo brincar... Naquele mesmo dia eu lhe dei um abraço desajeitado e um ligeiro beijo: — Não pode, dá sapinho. — Sapinho? O que é sapinho? Já que havia gostado do meu primeiro beijo na boca, precisava me informar com urgência o que era aquela coisa de sapinho. Quem sabe, ela mesma, sendo dois anos mais velha do que eu, conhecesse tudo a respeito? — O sapinho aparece mesmo quando a gente é namorado? — perguntei. — Principalmente... — ela respondeu. — Principalmente? — Mamãe me disse que aparecem umas bolinhas na boca. — E já apareceram? — meus olhos em seus lábios. — Não estou sentindo nada... — Nem eu... Então, vamos aproveitar? – 120 – — Espera aí, Marquinho, sei lá se dá depois! Realmente, eu precisava entender melhor de sapinhos. Quando acabamos de brincar com a turma, fui levá-la em casa. Ela morava no mesmo prédio que eu, só que alguns andares acima. Serginho estava com a gente no elevador. Ela desligou o elevador e a luz, me abraçou e me encheu de beijinhos. Foi ótimo; nunca mais soube da estória dos sapinhos... Foi um período inesquecível. Guardei durante muito tempo um barcão verde que ela me deu de aniversário. Brincava muito com ele num lago que existe no meio do Jardim de Alá e, é claro, também na banheira. Tudo bem, até que sua mãe descobriu nosso namoro. Mas isso não foi à toa. Serginho, enciumado, contou para Eduardo, irmão dela, que por sua vez contou para a mãe, uma baiana forte e superarretada. Quase me engoliu. Foi um escândalo! Ela estava verdadeiramente a fim de me fazer de paçoca na frente de todo mundo, acho que para dar o exemplo, estilo Tiradentes. Meu pai me defendeu dizendo que aquilo eram coisas de criança, mas tenho a impressão de que ela pensava: “Criança que faz sapinho não é mais criança”... Eu sempre fui alto para a minha idade, mas só tinha 9 anos! Nunca me esqueci daquela lourinha, de olhos castanhos e de mãe enfezada, e também de Serginho, pois nunca havia me dado conta, apesar de brincarmos sempre juntos, que ele curtia Maria Luíza. Parece que a turma hoje já começa a namorar na maternidade e que os pais acham tudo muito engraçadinho... Mas, antes, a coisa não era assim. Na turma éramos os únicos que namorávamos com todo mundo sabendo, com beijinho e tudo. Eu me sentia o pioneiro dos beijinhos na boca, só não sei se os outros da turma já haviam feito aquilo escondido. Marco Antonio, do 9o, que era eu, e Maria Luíza eram, realmente, uma duplinha de pirralhos, mas nunca me esqueço de como meu coração batia forte, como eu me agitava quando ela chegava perto. Dois anos mais tarde, mudei de lá. Outros amigos, outras namoradas, outras experiências. Tudo isso somente uns cinco quarteirões adiante, na direção do baixo Leblon. A essa altura, eu tinha dez anos. Mas essa distância foi o suficiente para me desligar bastante do pessoal. – 121 – Logo que entrei para a PUC, já cego, uma menina se aproximou de mim e disse: — Sou Maria Luíza, lá do “Jornalistas”, lembra? “Jornalistas” era como chamávamos o conjunto de prédios em que morávamos. — Claro, nunca se esquece a primeira namorada! Não sei se a constrangi com reação tão espontânea, se minha cegueira a inibiu ou se ela mudou muito com o tempo. Sei que me disse, rapidamente, que estava fazendo o curso de Direito, e mais alguma coisa de que não me lembro, e saiu apressada. Fiquei pensando, durante alguns dias, como seria bom sentarmos para conversar tranqüilamente sobre a vida, mas ela não mais apareceu. Aliás, esse meu desejo não se restringia a ela. Vira-e-mexe fico sabendo da vida de um ou de outro. No trabalho, por coincidência, entrou um novo programador e acabamos por descobrir quem éramos. “Brucutu”, esse era seu apelido, não era da minha turma, pois é cinco anos mais velho. Era da turma que dava “cascudo” na gente quando não queríamos sair do campo de futebol. De quando em quando, me conta alguma coisa de lá; umas boas, outras ruins, como sempre acontece. Seu nome é Gilberto e é gente muito fina. Gostaria de sentir a mesma coisa em relação ao pessoal da minha turminha ou mesmo saber o que restou da infância. Mas as notícias também correm avulsas, vindas de uma fonte ou outra: Dudu, de quem eu sinto mais saudades, “tomou Doril e sumiu”. Estivemos juntos rapidamente, por duas vezes, em 1977 e 1979, e gostei muito; me pareceu um cara legal. Marco Antonio, do 7o, foi para a Inglaterra e parece que já está lá há anos. Encontreime com ele também, rapidamente, em 1977, na Aliança Francesa, onde fazíamos um curso, quase no mesmo horário. Zuíque, irmão de Dudu, que eu também curtia muito, morreu num desastre de moto, chocante! Do Wellington nada sei. Carlinhos foi outro que encontrei na época do vestibular; estava prestes a ser pai solteiro; achei o maior barato, mas ele estava meio preocupado... Cristiano, o “Bolinha”, trabalhou na mesma empresa que eu pouco tempo antes da minha chegada. Acho que até hoje ele deve ganhar muita – 122 – bola de gude dos outros. Ele, certa vez, me quebrou a cabeça por causa delas; fui parar no pronto-socorro. Anna, minha irmã, outro dia viu Tatá na rua; era a namorada do Marco Antonio do 7o, como sempre gordinha e cheia de sardas. Alípio, irmão de Pedro, andou uns tempos apaixonado por uma mulher muito mais velha; sei como são essas coisas... Um dia uma menina me cercou na rua e me disse que era namorada do Pedro, que apesar de não me conhecer me descobrira só pela descrição que ele havia feito de mim. Ajudou-me a entrar num ônibus e... nunca mais. Outro dia, encontrei o Marquinho, o do bloco “C”; não era tão ligado nele, mas jogamos muita bola juntos. Eu lhe perguntei se continuava agitado do jeito que era e ele disse que não, que era um bancário tranqüilo, que estava casado e com um filho, morando no bloco “A”. Era síndico por lá. Fiquei pensando que era o primeiro síndico tranqüilo de que tinha conhecimento. Dorinha já deve ter cansado dos concursos de miss, pois Soninha Flores, irmã de Serginho, deve ter ganhado todos; ela era uma morena muito bonita... Porra, devo estar passando dos limites, mas é que essa viagem é fantástica para mim e sinto muitas saudades... É estranho perceber que, embora já tenham se passado 18 anos, estão tão bem marcados dentro de mim. Pensando nessa turma, sinto que tive uma infância feliz. Apesar da contínua rebeldia com minha diabetes e da incrível necessidade de me sentir autônomo em relação à minha família, por terem me perturbado durante a adolescência, trago dela, também, boas impressões. A primeira imagem que me vem à lembrança é, justamente, da primeira viagem que resolvi fazer sozinho, ou melhor, sem nenhum responsável por perto. Eu, Anna, Carla, Chico, Márcia Maria, filha de uma grande amiga de minha mãe, e Zé Henrique, seu irmão, resolvemos ir a São Lourenço, Minas. Nossos pais não queriam e brecaram a viagem, não liberando dinheiro. Mas fomos assim mesmo. O plano era o seguinte: o pouco que tínhamos só dava para as passagens e para uma diária numa pensão barata que conhecíamos, onde as refeições estavam incluídas. Pegaríamos, então, o ônibus na – 123 – noite de sexta-feira, iríamos para a pensão no sábado e a diária acabaria no domingo pela manhã. Desocuparíamos os quartos e pegaríamos o ônibus de volta para o Rio no domingo à noite. Pronto! Um final de semana perfeito, se não fossem alguns imprevistos. Fazia parte, também, do mirabolante plano furarmos um pneu do ônibus de sexta-feira, para que ele parasse no meio da serra da Mantiqueira e pudéssemos descansar bastante enquanto o motorista trocasse o pneu. Caso contrário, chegaríamos lá por volta de meia-noite, cedo demais e sem ter para onde ir. Na parada para o café, Chico e Carla ficaram de “olheiros” enquanto eu colocava dois grandes pregos no pneu externo traseiro do ônibus. Os pregos já estavam com a ponta enfiada na borracha do pneu, só faltando dar a ré para entrar tudo. Para a frente, o ônibus não iria, pois senão entraria churrascaria adentro. Ficamos esperando, durante toda a serra, que o motorista parasse, mas... que nada. Preocupei-me nas curvas, pois se o ônibus tinha quatro pneus traseiros não era à toa; deveria fazer falta quando um estivesse furado. Que droga! O motorista ia rapidinho para o seu destino. Faltavam quinze para a meia-noite quando chegamos à rodoviária de São Lourenço. Olhei para o pneu e o pregão estava lá, todo enfiado. Só um, mas todão lá dentro. O pneu, impassível, cheio e glorioso, era resistente a manobras adolescentes. Ficamos todos putos. Onde dormir? Ao contabilizar os cobertores para aquele imprevisto percebemos que tínhamos simplesmente dois. Um desastre! Passagens para voltar só de desistência e, mesmo assim, não era o que queríamos. Eu e Anna tínhamos alguns conhecidos na cidade, pois íamos lá desde crianças, quero dizer, desde mais crianças, mas não tínhamos avisado ninguém, muito menos as mães dos conhecidos. Éramos seis patetas na rodoviária, sem querer voltar antes do combinado e sem saber o que fazer... O jeito era dormir em algum banco de praça, de preferência um bem afastado. Para lá fomos e não é preciso nem dizer que, muito antes do meio do caminho, estávamos todos já putos uns com os outros, até que a ordem foi restabelecida por Anna. Ela explicou que lá na praça era muito bom, que havia um pequeno monumento com uns degraus onde poderíamos, juntos, descansar e até dormir, se colocássemos os – 124 – dois cobertores no sentido da largura. Tentei me lembrar da praça. Era realmente simpática, só não recordava quantos degraus tinha o monumento, mas ele era muito pequeno para ter seis degraus, justamente o número de que precisávamos. Além disso, eram de mármore, tanto quanto me lembrasse. Pensei, também, na ladeira que tínhamos de subir, visto que ninguém tinha dinheiro para táxi e não havia qualquer outra condução àquela hora. Chegamos à tal praça, depois de uma caminhada razoável, com ladeira e tudo. Em frente ao monumento havia um templo e, lateralmente, algumas poucas casas, perfeito! Melhor dizer, quase perfeito. Os degraus, como eu previra, eram de mármore, e só três. O frio que fazia não dá nem para contar: era daquele que doía nos ossos. Estava feia a coisa. A cidade ficava em plena serra, entre montanhas, e estávamos em julho... Tentávamos nos acomodar nos degraus como podíamos, e eu e Zé Henrique, dando uma de heróis, ficamos nas pontas. Quando o pessoal começava a rir, de nervoso é claro, a ponta do cobertor sumia. Os que ficaram no meio se agasalhavam com os corpos dos que estavam ao lado e com o cobertor, mas sentiam aquele friozinho bem desagradável do mármore por debaixo. Na verdade, o frio vinha de tudo quanto era canto e ninguém conseguiu ficar parado. Eu, Zé Henrique e Carla resolvemos fazer cooper em volta da praça e, durante a corrida, jogávamos porrinha. Anna, Márcia Maria e Chico jogavam carta enrolados nos cobertores. Depois, revezávamos, e a madrugada foi passando. Já nos divertíamos com nossa situação. Lá pelas quatro e meia da manhã, começamos a sentir fome e repartimos em seis os dois sanduíches que Carla havia trazido. Engolimos a seco e continuamos com fome. Um pouco depois Anna chegou para mim e disse: — Você conhece morcego? — Não sei, acho que sim, por quê? — Acho que tem um por perto... — Não tenha medo, Anna, ele só tem fama, não ataca ninguém. Fique tranqüila. – 125 – Quando acabei de falar, o afamado deu uma rasante perto das nossas cabeças. Eu e ela corremos em disparada em direção oposta à dele. A turma achou que era mais um aquecimento por causa do frio. Paramos um pouco longe da praça para gritar e avisar o pessoal, mas isso acordaria a vizinhança. — Marco, isso é traição. Temos de avisar, pelo menos para trazerem as nossas coisas... — Não vai ser preciso. Olha como Carla e Zé Henrique estão correndo pra cá... Os dois chegaram afobados, quase sem respirar, semigagos de pânico. — O que houve? — perguntei displicentemente. — Um morcegão horroroso quase pegou a gente — respondeu Carla. — Vocês também viram? — perguntou Carla. — Não, estávamos passeando, senão teríamos avisado — respondeu Anna com toda a minha aprovação. Restava agora saber como avisar Chico e Márcia Maria e pegar nossas coisas. — Vai lá, Marco, não vai deixar teu amigo em apuros. — Ele é homem, se vira bem. O pior é sua irmã, Zé Henrique. Vai deixar ela na mão? — Vai com ele, Marco, você não é homem? — atiçou Carla, num papo ao qual não tinha sido chamada. — Sou sim, mas não um homem adulto, só tenho quinze anos, não estou completamente formado. O Zé Henrique já tem dezessete, portanto, já aprendeu tudo o que tinha de aprender. — Eu aprendi a não ser otário. Carla e Anna se entreolharam e começaram a andar lentamente em direção à praça. Não podíamos passar esse vexame. Nos en – 126 – treolhamos também e decidimos, silenciosamente, acompanhá-las, só que um pouquinho atrás... Estávamos a poucos metros da praça quando Carla colocou sua genialidade para funcionar: — Chico, Márcia, vocês podiam trazer nossas coisas. Vamos embora porque daqui a pouco o sol vai esquentar muito. Todos concordamos, solícitos, que andar com sol a pino depois de uma noite em claro era demais... — Por que vocês não vêm pegar? — perguntou Márcia Maria. — É pouca coisa, quando chegar aqui a gente apanha — respondeu Carla. Novamente compactuamos, unânimes, com sua resposta. Eles começaram a recolher as coisas e nós ficamos todos a postos com nosso detector de morcegos. Chico chegou então com minha mochila e comecei a andar ligeiro, ele me acompanhando: — Que pressa, Marco! Dor de barriga? — Mais ou menos; mas não é isso. Você tem medo de morcego? — Eu não, e você? — perguntou ele. — Mais ou menos... Anna deu um alarme falso com nosso código quase secreto: “OLHA O MOOORCEEEGOOO!” Quando vi, todos estavam bem à frente de mim, inclusive Chico. Morri de medo do morcego se aproveitar do fato de eu ter ficado por último, e eu mesmo não me perdoava por isso. Mas, tudo bem, não tinha mais morcego algum. Chegamos rapidinho ao centro da cidade. Não consigo me esquecer da imagem deslumbrante de quando o sol raiou e começou a suspender a névoa que encobria o lago. Este ficava dentro do parque das águas minerais e passamos lateralmente por ele. A névoa ia subindo em bloco e o lago aparecendo, devagarinho, por debaixo dela. Foi realmente lindo. Eu não mais sentia frio, o cansaço já pare – 127 – cia ser uma anestesia inebriante, a fome era apenas uma dorzinha no estômago, com leves roncos interrompendo o silêncio da manhã. Tudo parecia um sonho, até que avistamos um boteco que estava sendo aberto e lavado pelo empregado. O sonho virou realidade, saímos em disparada... Em verdade, a fome não estava nada romântica e sim atormentadora. Era uma forte dor intensificada por pontadas agudas no estômago e estranhos barulhos vindos da barriga. Tinha um bolo no balcão com cara de antes de ontem e cada pedaço a preço de chiclete. Avançamos nele. Chegamos à pensão sobreviventes do frio, do morcego e do bolo com café. Acordei às cinco da tarde, quase bem-disposto. Estava muito aéreo e saí dando bom-dia a todos que passavam por mim a caminho do banheiro, que era coletivo, até que reparei que estava ameaçando escurecer e comecei a dar boa-noite. Fui saber dos outros. Descobri o quarto das meninas e soube que Márcia fora tomar café, Anna estava deitada e Carla namorava uma lâmpada... “Namorando uma lâmpada? Como é que é isso?!?” As duas resolveram experimentar um Mandrix para saber qual o barato que dava. Dividiram um ao meio e cada uma tomou metade. Anna estava normal, apenas com a voz um pouco arrastada, já a Carla estava falando bem mais mole e namorando a lâmpada. Mesmo depois de conhecer muitas pessoas que utilizavam Mandrix, e eu mesmo gostava de um drake, nunca vi ninguém ter tal tipo de reação. “O que será que tem uma lâmpada que possa ser namorável?” Carlinha, logo depois, resolveu tomar café. Tentei descer com ela para o primeiro andar, mas achei melhor voltarmos; ela estava um pouco mole das pernas para enfrentar as escadas. Tomei meu café, na verdade, o lanche da tarde, e fui dar uma volta pela cidade. Muita gente na rua e a sensação gostosa de liberdade. Sem pai, sem mãe, sem responsável, sem compromisso, estava ótimo. Passei pelo “Ferro da Viúva”, o local da cidade onde os caras ficavam sentados e as meninas passavam para dar o ar de sua graça. Era um ponto de encontro fundamental para quem queria dar uma paquerada, encontrar amigos ou mesmo fazer amigos. Mas era cedo, não havia ninguém. A coisa começava a esquentar depois das oito – 128 – horas. Passei também pelo Ki-Beleza, outro tradicional ponto de encontro, um bar-restaurante, mas nada! Voltei para a pensão. Nos divertimos bastante naquela noite e no dia seguinte, domingo. Não passamos fome, mas também não se pode dizer que houve fartura. A coisa começou a complicar quando pegamos as malas que havíamos deixado na pensão e andamos rumo à rodoviária. Estávamos a um quarteirão dela, quando Zé Henrique começou a dizer que se sentia muito mole e começou a arrastar a voz... — Vocês deram Mandrix pra ele? — perguntei a Carla e Anna. As duas disseram que não, que só nós três sabíamos do lance e que haviam escondido os dois Mandrix restantes num papelzinho de Melhoral infantil. Resolvi, então, fazer uma pergunta estratégica a Zé Henrique: — Você sentiu dor de cabeça hoje? — Senti, mas já tomei dois comprimidos de Melhoral infantil que achei no quarto das meninas. — Compreendo... Eu, Carla e Anna nos olhamos e acho que todos tínhamos o mesmo pensamento: qual o efeito de dois Mandrix em alguém que nunca havia tomado nenhum? Conseguimos colocar o Zé Henrique, a duras penas, dentro do ônibus e sentamos. Ele e Anna juntos; do outro lado do corredor, Carla e Márcia Maria; atrás do Zé Henrique, Chico; e eu no corredor atrás da Anna. A princípio, com a voz bem atropelada, ele começou a dizer que queria vomitar. Até aí, tudo bem. Mas quando o ônibus iniciou a descida da serra, ele começou: — Quando é que este avião vai pousar? Anna, a seu lado, estava interessadíssima em sua loucura. Só que tão preocupado quanto nós ficou um cara fardado sentado na poltrona do corredor, na frente da minha. — O rapaz está passando mal? – 129 – — Ele tem problemas mentais e seu remédio acabou, logo passa — respondi, me orgulhando de minha genialidade. Mas algo deu errado, pois, não sei como, Zé Henrique escutou e começou a falar em voz alta e pastosa: — É isso, estou ficando doido. Manda descer o helicóptero no Pinel. Riu alto e depois começou a chorar. As luzinhas do ônibus começaram a se acender e principiou um ligeiro murmúrio no veículo. Que loucura, a coisa estava ficando feia, o que fazer? Zé Henrique, depois de delirar um pouco sobre a forma como cairíamos num precipício qualquer da serra, acalmou-se e dormiu até o Rio. Quanto a mim, fiquei quase a viagem inteira escutando o homem fardado falando de sua tia, uma senhora internada num hospital psiquiátrico, que tinha reações muito parecidas com as do Zé. Fiquei preocupado com ele, pois não sabia, naquela época, quais eram as reações “normais” no caso. Achei tudo muito paranóico, mas tenho a impressão de que o Zé Henrique já era meio assustado por natureza. Como se dariam as devidas explicações para ele, visto que era radicalmente contra drogas e seus usuários, como até bem pouco tempo eu também era? Bem, mas isso não era preocupação para mim, mas sim para Carla e Anna, que por sinal, comigo, constituíam o trio de cara alegre quando chegamos à rodoviária do Rio. Os outros três estavam com um jeito muito murcho e abatido. Por mim repetiria a dose, se bem que depois de descansar pelo menos uma semana... Minha Maria Luíza da adolescência foi Valéria. Não tinha uma mãe baiana, mas alagoana e que sofria das coronárias. Tínhamos 17 anos e éramos colegas de turma no colégio, o Santo Agostinho, onde eu estudava desde o primário. No científico, hoje 2o grau, as turmas se tornavam mistas. Nos conhecemos no segundo ano e, o que tinha eu de bom aluno, tinha ela de péssima. Na primeira vez em que prestei atenção nela, Valéria estava sentada num pára-lama de carro em frente ao colégio, na hora do intervalo. Reparei nela sem querer; estava olhando para mim e sorriu... A estética de uma pessoa nunca foi fator primordial na minha aproximação, mas esta era demais: lindíssima! Tinha uma ironia intrigante, adornada por uma incrível feminilidade. Começamos a conversar, primeiro sobre ioga e Pink – 130 – Floyd, mas os assuntos se diversificavam rapidamente. Ela adorava O Pequeno Príncipe e tenho a impressão de que, até hoje, é seu livro de cabeceira... Enquanto eu prestava atenção às aulas, ela me enchia de recadinhos maravilhosos, sempre decorados por desenhos mais maravilhosos ainda... Não demorou muito para eu entrar na dela e esquecer completamente as aulas. Começamos a passear muito e o símbolo de nossa paixão passou a ser uma gaivota branca que vimos juntos, sobre um céu cinzento na praia. Era a liberdade de nossas emoções que permitíamos trocar um com o outro. Eu gostava de mim, mas passei a gostar ainda mais, só por perceber a capacidade que tinha de amar e também de ser amado por uma pessoa tão bonita. Cada recadinho que chegava à minha carteira me punha viajando de paixão. Um verdadeiro otário diante dos colegas... Certo dia, um professor me perguntou, diante da turma, por que eu estava tão diferente, assim meio aéreo. O pessoal caiu na minha pele: me encarnaram durante um tempão. Os pais de Valéria a prendiam muito e o tempo passou a ser curto para nós. Não me conformava por ela ficar presa em seu quarto tanto tempo. Este, apesar de localizado num prédio de luxo, dava para uma parede branca do edifício lateral. Nós poderíamos estar juntos, mas ela estava ali naquele quarto. Pai português com mãe alagoana, sofrendo das coronárias, dava uma dupla infernal! Não tenho nada contra baianos, alagoanos, nem portugueses, mas quando essa turma resolve tomar conta das filhas, principalmente quando são do pessoal da antiga, é fogo. Só depois de viajar pelo Nordeste me dei conta do que era uma peixeira, mas também de que são raríssimos pais tão imperativos e militares quanto os que encarei aqui no Rio. Passamos a sair à noite e, por vezes, chegamos bem tarde. Foi uma revolução na casa dela. Fazia aquela cara de menino de família que se atrasou no horário por conta de algum imprevisto. Isso, de início, colou, mas só no início. Seus pais começaram a se irritar comigo e nós já estávamos cansados de inventar desculpas e mentiras. Um dia, Valéria resolveu sair de casa. Entramos de férias e eu arrumei onde ela ficar. Era um local bem escondido no Vidigal, – 131 – muito difícil de ser encontrado. A mãe dela me telefonou à noite, preocupada, e eu fiz que nada sabia. Disse-lhe que estivera com Valéria perto da hora do almoço, que tínhamos visto as notas finais no colégio e que nos despedíramos. No dia seguinte, saí com eles à cata de Valéria, bastante preocupado. Cumpria o meu papel direitinho, mas eles acabaram se voltando contra mim. Poucos dias depois aconteceria algo fora dos planos: Anna, minha irmã, foge de casa também. Irmão de uma fugitiva e namorado de outra: eu devia saber de alguma coisa. O pai dela colocou um cara atrás de mim. De início tudo foi uma aventura ótima, aos poucos, porém, foi ficando bastante ruim. Estava cada vez mais problemático a gente se encontrar. A polícia foi avisada e a confusão era geral. A irritação das famílias esquentou a loucura, principalmente quando minha irmã foi encontrada e teve de dar depoimento na delegacia, no dia do aniversário de minha mãe. Ela sabia mais ou menos onde Valéria estava, mas ficou na dela, apesar de algumas contradições em que entrou. Para piorar, o delegado era amigo do pai de Valéria e o arrocho foi firme. Nossos pais só faltavam se atracar. Meu pai me proibiu de sair depois das 10 horas da noite, com medo de que algum sujeito, a mando deles, me encaçapasse na rua. Mesmo assim, nossos encontros ainda eram maravilhosos. Eu batia com certo ritmo na porta e chamava por “Papoula”, nosso código. Ela acabou por telefonar para o pai algumas vezes, penalizada por seu desespero. Eu também já estava cansado do tumulto. Valéria acabou sendo achada. Nunca soube ao certo como isso aconteceu e só muito tempo depois conversamos sobre o assunto. Seus pais a trancafiaram novamente naquele quarto e eu não tinha coragem de enfrentá-los para vê-la. Sentia vontade de contar-lhes que já tínhamos ficado nus um com o outro para ver o que acontecia, mas isso poderia ser muito pior. Eu não tinha trabalho, nem como morar com ela. O que eu poderia dizer para que deixassem Valéria comigo? Pouco tempo depois, ela fugiria novamente, só que dessa vez eu não sabia de nada. Quando a encontraram de novo, foi direto para uma clínica psiquiátrica. Tudo muito triste e estranho. Chico foi visitá-la e ficou impressionado com sua aparência. Ela havia mudado muito: com – 132 – olheiras e muito abatida. Não me lembro por que não fui visitá-la também. Tenho a impressão de que foi por causa de uma carta que me mandou pouco antes de fugir pela segunda vez. Ela terminava comigo, o que me chocou muito. Sei que, de certa forma, eu a decepcionara. Não tivera maturidade suficiente para manter a situação até o fim, não quis mais enfrentar seus pais e me cansei de tudo aquilo. Enfim, não soube nem tive meios de ser seu companheiro de todas as horas. Acabei nisso tudo me sentindo mais criança do que era. Um pouco mais de um ano depois a encontrei, trabalhando no banco em que eu tinha conta. Esperei seu intervalo de lanche e fomos comer alguma coisa juntos. Ela ainda me atraía muito, sentia vontade de abraçá-la e beijá-la, de sair para dar uma volta na praia como antes. Mas a coisa estava diferente. Teria de assumir situações que meu pique de 18 anos não permitia. Senti que um cara para ela tinha de ser, no mínimo, independente dos pais. Eu havia ficado para trás. Ela continuava louca para sair de casa e o faria logo que pudesse. Acabou gostando e casando com um arquiteto responsável pela reforma no banco. Hoje, tem dois filhos e está casada há nove anos. Foi incrível a grande coincidência que ainda aconteceu entre nós. Eu estava fazendo o cursinho pré-vestibular e conheci Gracinha, uma mulher oito anos mais velha do que eu que saíra de sua última relação muito machucada. Foi difícil conseguir namorá-la. O cara anterior era seu vizinho. Tinha se dedicado muito a ele, e ele, como recompensa, casara com outra: Valéria! Fomos descobrir isso muito tempo depois, quando mostrei a Gracinha onde Valéria morava. Realmente, o mundo é pequeno! Minha adolescência, como um todo, foi interessante, apesar do sentimento de fundo que me angustiava e que eu procurava descobrir através da literatura, da filosofia e da psicologia. Questionava sempre tudo o que fazia e sentia. Para orgulho da família ganhei medalhas em futebol de salão e basquete, com nome editado no Jornal dos Sports e tudo o mais... Mas nunca admirei a mim mesmo por isso. Meus objetivos eram outros. Hoje, para o pessoal mais jovem, não é preciso ter uma cabeça muito aberta para não se escandalizar ao saber que seu amigo fez amor com uma amiga conhecida de turma, uma – 133 – “menina de família”, como classificaria o pessoal mais velho, ou mesmo que esse fulano queima um ou cafunga uma carreira. Com meus quinze anos, contudo, as coisas não eram bem assim. As idéias de liberdade sexual rolavam soltas, mas a prática não era tão difundida. Com as drogas, então, as coisas eram bem mais diferentes. Era muito difícil arrumar qualquer tipo de droga e o clima não era nada bom para quem fosse descoberto utilizando-as. Era algo próximo, senão igual, a um submundo. O fato é que, tanto no sexo com as namoradas quanto nas drogas, o sigilo era a alma do negócio. Eu me choquei muito quando um colega meu, numa festa no Monte Líbano, me chamou para fora e, num canto, tirou um cigarro de palha e me disse que era maconha. Meus quinze anos de valores balançaram. Eu sabia de alguns caras que queimavam fumo, mas não tão próximo de mim. Carlos era um cara normal, como eu, como todo mundo. Conversamos muito a respeito e logo percebi que meus pais é que não sabiam de nada e que minhas idéias eram condicionadas pela propaganda negativa. Naquela mesma noite experimentei. Logo percebi que não eram tão raros os caras que faziam a mesma coisa, só que a maioria era mais velha. Aquela minha sensação de vanguardista, com certeza, era completamente furada. Cheguei mesmo a conhecer um senhor que queimava fumo desde 1942, no Ceará. Foi por essa época, também, que minhas idéias sobre sexo mudaram. Conheci uma amiga de minha irmã em Ipanema e ela falava muito do prazer que seu namorado lhe dava na cama, chegando mesmo a fazer elogios explícitos sobre suas coxas e seu pênis. Fiquei meio atordoado com aquilo. Será que as mulheres faziam os mesmos comentários que os homens, por trás? Achei, de repente, que minha irmã poderia estar andando com uma piranha, com uma prostituta de elite, mas, com o tempo, compreendi que as mulheres tinham o mesmo direito que os homens de observar o corpo do parceiro. Afinal, sentiam também prazer ou não. Era tudo uma questão de costume, de educação, de tradição. Certa vez, fui acampar com três amigos e, de repente, apareceu uma menina que acabou fazendo sexo com nós quatro. Ficamos logo temerosos que ela desse preferência a um de nós, pois este seria, reconhecidamente, o “garanhão”. Adoramos ter ficado com ela, – 134 – deixou todo mundo maluco. Logo percebemos, porém, que o “garanhão” ali era ela: comera os quatro e foi embora sem mais aparecer, nem mesmo deixar o nome. Se um cara aparecesse num acampamento com quatro meninas e fizesse o mesmo, seria quase normal... Apesar da minha cabeça feita para novas idéias, a prática foi um tanto quanto avançada. Outro dia, no trabalho, um colega, com uma vozinha muito sacana, me falou: — Aquela ali adora uma pica. — E você queria que ela gostasse de quê? — respondi. Ele riu, irônico. — Ela dá pra todo mundo. — Mas, pelo que você conta por aí, você faz a mesma coisa! — Só que dou meu pau! — Ela dá o que tem... — respondi. Ele não gostou muito de minhas respostas, e me chamou até de “feministazinho”. Não sei se sou tão feminista na prática, pois ainda tenho alguns vestígios de minha educação machista, que as pessoas, por vezes, fazem questão de sublinhar. Mas acho que deve ser muito difícil para as mulheres participarem desse jogo: se gostam de homens, ficam mal faladas; se gostam de mulheres, pior ainda. O silêncio e a discrição continuam sendo para elas o melhor negócio... Acho, no entanto, que a liberdade sexual que se conquistou, tanto para homens como para mulheres, é algo que tem de ser bem trabalhado na cabeça de todos, pois acaba por atingir os sentimentos de aceitação e rejeição das pessoas envolvidas, por menos compromisso que haja na relação. Além do mais, para mim pelo menos, o sexo não é tudo na vida, senão teria ficado mais tempo com Gracinha: ela era perfeita, sempre me deixou maluco, mas não me prendeu. As idéias e as práticas ligadas a drogas e a sexo, adicionadas ao sentimento de desigualdade que já trazia há algum tempo por causa da diabetes, faziam-me sentir, cada vez mais, fora dos padrões – 135 – estipulados, me aproximando bastante das coisas “marginais”. Acho que o que sempre me segurou de um mergulho mais profundo foi o quarteto do qual eu fazia parte: Anna, Chico e Carla. Hoje, posso ser até considerado um cara careta: com a mesma mulher há seis anos, assalariado de uma empresa de processamento de dados, larguei as drogas e só bebo muito de vez em quando... Por outro lado, não deixei de ser diferente. A cegueira fez da diferença a minha normalidade pública. – 136 – Com a Cabeça no Universo É importante percebermos que nossos desejos mudam de acordo com as circunstâncias. Se estamos duros, sonhamos em ganhar na loteria; se nos encontramos carentes de sexo e afeto, pensamos logo numa pessoa bonita e carinhosa; se nos sentimos sufocados pelo trabalho ou estudo, contamos os dias para a chegada das férias. Por mais estranho que possa parecer, meu maior desejo no momento é uma privada. Ela é algo simples, mas bem bolado, fica normalmente em ambiente adequado, onde sentamos à vontade para pensar o que quisermos, além de cumprirmos nossos objetivos principais, é claro. Estou há 51 dias utilizando uma bacia, num tremendo esforço de equilíbrio e de direção, o que faz da privada uma doce fantasia fisiológica... Jamais imaginei que sentar numa latrina pudesse ser um sonho, mas pelo menos este é um desejo simples que um dia realizarei. O desejo é realmente algo complexo. Além de envolver as circunstâncias e necessidades, abriga também fantasias, emoções e, muitas vezes, a própria vida. É fácil constatar isso nas pessoas. No meu caso, por exemplo, o desejo que cultivei desde a infância de não ser diabético renegou durante muito tempo uma parte inseparável de mim mesmo. Acabei fazendo de mim um lento e inconsciente suicida. Observando as pessoas percebi que a maioria de nós sempre carrega consigo algum ponto em que se sente inferior às outras. Essa bagagem acarreta reações diferentes em cada um e, em alguns, até um inconsistente autoritarismo ou uma doentia aparência de superioridade, quando tentam esconder, muitas vezes de si próprios, suas fragilidades. Torna-se nítido, porém, que não têm argumentos suficientes para debater, conversar, dialogar. Há algum ponto em seu sistema que os faz ser assim. Como diabético, já usei argumentos – 137 – respeitáveis para explicar meu comportamento inadequado em relação à doença. Quando estes falhavam, punha toda minha autoridade na verdade de que era “dono da minha vida, faria com ela o que quisesse e que ninguém tinha nada a ver com isso”. A sensação de inferioridade, a auto-rejeição e a conseqüente autodestruição estavam sendo vividas por mim sem que eu tivesse consciência plena disso. Ao conhecer Vila Serena, fiquei impressionado com a violência desse processo nos dependentes químicos. Distinguir um dependente não é coisa muito difícil, principalmente para aqueles que andam entre pessoas que utilizam drogas e/ou bebidas. O mais doidão ou “o mais porra-louca” são muitas vezes seus atributos. As pessoas percebem que o cara não deve estar numa boa e, se ele mesmo não se isolar, acaba sendo discriminado no grupo pela chatice em que normalmente se encontra. Freqüentemente é um cara que não tem objetivos outros que não seja o de se “ligar”, e cada dia que passa carrega um peso maior dos problemas que deixou no lastro de seu caminho. Cheguei a Vila Serena com a única informação de que lá os dependentes procuravam se recuperar e que iria bater um papo com eles. A princípio, estranhei que o lugar não fosse uma clínica, hospital ou coisas desse tipo, e sim uma casa grande com um pátio no meio e salas e quartos em volta. Fui recebido de maneira completamente informal e acabei me sentando numa cadeira de praia no pátio. O barulho típico de almoço, com murmúrio de gente falando, vinha um pouco à direita de onde eu estava, enquanto o de pinguepongue, bem à frente. Estranho... tive a sensação de me encontrar num clube, mesmo sabendo que não. Quem me levou até lá foi D. Margarida, uma senhora que me abordou na fila do banco e, como muitas outras, me perguntou há quanto tempo estava cego, qual a razão e se era definitivo. Disse-me logo depois que tinha um filho alcoólatra. Preparei-me imediatamente para um consolo alcoólico do tipo: “Um dia você se cura, tenha esperança em Deus que Ele é bom, pior é meu filho que não tem nada e vive bêbado por aí. O problema não era Deus. Apesar de não ser adepto de nenhuma doutrina religiosa, eu acreditava Nele, e isso já tinha sido e era para mim uma grande força. O que – 138 – não agüentava muito era a apelação, mesmo dos que tinham fé no que estavam falando. Isso acontecia sempre quando as pessoas não sabiam mais o que dizer. Mas o consolo por parte de Dona Margarida não aconteceu, ela simplesmente me pediu apoio. Eu não imaginava como poderia ajudar seu filho, pois desconhecia tudo sobre alcoólatras, com exceção do fato de beberem. Pegou meu telefone e fiquei com aquilo na cabeça. Dias depois ligou e marcamos um encontro para conversarmos a respeito de minhas experiências e das dela com seu filho. Ele bebia com exagero há muitos anos; não me lembro quantos ao certo, mas eram mais de doze. Já havia feito vários tipos de tratamento, sem êxito. Sua existência tornara-se praticamente vegetativa com o decorrer do tempo. Para Dona Margarida, ele tinha tudo para ser feliz: casado com uma mulher muito bonita e companheira, um filho saudável, morava em casa própria e, enfim, não tinha do que reclamar das circunstâncias da vida. Todavia, não conseguira trabalhar e acabara a Faculdade de Biologia com dificuldade, não por dificuldade de aprendizado, pois tirava boas notas, mas sim, de acordo com ela, por causa de sua doença. Eram muitas suas histórias de encontrar o filho “caído na sarjeta” e dos problemas de conviver com tudo aquilo. Pareceu-me saber muito sobre alcoolismo, por acompanhar o tratamento do filho e pelo que aprendera em palestras e na literatura sobre o assunto. Ele ficava, por vezes, dez dias sem beber e, então, quando voltava, era um verdadeiro desastre. Indaguei se havia algum conflito específico que o perturbava, mas os que ela me apresentou não me pareciam fortes o suficiente para alguém querer esquecer a vida. Sabia, porém, que a aparência dos problemas é algo muito relativo e que só quem os vive sabe o que eles representam para si. Quanto mais conversávamos, mais complicada e mais atraente eu achava a questão. Mas como ajudá-lo, se tocar no assunto diretamente o deixava muito nervoso? Isso tornava o difícil simplesmente impossível. Como me aproximar dele dizendo que era amigo de sua mãe, se esta vivia em função de seu problema? É lógico que, por mais indireto que fosse, ele perceberia minha intenção. A coisa encrencou aí e ela ficou de pensar em como poderia solucionar o caso. – 139 – Um pouco mais de um mês depois, Dona Margarida me ligou novamente, afirmando que realmente era impossível ajudar quem não queria ser ajudado, mas que em Vila Serena eu teria oportunidade de entender melhor o assunto e conhecer mais a fundo pessoas com problemas semelhantes. Fiquei disposto e curioso. Topei a parada e me encontrava agora ali, naquele pátio, com ela. Sentia que minha cegueira causava impacto e interesse, mas não tinha idéia de como me aproveitar disso na palestra que estava prestes a fazer. Um sino tocou e logo veio alguém nos avisar em qual sala nos reuniríamos. A palavra palestra havia me assustado. Sentei numa mesa que dava de frente para algumas pessoas que já estavam por ali. Um cara se aproximou, apresentou-se como residente em tratamento e perguntou se eu queria um cafezinho ou qualquer outra coisa para começar. Pedi-lhe um cinzeiro. Me apresentaram rapidamente e me passaram a palavra. Como começar? Pelo murmúrio deveria haver umas vinte pessoas na sala, talvez vinte e cinco, e de imediato me senti num palco. Antes que iniciasse a encenação de minha tranqüilidade, alguém lembrou que eles mesmos não se tinham apresentado. Um a um foram dizendo seus nomes, seguidos de expressões como “alcoólatra em recuperação”, “toxicômano em recuperação” ou, ainda, “toxicômano e alcoólatra em recuperação”. Dona Margarida usou algo que já ouvira dela: “parente de alcoólatra na ativa”. Aquela apresentação me deixou bem impressionado, pois mostrava que o pessoal era assumido, e resolvi aproveitar a dica para me apresentar, dizendo meu nome e completando com “cego, diabético, enfim, um ser humano em recuperação”. Expliquei logo, porém, que a diabetes e a cegueira não tinham recuperação possível, mas que as seqüelas emocionais, meus sentimentos em relação a mim mesmo, aos outros e à vida, sim. Eu trabalhava para me recuperar e me integrar. Falei que era diabético desde os três anos de idade e que perdera a visão aos vinte e um por complicações da doença, que isso porém era algo objetivo que gerava muitas subjetividades em minha personalidade. Dessa forma voltei ao passado, desde minha infância, passando pela morte de meu pai e impotência sexual, pela insatisfação que senti nesse período diante de mim e do mundo e, finalmente, – 140 – cheguei à minha cegueira. Em meio a tudo, procurei definir qual fora o papel do álcool e dos tóxicos em minha vida. No final, concluí, narrando como tinha decidido enfrentar a lucidez, mas fiquei temeroso de falar muito sobre esse ponto. Receei que isso pudesse parecer uma indicação de moralismo e não do que realmente eu pensava, ou seja, que a lucidez representava para mim a única forma de conseguir encarar a mim e a vida e de canalizar minhas emoções para curtir tudo o que pudesse aproveitar dentro dos meus limites. A doideira para mim significava uma mudança imediata de minha cabeça, de meu modo de pensar e agir, mas era uma mudança passageira, que a definitiva eu só conseguira através de uma transformação interior, à custa da consciência possível. Considerei ainda que o verdadeiro careta era o das idéias, do modo de ser, e que isso não havia bebida ou droga que modificasse. Todos me escutaram em silêncio e fumei um cigarro atrás do outro para falar tudo. As manifestações ao final me indicaram que havia tocado as pessoas e, em verdade, até a mim mesmo, visto que ouvira coisas que nunca me dissera. Percebi também que, se eu mostrara ali uma vivência bastante densa, a deles não ficava por menos... A maioria já havia deixado suas famílias doentes por causa de seus problemas, alguns haviam perdido mulher, às vezes os filhos, trabalho, e outros até roubaram quando estavam na ativa, para conseguir o que desejavam. Não queriam mais passar por aquilo e tentavam uma recuperação através de ajuda mútua. Ensinaram-me, naquele dia, que o alcoolismo e a toxicomania eram doenças como a diabetes: não tinha cura, só tratamento de controle. Após o intervalo do café nos dividimos em quatro grupos pequenos para expor nossos sentimentos, ou qualquer outra coisa que quiséssemos falar. Era o “grupo de sentimentos”. Saí naquele dia de Vila Serena impressionado, e gradativamente fui me tornando um freqüentador assíduo, a ponto de conhecer parte da vida de cada um. Por vezes, cheguei a seguir processos inteiros do tratamento de um ou de outro que me tocava mais ou que me procurava mais para conversar. O tratamento também me entusiasmou. As pessoas não eram obrigadas a ficar lá. Apesar de a saída não ser facilitada, poderia acontecer, contanto que o – 141 – residente se responsabilizasse por sua atitude, se fosse maior de idade. A “alta” era dada pelo próprio residente, acrescida da avaliação de seus colegas e de um grupo de funcionários denominado de “terapia”. O conjunto dessas avaliações, se positivas, acarretava o término de seu tratamento. Havia ainda um pós-tratamento feito duas vezes por semana, em grupos. Os únicos remédios utilizados eram homeopáticos. Além disso, havia uma programação especial para familiares e amigos nos finais de semana, quando se procurava conscientizar as pessoas da problemática não só dos dependentes como a deles próprios. A palavra vício é trocada por doença, a partir do momento em que se considere que o uso prolongado do objeto químico traz condicionamento orgânico. Portanto, não se tratava de algo somente emocional. A compulsão atinge todos os níveis da pessoa, levando-a, na maioria das vezes, irracionalmente a seu objetivo: a procura das drogas e do álcool. A loucura aí já começa antes mesmo do efeito do que quer que se tome. O sujeito fica tão fissurado em conseguir o que quer que tudo o que acontece, mesmo que não tenha relação com as drogas ou álcool, passa a ser mero adendo. A vida, as pessoas, as realizações correm ao lado do sujeito e tudo o que ele quer é ficar doidão. A freqüência e intensidade dessa experiência tornam-se cada vez maiores até o ponto de o indivíduo perder o controle de sua própria vida. Quando isso acontece diz-se que o cara está “no fundo do poço”. Lembro-me perfeitamente do dia em que temi essa sensação. Estava na casa de Guilherme, em Copacabana, quando um amigo dele apareceu com uma seringa e um garrote. Estávamos sozinhos no apartamento e percebi logo que haveria novidade. Ele nos disse que havia dose suficiente para três e eu, que nunca experimentara aplicar na veia, fiquei animado. Por um lado, era fascinante saber que eu seria iniciado na grande aventura que, junto ao chá de cogumelo, que já havia experimentado, representava o mergulho mais fundo que alguém poderia dar no mundo da loucura, dentro da minha hierarquia, em pleno 1977. Eu via as pessoas que se aplicavam com certo respeito pela coragem necessária para ter a vivência a que tão poucos se permitiam. Por outro lado, ainda restava um pouco em mim a sensação de que aquilo fazia parte de uma – 142 – escalada perigosa para a irrealidade e que os poucos que a percorriam, e que eu conhecia, me pareciam extremamente solitários, isolados, às vezes verdadeiramente vazios. Mas não foi isso que me brecou. Ao apertar o garrote no músculo de seu braço, o cara estava numa ansiedade tal que me pareceu se encontrar no fundo do oceano, sendo aquela droga o oxigênio necessário para sobreviver. Era como se enxergasse no infinito sua salvação, apesar de estarmos entre quatro paredes. Seu rosto, e depois achei que todo o seu corpo, tremia descontrolado. Seu braço estava salpicado de ilhas roxas e sua parte inferior possuía um volume desproporcional em relação à superior. Eu e Guilherme assistíamos à cena um tanto aturdidos. Não consegui sentir admiração pela “viagem” do cara, mas pena. Não queria aquilo para mim, era demais visualizar o meu possível futuro. Passei a me questionar se não sentia o mesmo que ele, só que em menor intensidade. Seria o segundo, mas recusei e meu amigo Guilherme também. Soube, no entanto, que alguns meses depois, em 1978, quando eu já estava cego, que ele arrumara trabalho em Nova York, morrera drogado, não sei por que substância, e nunca mais ouvi falar de Guilherme. Hoje dou graças por ter conseguido parar antes de ficar dominado pela dependência e de ser mais um compulsivo a clamar pela “deusa”. O que se sente em Vila Serena é algo fantástico, é um clima de aliança, de ajuda, de amizade entre as pessoas, difícil de encontrar em outros lugares. Certa vez acompanhei o caso de “ZZZ” durante os 45 dias em que ficou residente. Eu o conheci como um cara completamente introspectivo, mal-humorado, irritado por estar ali. Era dia de programação familiar, eu havia sido o palestrador e ficamos na mesma sala no “grupo de sentimentos”. Durante a reunião, seus parentes falaram muito sobre ele. Pensei até que estivesse ausente, pois o próprio nada disse o tempo todo. Chamei a atenção dos pais por não estarem se expondo, mas ao filho, e isso era melhor que ele o fizesse. “ZZZ” se tocou e falou alguma coisa, mas mesmo assim quase nada. Com 25 anos, era casado e tinha um filho que amava muito. Em seu trabalho, numa grande empresa no interior de – 143 – São Paulo, a assistente social o havia procurado e lhe falara do convênio que a empresa tinha com Vila Serena. Caso quisesse, ela o encaminharia. Tinha hematomas constantes dos picos que aplicava nas veias e não estava sobrando mais nem batata da perna. Ele representava uma mão-de-obra bastante especializada, a ponto de compensar o investimento da empresa, e, além do mais, não seria o primeiro nem o último. Os pais se sentiam os senhores da perfeição diante do filho desregrado. “ZZZ” estourou justamente quando o pai começou a perfilar seus méritos de bom marido e pai, seus esforços para vencer na vida desde pequeno. Quase gritando, começou a relatar para o grupo a dúvida do casal quanto ao fato de ele ser ou não filho legítimo. Isso transformou a infância e a adolescência de “ZZZ” num mundo de acusações e descargas, e sempre que ele fazia algo errado seu pai lhe dizia que “aquilo não era coisa de um filho seu”. Continuou o desabafo lembrando ao pai as pancadas que já havia levado e, principalmente, a desmerecida surra que o fizera sair de casa aos 17 anos, por ter perguntado quem era o outro possível pai... Começou a chorar meio descontrolado quando o sino, que sinaliza o final da reunião, tocou. Todos saíram, um a um, e acabei ficando com ele e sua mãe na sala. Pediu nervosamente para que a mãe saísse também. O pai já se retirara antes do sinal e percebi que “ZZZ” queria ficar só. Pensei em sair, mas sabia que algo tinha de ser feito, ou pelo menos, eu queria fazer algo. Encontrei uma cadeira ao lado de onde vinha seu choro e, de repente, ele começou a dizer que nunca havia se aberto dessa forma, que sempre permanecera calado em seu sentimento de angústia e rejeição. Amava a mãe e odiava o pai: sempre imaginara que o “outro” teria sido muito melhor. Pensei em falar algo, mas logo percebi que, para tudo que eu argumentasse, ele já teria respostas prontas e aquilo de nada adiantaria. Devia ainda ter muita coisa embutida, abafada dentro dele, e eu sabia que ele teria de colocar as coisas para fora, pois se guardasse ressentimentos daquele tipo, sem trabalhar, seu tratamento não traria frutos. Entretanto, pelo tempo de permanência em Vila Serena, já tinha ido fundo... Resolvi não falar mais nada e coloquei minha mão sobre seu ombro, como – 144 – que dizendo: “estou aqui”. Sua voz virou-se novamente em minha direção. — Não quero que um cego sinta pena de mim. Fiquei chocado, mas reagi. — Sei o que você quer dizer com isso, mas não estava penalizado e sim solidário. Tirei a mão de seu ombro e me levantei para sair, mas resolvi acrescentar: — Não sinta pena de si mesmo. Toda vítima já foi derrotada antes de começar a luta. — Não sinto pena, sinto raiva de mim. Nunca consegui ser amado. — Teus pais provavelmente te amam... — É? — e deu um risinho como se eu não soubesse de nada... — Então, por que estão aqui, por que não sumiram de tua vida? Eu já estava na porta, saindo, quando me perguntou: — Quer ajuda? Disse que não e saí. Aquele diálogo me fez ficar questionando a semana inteira sobre a razão de eu ir a Vila Serena... Será porque gostava dos elogios que recebia por minhas palestras? Porque me identificava com o sofrimento de algumas pessoas? Porque estava levando a boa imagem de um cego aos outros? Porque curtia aquele clima de aliança, amizade, ajuda? Porque queria retribuir à sociedade os favores que me prestava na rua? Havia um pouco de cada, mas o que mais me motivava era que as pessoas ali estavam procurando começar uma nova vida, que renasciam a cada passo, que procuravam recuperação dentro de um novo caminho. Eu passara por isso, sabia como era duro e como me sentira. De repente, todos ali estavam na mesma, inclusive eu. Inconscientemente recarregava minhas baterias... – 145 – Apareci em Vila Serena uma semana depois, sem saber ao certo o que fazia lá. Não queria assumir, mas ficara aborrecido com “ZZZ”. Ele, porém, havia aberto um ligeiro fio de comunicação quando ao final do papo se ofereceu para me ajudar. Aquilo me intrigou. Quando cheguei, a palestra já começara. Sentei e fiquei escutando até o final. Algumas pessoas vieram falar comigo. Percebi que “ZZZ” estava por perto. Sua voz era bastante grave, dava para notar de longe. Ele não veio me cumprimentar, apesar de estar quase ao meu lado. Fiquei ressentido e acabei por aproveitar uma carona para ir tomar café antes de entrar no “grupo de sentimentos”. Aos poucos, as pessoas começaram a ir para suas salas, mas ainda não sabia qual era a minha. A casa estava cheia e havia cinco grupos: precisava saber para onde ir. Repentinamente, alguém pegou meu braço e começou a me guiar sem dizer uma palavra. Perguntei, então, se sabia onde era meu grupo, e a pessoa respondeu que a coordenadora pedira para me avisar que era o da sala de televisão. A voz não enganava, era “ZZZ”. Estávamos no mesmo grupo e fiquei satisfeito: poderia sacar melhor aquela figura, apesar de não estar a fim de lhe falar nada. Entramos na sala, sentamos e a reunião começou, mas então a coordenadora abriu a porta e disse: — Você trocou as bolas, “ZZZ”. Fica aqui com a mulher e Marco é lá com a Sílvia. Já ia me dirigindo para a outra sala, quando “ZZZ” perguntou: — Posso ficar no mesmo grupo que o Marco? Aquilo me surpreendeu. Fiquei intrigado, mas contente. A coordenadora brincou: — Então seu engano não foi tão sem querer assim, né? Rimos de sua conclusão, e “ZZZ” acabou rindo também. Durante a reunião, “ZZZ” dirigiu-se a mim, referindo-se ao pequeno papo que tivéramos. Contou-me que descobrira a necessidade de trabalhar interiormente os sentimentos de autopiedade e de autodesvalorização, que o faziam não acreditar nos sentimentos positivos que lhe dedicavam. Dali em diante, ficamos muito juntos. Quando eu não ia a Vila Serena, ele me telefonava. Abrira-se bastante – 146 – para se descobrir. Estava num ótimo retiro para isso acontecer e tinha de aproveitar. Sua viagem na terra do Eu foi sofrida, como sempre acontece, mas aprendeu a gostar um pouco mais de si e a aliviar seus impulsos em relação às drogas. No dia de sua volta para casa fui a seu encontro. Estávamos emocionados, ele me chamou e resolveu me contar uma história: — Quando eu era pequeno, tinha um amigo japonês. Ia jogar bola de gude, futebol, empinar pipa, e ele estava sempre lá. Quando não o encontrava por ali, ia atrás dele. Estávamos sempre juntos, cúmplices. Se alguém brigava com ele, pode ter certeza, brigava comigo também, e vice-versa. Certa vez, dei a sorte de conseguir a figurinha mais difícil de um álbum, que ele também não tinha. Quando a mostrei para ele, vi logo o brilho de seu olhar. Ele a queria muito, mas sei que estava feliz por eu a ter conseguido. Era um tesouro; o presente de maior valor que poderia dar a alguém. Pouco tempo depois, meu pai foi transferido para o interior e eu, não sei por que razão, não a tinha ainda colado no álbum. Resolvi dar a figurinha para meu amigo, na esperança de que nunca mais me esquecesse. Ele a pegou, riu e me devolveu. Tínhamos nove anos, e até hoje busco aquela emoção de amizade que tinha pelo japonesinho. Quando, pela primeira vez, fui passear com minha mãe na capital, procurei-o, mas ele havia mudado e ninguém sabia o endereço. Nunca mais o vi. Fiquei muito triste e desde aquela época não choro na frente dos outros. Chorei que nem um pateta quando fiquei sozinho. Pode ter certeza de que isto vai se repetir quando estiver novamente só e pensar em você, Marco. Pôs seus dedos em meus olhos pelas beiradas e os esticou, como se estivesse querendo ver em mim um japonês... Saiu dizendo que ia dar um pulo no quarto para pegar algo e, quando voltou, me disse: — Fique com ela, não me devolva. — Para não te esquecer? — perguntei. — E para dizer também que te gosto muito, meu amigo. Eu o abracei, já chorando, com a figurinha na mão... – 147 – — Não chora não, idiota, que todo mundo vai ver — cochichou em meu ouvido. — Depois de tudo isso, seu canalha, não dá pra segurar — respondi. — Pode chorar, que você não é idiota não, patife. “ZZZ” partiu, e nos comunicamos ainda através de cinco cartas, muito bonitas e fortes. Na quinta, ele me contou o pesadelo que fora sua recaída com um pico que deu no braço. Seus antigos amigos o haviam procurado e sempre convidavam para dar pelo menos um “tapa”, argumentando que não lhe faria mal. Emburacou tudo o que havia segurado durante o tempo de abstinência e estava numa pior. Por causa disso, não se sentia digno do amor de sua mulher, do filho e dos amigos que fizera por aqui. Perguntou-me na carta se, mesmo assim, ele poderia me considerar seu amigo. Respondi- lhe que uma recaída não era o final de tudo, pois existia dentro dele uma semente que haveria de dar resultado; que deveria tentar novamente e que o que ele havia me mostrado de si mesmo jamais poderia se apagar totalmente. Eu estaria ali para o que desse e viesse. Depois disso, ele não mais me escreveu, apesar de minha insistência. Ele partiu mais uma vez e, tenho certeza, não será esquecido... Tive encontros bastante marcantes em Vila Serena, mas esse tomou um rumo de emoção diferente que me fez sentir demais o seu final. Algumas pessoas têm recaídas quando saem de lá; algo, porém, se torna irredutível quando se aproveita minimamente o que se oferece. É a conscientização, a transformação, o crescimento interno da pessoa. Tenho certeza, por tudo que vivi, de que Vila Serena se torna um marco para todos que lá passaram. No mínimo, repensaram a vida como um todo. A recuperação do indivíduo é algo muito difícil, não só para ele como para toda a família. Na maioria das vezes, ele já se tornou o termômetro emocional das pessoas que estão por perto. Se chega em casa lúcido, todos estão bem; caso contrário, mal. Como o segundo caso é o que predomina constantemente, a família acaba por fazê-lo de bode expiatório de todas as dificuldades. Se alguém da – 148 – família está triste ou nervoso é por causa dele. Todos acabam por esconder seus problemas atrás do problema-mestre: o dependente. Quando o sujeito se recupera, há duas possibilidades: um outro problema qualquer é achado para canalizar as atenções, ou cada membro da família é obrigado a se voltar para si mesmo. Na última hipótese, a sobriedade do dependente estará bem mais resguardada, porque todos estarão mais preocupados em normalizar sua própria vida e não em dar continuidade à neurose estabelecida. Esse processo sempre acontece, mesmo que em intensidades diferentes, não só com famílias de alcoólatras e toxicômanos, mas em qualquer família na qual haja um sujeito com algum problema orgânico, físico, mental ou simplesmente psicoemocional que se destaque do que a família considere “normal”. A recuperação necessária não é só a do sujeito, mas de toda a família e, às vezes, quem sabe, de toda a sociedade. Isso é uma longa história que muitos sabem contar... – 149 – “Esperar Não É Saber...” Aquela gostosa tarde na praia, com Cleber e Inês, poderia ter sido simplesmente uma tarde qualquer às vésperas do verão. Mas, minutos depois, fiquei sabendo que canela se chama tíbia e que a minha estava fraturada. Um acidente de moto como centenas de outros dos quais a gente ouve falar, acha perigoso e esquece. Continuamos nossa vida normalmente, enquanto alguém morreu ou se recupera de alguns poucos segundos de vida. Carros e motos passam pelas ruas, as pessoas andam de um lado para o outro e nada mudou. Já havia sentido isso ao viver as situações mais difíceis de minha vida. O trágico normalmente é notícia nos jornais e nas TVs, raramente em nossa vida, e acabamos por nos acostumar aos acontecimentos. Mas se acomodar às situações é bem diferente que às notícias. Sinto falta de um sorvete de flocos e de um delicioso pudim de leite nas sobremesas, dos ataques à geladeira, padarias e Coca-Colas. Sinto saudades de meu pai e da impossibilidade de trabalhar com ele a relação entre dois homens que tinham tudo para se compreender melhor. Sinto falta de visão quando viajo nostalgicamente aos olhares das pessoas que via e das que vejo agora só em minhas fantasias, quando me lembro de meu amor pelo mar, pela beleza visual da natureza e dos corpos. Como estará meu próprio rosto, que olhava tanto no espelho? Sinto falta também de minha perna livre desse gesso, mas ninguém vive de saudades e nostalgia porque a vida é um eterno momento que se sucede, sempre novo, criando freqüentemente uma história a mais. Os carros e motos continuam passando e eu, como todo mundo, passarei junto, alienado das dores de muitos outros alguéns. Minha história quem mudou fui eu e não o mundo. Mas depois de – 150 – tudo isso parece que faço o estilo de mulher de malandro: quanto mais apanho mais gosto da vida. Casei com Sônia, se não no papel, numa aliança de sentimentos, afetividade e vida, que é o mais importante. Nosso desejo chegou muito antes do contrato, mas um dia, talvez, a gente ainda o assine. Dos personagens que passaram por minha vida, Sônia foi o principal, fundamentalmente porque sobreviveu ao tempo num cotidiano de dor, luta e alegria, despertando em mim sempre uma renovada paixão. Sua beleza, força e dengo de mulher marcam em meu corpo, em minha emoção, em minhas idéias e fantasias, um desejo de vida, de presente e de futuro, enfim, de amor. Não passamos só por momentos difíceis, mas também de muito prazer. Acho incrível o que sinto até hoje ao acordar ao seu lado: cresci e, apesar de tudo que vivi e vivo, sou feliz. Não faz muito tempo pensava que muitas coisas que conquistamos juntos jamais poderiam acontecer. Um exemplo disso é ter minha própria casa com Sônia. O nosso sofá, a nossa mesa, a nossa cama, o nosso som. Meu filho, quando nascer e crescer, não saberá o quanto isso custou, nem darei mais tanto valor a algo com que já estarei acostumado. Outro dia me peguei conversando mais de uma hora com Silvinha, uma colega de terapia de grupo, sobre as vantagens de ter um freezer em casa. Se escutasse aquele papo pouco tempo atrás, o acharia supercareta, longe do meu universo de preocupações; esse universo era dos meus pais. Para se chegar a isso, porém, existe toda uma história que fez das primeiras coisas que comprei e paguei com meu próprio salário as mais importantes do mundo. Recolho de minhas histórias a integração comigo e com o mundo e se, de cada uma, retirasse seus personagens e esses resolvessem se reunir para escrever um só livro, tenho a impressão de que contariam a história de todos no planeta. Cegos e gordos, alcoólatras e velhos, negros e tutelados, aleijados e comunistas, analfabetos e hemofílicos, órfãos e favelados, carecas e homossexuais, baixinhos e toxicômanos, feios e presidiários, solitários e gagos, vesgos e neuróticos, desempregados e diabéticos, prostitutas e poetas, estrangeiros e impotentes, pobres e gênios, e todos aqueles que se desviaram do padrão do ser humano “normal”, sendo autores da mesma história, – 151 – quem sobraria para ser o leitor? Somos a minoria? O problema é que, na maior parte das vezes, não sabemos conviver com nossa própria diferença, nem com a do outro. O rótulo é o resultado social da padronização das diferenças. Imaginou-se, um dia, que um ser humano feliz deveria ser bonito, saudável, inteligente, rico e sensível. Hoje tenho certeza de que a profundidade e a quantidade de problemas de uma pessoa não determinam sua felicidade ou sofrimento: isso depende de como cada um enfrenta suas dificuldades, se cresce com sua bagagem ou estaciona em sua dor. Eu mesmo já tive muito menos problemas do que tenho hoje e nem por isso era mais feliz. Consolo? Não, realidade. Atendi ao telefone, que agora fica ao lado de minha cama. Era Cláudia, a penúltima menina que namorei firme antes de ficar impotente. Não falávamos desde então e achei estranho ter se lembrado de mim depois de tanto tempo. Soube meu novo telefone com mamãe. Achei fantástico estar escutando aquela voz, tão igual apesar dos anos. — Posso chamar você de doutora? — Não, não terminei a faculdade. E você, historiador? — Não, mudei para processamento de dados, programação de computadores. Já estou há mais de três anos nisso. — Morando com um amigo, Marco? — Não, casei não faz um ano. — Casou? Pensei que isso não fosse acontecer tão cedo com você. — Mas não é tão cedo, Cláudia, estou beirando os trinta. — E teu pai, como vai? — Morreu, pouco tempo depois de a gente deixar de se falar. — Sei... Ela fez um breve silêncio e continuou: — Puxa, as coisas andaram mudando bastante, hein? – 152 – — Se você me visse iria achar até que demais. — Por que, ficou moreno, Marco? — Não, fiquei cego. — Cego? Tá brincando! Daquele que não vê? Achei gozado sua forma de confirmar a cegueira e respondi: — Das duas vistas. — Que loucura, não! — Foi uma loucura, mas batalhando dá pra conviver bem com isso. Agora já acostumei. — Pô, nem sei o que dizer... Mas pela tua voz parece que tá tudo bem. — Mas vou ficar melhor quando sair desta cama. Sofri um acidente na garupa de uma moto com um amigo. — Não me diga que ficou aleijado? — Não, seria demais em pouco tempo. Diabético, cego e aleijado tem de ter mais tempo de preparação... Só fiquei engessado até a coxa. — Por quantas coisas incríveis você passou, hein, Marco... — É, e eu não contei tudo. — É? Tudo bem, mas pode parar. — E com você, o que aconteceu, Cláudia? — Depois desse papo, acho que nada. — Bobagem, é claro que sim. A ficha do telefone público caiu e fiquei escutando o sinal de comunicação. Pensei que, realmente, eu tinha muitas coisas para contar a alguém com quem não falava há muito tempo. Como será que se sentiria uma pessoa, como Cláudia, escutando tudo que lhe falei? Devia ter ido mais devagar... O aparelho toca novamente, mas é Antônio Paulo. – 153 – — Vou passar por aí levando uns discos pra gente escutar. — Que ótimo, quais? — Vai ser surpresa. E o livro, como vai? — Terminei... — Terminou? — Terminei. Terminei? — Rimos. É difícil a gente colocar ponto final numa história. Depois de algum tempo sem me comunicar com André, que está em Paris, ele me mandou um cartão-postal dizendo que Dulce, sua mulher, está grávida e que os dois vêm para o Brasil. Gravei uma fita cassete para ele, contando as últimas novidades. Foi um dos caras que mais me encheu os ouvidos para que não andasse de moto. Acho que vai ficar chateado, mas por outro lado penso que vai gostar porque foi a oportunidade que tive para escrever o livro. Por falar em acidente, minha perna não calcificou legal. Segundo o médico, meu organismo não está ajudando muito e, se dentro dos próximos dois meses não calcificar de vez, terei de fazer outra cirurgia, um enxerto ósseo. Resolvi, assim, consultar outro médico, e o novo, Dr. Décio Souza Aguiar, reduziu o gesso até o joelho, colocando um salto de borracha nele; estou começando a andar com duas muletas canadenses. Seu diagnóstico é o de que em pouco tempo vou criar um calo ósseo no lugar da fratura e que poderei sair para a vida novamente. Marco Antonio 1985 Presentes da Vida “Há homens que lutam um dia, e são bons. Há outros que lutam um ano, e são melhores. Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons. Porém, há os que lutam toda a vida, Estes são os imprescindíveis.” Os Imprescindíveis, de Bertolt Brecht – 156 – – 157 – Vive-se de Sonhos Estou sentado em frente ao computador tirando a vida a limpo, tendo um contato renovado com um passado com muitos anos de vida realizados e um presente ainda de sonhos a se realizarem. Muitas lembranças me chegam e é muito bom senti-las, pois fico alegre, com um nó na garganta e, mesmo sabendo que é muita coisa dentro de mim, vou lembrando. Era agosto de 2002 e aguardávamos no consultório de Dr. Tércio Genzini, em São Paulo: eu, Sônia, Mônica Vita e João Teófilo. A consulta do João era logo após a minha. Ele, para fazer uma visita de rotina e para tirar algumas preocupações que estava tendo com seu rim, um dos dois órgãos que havia transplantado simultaneamente seis anos antes. Eu, para me apresentar e conhecer o Dr. Tércio. Sônia e eu já estávamos em São Paulo havia quase uma semana, ansiosos para que chegasse o momento da cirurgia, pois eu era o próximo da fila de espera para o transplante de pâncreas isolado de meu tipo sangüíneo. Não seria minha primeira experiência na área, já que fizera o transplante de rim quatro anos antes e me sentia muito confiante. Na chegada do Rio, no domingo, nos instalamos na casa de Flavia Maria e Eduardo Guimarães, um casal amigo que eu conhecera através da internet, como acontecera com Mônica Vita também. Surpreendente como nos aproximamos tanto, a ponto de eu e Sônia termos nos instalado em casa de Flavia e Edu com a intenção de ficarmos os seis meses pós-cirúrgicos lá, por meu desejo e insistência deles. Sônia não freqüentava a internet, portanto, só veio a conhecêlos nas consultas anteriores, quando vínhamos do Rio e voltávamos no mesmo dia. – 158 – Eu estava ali agora, na sala de espera, não exatamente porque fizesse parte do esquema rotineiro, pois a menina da equipe que havia pedido para eu vir aguardar o órgão em São Paulo já tinha sido avisada de que eu estava na cidade. Minha ansiedade crescera porque, justamente quando fui notificá-la, na segunda-feira, de que eu já estava lá, ela me disse que os dois médicos, Dr. Marcelo Perosa e Dr. Tércio, tinham ido a Miami para um congresso a respeito de transplantes e que somente o Dr. Tércio chegaria naquela semana e poderia me atender na sexta. Os dois eram os cabeças da equipe cirúrgica. Porém, todos os meus exames haviam sido pedidos pelo Dr. Marcelo, que tinha aprovado minha entrada na fila de espera. Eu não conhecia o Dr. Tércio, só de falarem dele. Era um sujeito alto, forte, com 36 anos de idade. Trinta e seis anos? Não é um pouco novinho não? Cismei a primeira vez em que escutei sua idade... João Teófilo, no entanto, tinha absoluta confiança nele e, quando eu e Sônia fomos chamados para entrar em sua sala, já o considerava um senhor cirurgião, um gênio com mais de cem anos de experiência. Apresentamo-nos a ele e falamos de nossa preocupação, pois tínhamos vindo do Rio com antecedência por termos sabido que, apesar de o pâncreas poder demorar até um mês para aparecer, por vezes aparecia de uma hora para outra e que, se eu já estivesse na cidade, tudo seria mais simples... É como se eu soubesse que ganharia na loteria a qualquer momento, só que meu número ainda não havia sido sorteado. O transplante de pâncreas significava para mim a realização de um dos maiores sonhos de minha vida: ficar totalmente curado da diabetes. Não conseguia nem imaginar direito, acreditar, que não teria mais de furar meus dedos diariamente nem tomar injeções de insulina, várias vezes ao dia, para monitorar minhas glicemias quase infrutiferamente, pois o descontrole da diabetes não era mais causado por extravagâncias minhas, mas por questões orgânicas que nenhum diabético imagina que possam acontecer consigo por não ligar muito para a doença que possui. Nada agora conseguia controlar adequadamente minha diabetes, que fazia flutuar minha glicemia de um momento para o outro, numa rapidez enorme, alternando altas e baixas glicêmicas, malestar, insegurança geral. Não ficava mais tranqüilo de sair sozinho, a não ser para o meu trabalho, onde as enfermeiras e médicos do – 159 – ambulatório já me conheciam. Às vezes tinha baixas glicêmicas noturnas que não me permitiam acordar pela manhã; ficava desmaiado, para desespero de Sônia, que reconhecia minhas condições por ficar sempre encolhido, suando muito e, por vezes, babando, além de não responder a ela. No trabalho também me sentia mal, e por vezes tive de sair de lá direto para o hospital. Era um cotidiano complicado. Conheci Josuel Tonon dois anos antes, quando me perguntou o que eu achava melhor: ele fazer transplante de rim com o órgão doado por um parente ou fazer o transplante duplo, rim e pâncreas, para resolver seu problema renal – ele fazia hemodiálise – e, ao mesmo tempo, livrar-se da diabetes. Eu tinha pouca informação sobre a evolução dos transplantes de pâncreas, mas fizera um de rim, doado por pessoa viva, e tudo correra bem, perfeito. Na época, sugeri o de rim isolado, mas hoje sei que por ignorância. Ele fez o duplo e se deu muito bem. Só falava maravilhas do que tinha feito: não usava mais insulina, sua glicemia era sempre boa apesar de comer açúcar, não era mais diabético! Depois, de um em um, fui consultando outros transplantados, poucos é claro, mas todos unanimemente felizes e nada arrependidos por terem feito a cirurgia de pâncreas. Quando conheci o João Teófilo, de São Paulo, ele não só me deu seu depoimento e opinião, como me deu força para vir à cidade e conversar com o Dr. Marcelo Perosa. Disse que nos esperaria no aeroporto, que nos levaria às consultas, enfim, seria meu guia nessa questão. Prometeu e cumpriu. Nesse momento, ele estava na sala ao lado à espera de sua consulta e eu ali, conversando com o médico que poderia realizar meu sonho, caso meu número da loteria fosse sorteado antes de o Dr. Marcelo voltar do exterior. — Penso que vocês se precipitaram em vir para cá tão cedo. Estamos numa maré baixa de captação de órgãos e fizemos uma cirurgia não faz muito... não sei quando vai aparecer outro. Se vocês moram no Rio — dizia ele enquanto eu ia esmorecendo e afundando na cadeira —, dá tempo tranqüilamente de virem para São Paulo no prazo necessário. Quando chega um órgão, temos de retirá-lo, e – 160 – nem sempre isso é feito aqui na capital, até mesmo pode ser em outro estado, e ainda teríamos de fazer vários exames nele para qualificá- lo para a cirurgia. Sônia havia tirado licença do trabalho, licença que já estava contando há duas semanas, e nosso filho, agora com 13 anos, tinha se mudado para a casa da avó, e nos preocupávamos com isso. Nosso cotidiano fora totalmente alterado e poderíamos ter amenizado isso se continuássemos em casa, no Rio. Ele perguntou por meus exames, mostramos os que havíamos levado e ele ficou satisfeito... Nos despedimos dele na porta, enquanto João Teófilo era chamado. Voltamos para a sala de espera, onde Mônica estava ansiosa por notícias e contamos tudo. Mônica também deu uma desanimada, mas, como sempre, tentou ser positiva dizendo que tudo iria dar certo. — Acho melhor voltarmos para o Rio, Sônia. Do jeito que o Dr. Tércio apresentou as coisas, parece que nossa permanência na cidade não vai ajudar muito. Fiquei com raiva das pessoas que nos disseram que o melhor seria virmos, apesar de haver a possibilidade de o órgão demorar até um mês para aparecer. Devia ser praxe esperar na cidade, mas será que era necessário mesmo? Segundo o que acabáramos de escutar, não. Eu era o primeiro da fila, mas em função de meu tipo sangüíneo, o tipo O, o chamado doador universal, só poderia receber sangue de outro O, sendo assim, eu fazia parte do mais restrito dos receptores. Surgiu-me uma dúvida, conversando com Sônia, que me deixava sempre muito inseguro. Eu me sentia sempre um pouco mal quando perto ou dentro da faixa de glicose normal, como se estivesse faltando açúcar em mim, como se meu corpo não se acostumasse à normalidade. A confusão estava armada porque, embora minha luta fosse a de deixar a glicose dentro da faixa, ficava tonto quando conseguia. Para mim, o bom era ficar um pouco acima da taxa comum. Se eu fizesse uma cirurgia daquele porte para tudo ficar bem controlado, será que eu poderia me sentir sempre meio mal depois de operar? Essa insegurança, também provocada pela ansiedade, fez com que – 161 – eu pedisse à secretária para voltar a falar com o Dr. Tércio, um segundinho só, após a saída do João. Quando João saiu, não parecia muito satisfeito, mas nem deu tempo de eu perguntar a razão, pois já havia sido chamado e, com Sônia, fui para a porta do Dr. Tércio. Meu intuito era fazer a pergunta por ali mesmo e ter uma resposta breve. No entanto, entramos novamente, pois ele estava ao telefone e fez sinal para Sônia para que sentássemos. Quando desligou, comecei a fazer-lhe minha pergunta. Mas só comecei, pois o telefone tocou novamente: — Sim, sou eu. Mulher? Quantos anos? De quê? As respostas eram dadas e ele continuava: — Que órgãos estão disponíveis? Qual o tipo sangüíneo? — e ia anotando tudo em seu bloco. Depois de fazer inúmeras outras perguntas, desligou o telefone e me disse: — Vou fazer alguns contatos agora, mas você deve ir se encontrar com duas pessoas da equipe na Beneficência para ser orientado. Eu o escutava atônito. — Surgiu a possibilidade de um pâncreas para você e terei de ir pegá-lo em Cuiabá daqui a pouco (eram cinco horas da tarde). — Um pâncreas já, para mim? — Sim, você deve ir para o hospital à noite para fazer os preparativos, pois seu transplante provavelmente será amanhã pela manhã. Levantou-se e se despediu de nós. Quando chegamos à sala de espera, ainda com outros pacientes, além de João e Mônica, contei o que ocorrera lá dentro. Todos ficamos sérios. Eu estava emocionado, morrendo de medo e excitação. Que ironia, não? Que coincidência, um espanto! Já na rua, João, Mônica e nós iríamos para lugares completamente diferentes. Assim, nos despedimos e recebi os habituais boa sorte, abraços, coragem... Coragem? – 162 – Eu e Sônia fomos à Beneficência Portuguesa, conforme o combinado e, quando saímos, já examinado e completamente orientados do que deveríamos fazer, entramos num táxi que nos levaria à casa de Flavia, para tomarmos um banho, pegarmos roupas e irmos para o hospital, o São Camilo. Quando entrei no carro, esqueci o motorista e, apertando a mão de Sônia, chorei abertamente. Eram 45 anos de diabetes, com todos os seus sintomas, que poderiam estar indo embora. Eu estava me encaminhando outra vez para uma nova vida. No domingo, acordei no CTI. Isso era de praxe, sabia que iria acontecer. Eu ficaria três dias lá. Acordei é modo de dizer, pois os sons em volta eram quase incompreensíveis. Uma enfermeira ao meu lado me examinava e dizia que estava tudo bem, informando também onde eu me encontrava. Perguntei-lhe sobre minha taxa de glicemia e, antes que ouvisse a resposta, adormeci. Fiquei menos que os três dias previstos e lembro-me de poucas coisas lá dentro. Eu estava sempre um pouco zonzo; só no finalzinho, quando já ia para o quarto, despertei mais um pouco, a ponto de ficar ansioso para o tempo passar e sair dali e também para fazer algumas perguntas para o Dr. Tércio. Estava estranhando o fato de às vezes alguém vir me aplicar insulina... Sônia, nas horas de visita, aparecia e também não sabia responder a tudo. Dr. Tércio fora descansar... Saíra na sexta-feira para captar o órgão em Cuiabá, voltara para fazer a cirurgia, ficara até as 23 horas do dia seguinte transplantando o órgão, e esse tempo todo... sem dormir? Foram 18 dias de hospital, boa parte dos quais não me sentia nada bem. Tomei um remédio para baixar a imunidade e não haver rejeição, algo muito forte que causava sonolência em alguns e delírios e mal-estar de todas as formas em outros... Em mim, entre outras coisas, causou apnéia. Completamente exaurido, tentava relaxar e dormir, mas, quando estava quase conseguindo, parava de respirar e tinha sobressaltos por isso. A coisa se tornou um inferno, não conseguia descansar. Acabei ficando no oxigênio que, embora melhorasse um pouco a situação, não foi capaz de resolvê-la. Só ao parar o remédio, que tomei durante uns dez dias, foi que consegui – 163 – ter, a custo, um sono reparador. Mas soube, e mesmo testemunhei, outros transplantados passarem tranqüilos por esse pós-operatório. Chegamos à casa de Flavia e Edu e eu ainda não estava muito legal, apesar de clinicamente bem, como diziam. O que não ajudava muito era uma glicemia alta, beirando os 400 após o almoço! Isso começou no hospital: tomava insulina, mas pouco para as necessidades de meu organismo. Minha médica clínica era a Dra. Regina Araújo e, a partir de então, iria me consultar com os dois: ela, na parte clínica e o Dr. Tércio, na pós-cirúrgica. Eles garantiam que o pâncreas transplantado a qualquer hora se manifestaria. Essa “qualquer hora” tinha um prazo aproximado de 40 dias, que foi ultrapassado. Minha frustração era imensa, apesar da esperança ainda enorme. Como sempre, fazia minhas “investigações extramédicas”, perguntando a outros transplantados como fora a experiência deles e se conheciam casos parecidos com o meu. Soube de alguns, mas que tomavam quantidades irrisórias de insulina de efeito rápido, por vezes uma ou duas unidades, mas durante pouco tempo. Falaram-me de um que tomara insulina, também pouca, durante quase três meses, até o pâncreas “pegar” direito! Eu já estava completando meus dois meses e tomava muito mais insulina, 28 unidades, para um resultado irregular, dependendo do que eu comesse no dia. Todos os outros transplantados que eu havia consultado antes diziam-me que, logo após o transplante, mesmo dentro do CTI, a glicemia já havia atingido um nível bom. Alguns contavam que só puderam comer açúcar 40 dias depois do transplante, não porque a glicemia subisse, mas porque só aí o pâncreas havia “descongelado” totalmente. Todos em casa me tratavam com o maior carinho e preocupação. Eu tentava levantar o ânimo, e até conseguia algumas vezes, mas era óbvio meu sentimento de derrota. Inúmeras amigas haviam me prometido um pudim de leite condensado para o dia em que eu pudesse comemorar daquela forma. Sempre fui tarado nesse doce, mas não o comia havia anos, provavelmente mais de 15 anos! Na espera angustiante do pâncreas funcionar, tive ao meu lado aquele casal maravilhoso: Flavia e Edu. Ela, uma pessoa sempre alegre, cuja maior característica, pelo menos a mais óbvia, era sorrir, – 164 – gargalhar de nossas brincadeiras, e que gargalhada gostosa! Surgiu um mito entre nós de que ela não poderia entrar em um hospital, pois, quando olhasse para uma placa pedindo silêncio, daria uma gargalhada daquelas! Flavia tem lúpus e síndrome pós-pólio e resolve bastante bem a convivência pessoal e social com suas deficiências. Tinha uma vida independente da família, trabalhando e morando sozinha. Eu e Eduardo a conhecemos numa lista de discussão, realizada via e-mails na internet. Essa lista era um ponto de encontro, trocas de idéias, informações, experiências, e a maioria dos que dela faziam parte eram pessoas com deficiência ou familiares. Havia de tudo: paraplégicos, paralisados cerebrais, surdos, pessoas com osteogêneses imperfecta, HIV, síndromes diversas e... eu. Alguns amigos de lista não tinham deficiência alguma e estavam lá por prazer de conviver com as pessoas, curtir o grupo, que sempre foi muito bacana. O exemplo disso são Mônica e Eduardo. Edu casou com Flavia, paixão virtual confirmada na vida, coisa muito legal. Meu caso realmente não era muito comum, e eu buscava na Dra. Regina e no Dr. Tércio a razão disso. Eles insistiam para que eu esperasse, mas algumas sugestões como resistência do organismo à insulina, tempo de isquemia muito grande (período em que o órgão fica congelado entre a captação no doador e o transplante, no receptor) e outras explicações foram aparecendo. Qualquer certeza, porém, só o tempo daria. O órgão estava funcionando de alguma forma. Antes do transplante eu aplicava, no mínimo, 80 unidades de insulina por dia e agora estava recebendo 28 unidades. Mas fazer uma cirurgia dessas só para isso? Eu confessava a Sônia, e de vez em quando a Flavia e Edu, minha frustração, mas sabia que cada um de nós tivera suas expectativas e que estávamos todos decepcionados. Quando saí da lista de discussão e, ao me despedir dos amigos no Rio, tudo era festa e esperanças... Todos ainda aguardavam algo, eu já estava desanimando... No dia 19 de outubro foi constatada uma ligeira baixa de açúcar no sangue. Assim, no dia do meu aniversário, 20 de outubro, ganhei um presente: apliquei em mim duas unidades a menos das 28 que estava tomando e ainda estava sentindo que poderia diminuir mais! Aos poucos, dia-a-dia, fui retirando a insulina... o milagre estava acontecendo? A casa estava mais feliz, o clima era outro. Havia – 165 – medo também... podia ser algo passageiro, ou mesmo parar numa quantidade qualquer de insulina, e eu não conseguir zerar! Mas, cheio de medo, inseguro e tudo o que alguém pode sentir numa situação como a minha, meu coração estava em festa! Cerca de duas semanas depois parei de tomar insulina, meu Deus! (Essa expressão é só simbólica, pois sou agnóstico, ou quase!) Continuava a fazer dieta, uma dieta de açúcar, mas tinha de manerar, pois mesmo sem açúcar, se exagerasse na comida, a glicemia subia. Se comesse massas ou qualquer coisa “pesada”, chegava a 280... Duas horas depois do almoço eu atingia, e isso acontece até hoje, meu pico de glicemia. Esse pico, porém, abaixa rapidamente quando o novo pâncreas produz, meio atrasado, mas produz, a quantidade de insulina para que tudo volte ao normal. Realmente tenho resistência à insulina e minha diabetes parece que se transformou na do tipo 2, também chamado de diabetes de adulto, ou não insulino-dependente, pois a controlo com dieta e com remédios específicos. Quem tem diabetes do tipo 1, normalmente adquirida na infância ou adolescência, não produz nada de insulina no pâncreas. Agora não sou mais do tipo 1, visto que tenho insulina própria; será que posso me considerar do tipo 2? Pelo menos uma coisa acabou acontecendo: passei da diabetes infantojuvenil para a de adulto; cresci! Brincadeiras à parte, o transplante de pâncreas tem se mostrado um sucesso para quem o faz. Eu mesmo passaria novamente por todas as apnéias, por todos os medos, até pela frustração de não ter conseguido tudo o que queria com a cirurgia, para conquistar a qualidade de vida que tenho hoje: sem baixas e altas severas periódicas, sem altas e baixas não severas mas freqüentes, todas as picadas de exames e insulina, todo o stress de ser um diabético já sem controle razoável possível. Infelizmente, o transplante não representa a cura. Para mim é um tratamento excelente que acaba com os sintomas da diabetes. Paralelo a ele, entretanto, convivemos com o uso de remédios imunossupressores diários para impedir a rejeição do órgão. Esses remédios diminuem consideravelmente as defesas do organismo, baixando nossa imunidade e provocando infecções – 166 – oportunistas. Posso tranqüilamente adquirir uma otite ao ir a uma piscina de clube muito freqüentada, pois o cloro não é garantia suficiente para quem tem suas defesas diminuídas. Dessa forma, o transplante de pâncreas só é recomendado a pessoas que estejam em processo de alguma complicação crônica da diabetes, como perda de visão ou das funções renais, com problemas circulatórios nos pés, etc. Ele não serve para os diabéticos que estejam bem clinicamente, pois a imunossupressão será um problema maior que apenas controlar a glicemia. Não sei se amanhã, com as pesquisas de célulastronco, a diabetes terá cura definitiva, mas, com certeza, já começamos a vivenciar o futuro. O bom mesmo é não ser diabético, mas se sou, não posso dizer que não tentei superar o problema, certamente o maior de minha vida! Eu sempre quis ser pai, esse desejo sempre foi algo permanente em mim. Sônia, a princípio, não se entusiasmava com a idéia. Tinha medo de que nosso filho também adquirisse diabetes. Conversávamos bastante, sempre lhe dizia que, se eu gostava da vida mesmo com a diabetes, se conseguia realizar tantas coisas com ela, por que não um filho? Pedimos orientação à Dra. Ing e ela, apesar de esclarecer que a possibilidade existia, deu-nos a maior força. Era uma “cantada” quase diária e Sônia, depois de estarmos três anos juntos, acabou por “esquecer” a tabela ou qualquer outro tipo de prevenção. Plum, foi de primeira! Eu fiquei mais criança do que a que acarinhava em Sônia, minha felicidade era total. Beijava sua barriga no maior contentamento e ainda brincava, sob os tapinhas e reclamações da mãe: — Vou te amar mesmo que não seja um homenzinho! Avisei todo mundo. No trabalho, vendo minha cara quando eu falava do assunto, diziam que eu seria um pai muito bobo. Eu já era um pai bobo! Porém, no terceiro mês de gravidez, Sônia teve um aborto espontâneo. Foi uma noite chocante. É difícil tentar transmitir a alegria e a felicidade, mas esse tipo de dor é simplesmente – 167 – inalcançável pelas palavras. Imagino como isso deve doer tão mais fundo para as mulheres! Senti isso na voz de Sônia, em sua dor física, em sua impotência, em tudo o que vinha dela. Sei que essas coisas servem para crescermos, mas precisavam acontecer? No entanto, do mesmo jeito que a vida vai, a vida vem... e renascemos. Dr. Hugo disse-nos que não havia sido nada grave, uma má formação do feto, algo nada incomum, e que deveríamos tentar nova gravidez o mais rápido possível. Apesar da dor e mesmo por causa dela... tudo recomeçou. Até o terceiro mês nada de festa entre nós. No quarto mês já passamos a ficar mais esperançosos e, quando a barriga começou a aparecer de verdade, quando pudemos ver o sujeito lá dentro na ultra-sonografia, os sentimentos estouraram novamente. Depois escutei o coração dele batendo forte na barriga de Sônia. Era a vida, e eu soltava fogos de incontrolável alegria. Soubemos, porém, que o parto poderia ser prematuro, e Sônia começou a tomar umas injeções para que o pulmãozinho se formasse com mais rapidez. Ser prematuro não passava de uma possibilidade, mas retomamos um pouco nossas preocupações. Porém, sempre fui positivo em meus pensamentos, mesmo com tantos sinais para me acautelar. Aquela barrigona da Sônia conversava comigo, aqueles chutes eram inequívocos, o cara saberia jogar futebol! Pensei logo em lhe comprar um bonequinho de pano com a camisa do Flamengo, tinha de começar a educá-lo o mais cedo possível! Cinco dias depois de eu ter feito 32 anos, o sujeito resolveu vir prematuro ao mundo e da forma mais rápida possível. Chegamos à maternidade perto das 23 horas, e o sujeito mais lindo e bacana de nossa existência nasceu à meia-noite, porém, como era o primeiro dia do horário de verão, ficou registrada 1 hora. Eu ficara sozinho na sala de espera, enquanto Dona Yedda, mãe de Sônia, estava no quarto que ocuparíamos após o parto, arrumando algumas coisinhas. Sozinho naquela sala de espera, sem outro pai para arrancar os cabelos junto comigo, num silêncio absurdo para uma maternidade onde, pensava eu, deveria haver inúmeros gritos de bebês... “Bem, mas já está na hora de criança dormir mesmo”, refletia como quase um novo pai. – 168 – De repente, escutei um berro de neném e quase desabei. De tanto andar para lá e para cá pensando, quase vivendo o parto lá dentro com Sônia, me perdi dos bancos onde eu poderia me sentar, e olha que estava precisando, pois minhas pernas não me obedeciam mais. Eu sou um bobo mesmo, não sirvo para isso, pareço um louco! Passou uma enfermeira que vinha da direção do grito de criança e perguntei: — Por favor (pelo amor de Deus, por todos os seus filhos, pais e amigos), sabe alguma coisa de um parto que está sendo realizado na direção de onde você veio? A voz da enfermeira parecia a de quem estava sorrindo: — Não está escutando esse garotão chorando? É seu filho! — e saiu. Fiquei novamente sozinho, chorando, chorando, chorando, acho que até babava. Meus braços tremiam, minhas pernas tremiam, meu coração tremia, eu todo tremia. Meus ouvidos, aguçados e atentos ao próximo berro, não queriam perder um detalhe de suas manifestações de recém-nascido, como se fosse possível naquele silêncio total eu deixar de ouvir qualquer som. Sorria e chorava, chorava e sorria... A enfermeira passou novamente, eu quase caí de vergonha, minha aparência devia ser lastimável, apesar de feliz: — Minha mulher, como está? — Ótima, foi um parto normal e supersimples, tudo maravilhoso, o senhor não precisa se preocupar com coisa alguma, pois os dois estão bem... A mulher não me dava tempo nem de agradecer, a porta batia e ela sumia de meus ouvidos. Dona Yedda veio do quarto e pediu notícias, na mesma hora em que o berro ressurgiu... — Está escutando essa vozinha maravilhosa? É seu neto, ele está ótimo, e Sônia também, vovó Yedda! – 169 – Gosto bastante de minha sogra, mas nunca mais repetimos o que aconteceu naquele dia: nós nos abraçamos bem forte, chorando, como se estivéssemos presenciando um milagre. Dra. Maria Helena, a pediatra que saiu com nosso rebento da sala de parto enquanto Sônia era levada numa maca a seu lado, perguntou-me se eu queria pegar meu filho. — Sim, mas tenho medo, nunca segurei uma criança, ainda mais com minutos de nascida... Mas quero, quero mesmo! — Junte os braços dobrados que eu o colocarei neles. Só retiro minhas mãos quando você o acomodar bem. O moleque ficou em meus braços, um ser de quem eu mal conseguia sentir o corpinho com tanto pano o envolvendo. Eram muitos cueiros, parecia uma pequena mumiazinha. Apertei-o ligeiramente contra meu peito. Não podia colocar aquela mão suja de cigarro em seu corpinho. Não sei explicar como, mas eu o enxergava nitidamente... Eu o via olhando para mim, me observando. Foi então que a médica me pediu: — Por favor, levante a cabecinha dele, está um pouco baixa. Eu, puxando para cima seu corpinho e continuando a contemplar o rostinho daquele ser amado, fui, então, trazido de volta à realidade... — Você está levantando os pezinhos, levante o outro lado, por gentileza. Puxa, será que tenho de lembrar a todo mundo que sou canhoto? Bem, já me acostumara a ser diferente e, sendo assim, como poderia escolher um nome comum para meu filho? Tadzo gosta de seu nome, mesmo que tenha de soletrá-lo para que o entendam: T-A-D-Z-O, Tadzo. Este nome credito ao filme Morte em Veneza, do cineasta italiano Luchino Visconti, que assisti quando tinha 19 anos. O filme é de uma plástica belíssima, como tudo que Visconti fazia, música deslumbrante e diálogos raríssimos. Mas não foi o filme que – 170 – mais me marcou, a não ser pelo nome de um de seus personagens, Tadzio, que aparecia na legenda (nessa época eu ainda enxergava), mas eu nunca conseguia escutar o “i” na pronúncia dos outros personagens, e achei a sonoridade de Tadzo mais bonita de que de Tadzio. Assim, como Sônia aprovou minha idéia e eu era apaixonado por esse nome... Tadzo Queiroz está aí curtindo sua guitarra e o nome também. Tadzo garante que nunca sentiu falta da visão que não tenho. Sempre me percebeu como um pai tão presente e tão ausente quanto os pais de seus amigos. Contou-me que quem nota minha cegueira são seus colegas, especialmente quando passam por mim e eu estou teclando no computador. Não entendem por que meu teclado não é especial, em Braille, e não associam o fone de ouvido que uso para escutar o sintetizador de voz à leitura da tela através de som. Aliás, todos ainda estranham isso, mas é uma história que fica para depois. Eu, no entanto, por vezes me questionei se a visão não permitiria que eu me aproximasse mais dele. Acompanhá-lo em certas coisas que ele só fazia com o avô, como ir ao clube jogar bola, empinar pipa no aterro do Flamengo, correr por um lugar seguro... Entretanto, joguei muita bola no corredor do apartamento: a porta do último quarto e a porta da sala eram os gols. Também engatinhei atrás dele apostando corrida para ver quem engatinhava mais rápido... ele dava gritos de alegria, me emociono só de pensar. Havia uma brincadeira que também fazíamos ainda quando Tadzo engatinhava: ele ia na frente fazendo um caminho com várias cartas de baralho e não podíamos encostar os joelhos nelas... Ele dava “piruetas” na sala cruzando os caminhos, íamos para o corredor voltando e ele sempre olhando para trás para ver se eu estava fazendo tudo direitinho, ou seja, seguindo o caminho traçado por ele. Eu ia seguindo as cartas tocando-as com as mãos. Acho, porém, que, se a cegueira diminuiu de alguma forma meu contato com Tadzo, ela não é a única responsável por isso. Com ele ainda pequeno, comecei a perder as funções renais e tive de começar a fazer hemodiálise... Vivia passando mal, indisposto, vomitando 300 dias por ano, cansado. Com certeza, foi um período muito difícil em minha vida. – 171 – As lacunas de presença masculina eram preenchidas, então, pelo avô, José, padrasto de Sônia, e pelos pais de outros amigos. Lacunas? Por vezes, confusões entre crianças, brigas de mais novos com mais velhos, lá ia a Sônia resolver. Eu até poderia ir junto, ou mesmo ir sozinho, mas talvez minha insegurança não tenha permitido. Certamente havia limites meus, não totalmente da cegueira ou da saúde, mas como saber? Hoje nosso maior contato é através da informática e da música. Ele, desde pequeno, se interessa por computadores. Já fez cursos de manutenção de micros, conserta computadores dos amigos e começou, através destes, a conseguir uma clientela que passou a lhe pagar. Ele faz isso com a maior boa vontade, sente o maior prazer. Assim, quando o assunto é micro, hardwares e softwares, conversamos por “horas”. O cara foi gostar também das bandas de música internacionais de minha época: Pink Floyd, Black Sabbath, Led Zeppelin, Deep Purple, Scorpions, Queen, Van Halen, e de novos guitarristas também, que passei a conhecer graças a ele: Yngwie Malmsteen, Joe Satriani, Steve Vai... Temos um bom relacionamento, e é isso que importa. Só tem um “probleminha” entre nós: quando alguém lhe pergunta qual o seu time, ele diz que é ferrarista! Ele é flamenguista, mas de araque! Os sonhos vão se realizando e até nos esquecemos de que foram sonhos. Criamos outros para termos mais sonhos. Não tem como ser diferente, vive-se disso! – 172 – Amar a Vida por Inteiro Uma ladeira íngreme, onde os carros sobem com dificuldade, mas descem engrenados e freados, impondo respeito e exigindo atenção dos motoristas e acompanhantes. Vínhamos da praia, eu e Kleber, numa tarde despretensiosa, e íamos em direção a alguma cascata para curtir o final de tarde, cascata, aliás, que até hoje não conheci. Foi na Ladeira dos Guararapes que sofremos o acidente de moto que me deixou de cama muitos meses, que me fez pensar em minha vida e a querer contá-la. Quando fizeram os exames necessários para operar minha perna, descobriram também que eu estava com uma ligeira perda das funções renais, coisa discreta, mas da qual Dra. Ing começara a cuidar logo após minha recuperação do acidente. Passei de 1985 a 1995, dez anos e alguns meses, fazendo um “tratamento conservador”, uma dieta extra, além da de diabético, para que meus rins permanecessem filtrando o sangue o melhor possível. No final, porém, eu já estava pedindo arrego, querendo mudar o tratamento para algo mais eficaz, pois minha vida estava um inferno. Todo intoxicado pela falta de filtragem conveniente, acabava expulsando parte dessas toxinas em vômitos quase diários, cansado demais para carregar meu corpo daqui para ali, perdendo minha alegria e humor característicos, pois a vida estava ficando séria demais. Dra. Ing, percebendo que estava na hora de eu ser encaminhado para uma hemodiálise, enviou-me para o Dr. Walter Gouveia, da Clínica de Doenças Renais, que, em pouco tempo, colocou-me para fazer o novo tratamento. – 173 – Na hemodiálise, o sangue passa por um dialisador e um banho químico, para ser limpo, e é devolvido ao corpo. A primeira vez em que fiz hemodiálise saí de lá como um pássaro recém-preso numa gaiola que, ao se perceber solto novamente, sente-se de volta ao lar. Parecia que havia tirado o peso do mundo das costas, que minha saúde voltara, que eu, novamente, estava vivendo. Infelizmente, foi só no início. Aos poucos comecei a sentir o que a maioria das pessoas numa hemodiálise sente, ou seja, que aquele tratamento não é para viver, mas apenas para sobreviver. Com o tempo, parei de urinar, pois a evolução de minha nefropatia diabética, responsável pelas perdas de minhas funções renais, acabou por anular totalmente meus rins. A turma que dialisa o faz justamente por isso, por seus rins não estarem mais cumprindo suas funções. Assim, a máquina, além de filtrar as toxinas do meu corpo, filtrava também os líquidos em excesso existentes no organismo. Em outras palavras: a máquina “urinava” por mim. Dessa forma, entre a saída do centro de diálise num dia e a volta dois dias depois, eu “engordava” de três a cinco quilos de puro inchaço líquido, que eram retirados nas quatro horas e meia de diálise feitas na máquina. Meu corpo era uma sanfona inchando e esvaziando, inchando e esvaziando... Eu tinha câimbras como um atleta que perdeu muito líquido num jogo... Éramos 16 pacientes na maior sala de diálise da clínica. Enfermeiros e médicos especializados viviam rondando a sala e nos atendendo durante esse tempo. O fato de alguns de nós passarem mal durante a diálise não impedia que fizéssemos amizade, torcêssemos uns pelos outros, xingássemos juntos o governo ou a clínica quando nos faltavam medicamentos ou fazíamos a diálise com um dialisador já muito usado, contássemos piadas, brincássemos uns com os outros, lêssemos muitos livros e jornais. Graças à camaradagem entre nós acabávamos até por nos divertir. Durante esse tempo, mantive, pela internet, contato com um diabético que passara pelo mesmo processo que eu, só que havia feito um transplante de rim... Luiz Fernando da Silva Constanza, era este seu nome, feliz com seu feito, sempre me dizia: – 174 – — Só reconhece o céu quem já passou pelo inferno. Aos poucos foi “cochichando” em meus ouvidos para que eu prestasse atenção nos diabéticos cujo tempo de diálise era maior que o meu... Só havia dois na sala. Nós passávamos por apertos de glicemia pelo fato de a máquina, além de retirar as impurezas, retirar também o açúcar do sangue, assim, vivíamos tendo baixas glicêmicas... Dr. Walter me aconselhou a entrar sempre com a taxa mais alta, mas nem sempre era suficiente. Fui pesquisando, “como quem não quer nada”, por que a diálise era mais difícil para diabéticos e percebi que, no processo de limpeza do sangue, havia um banho químico cuja base era o cálcio, assim, comecei a ter calcificações pelo corpo. Primeiro aconteceu em minha córnea, depois no coração, adquirindo o que se chamava antigamente de “sopro no coração”. Foi aí que me dei conta de que, além de meus “entupimentos” nos vasos, veias e artérias, provocados pelo excesso de açúcar no sangue, agora estava também me entupindo por excesso de cálcio. O primeiro diabético que conhecera naquela sala era um sujeito um pouco mais velho do que eu e que já fazia diálise há quatro anos. Foi o primeiro a falecer durante minha estada lá. Conheci mais dois que tiveram o mesmo fim e comecei a ficar preocupado... A solução, como Luiz Fernando sempre dizia, era o transplante, o mais rápido possível. Foi assim que, estimulado por esse amigo da internet, pela Dra. Ing e pelo Dr. Walter, fui a São Paulo e me inscrevi para consultar a equipe do Hospital das Clínicas, com a finalidade de entrar na lista para transplante de rim de cadáver de lá. Os diabéticos tinham preferência nessa lista e saí do HC animado a tentar me inscrever, também, na lista da Escola Paulista de Medicina. Marquei hora no consultório particular do médico que me indicaram, porém, ao me examinar, ele, que diziam ser o “papa” do assunto, logo descartou a possibilidade do transplante, a partir de algumas apalpadelas em meu pé e pernas e pela ausculta do coração. Saí de lá chocado. O cara nem mesmo me pediu para fazer exames de laboratório, descartou-me numa simples consulta. Dra. Ing e Dr. Walter também ficaram sem – 175 – entender e me disseram para não desistir, pois, além da chance de eu entrar na lista do HC, ainda poderia aparecer, por que não, um doador para mim? Na minha família, tanto da parte de minha mãe e de minha irmã como da de Sônia, todos tinham tipo sangüíneo diferente do meu. Luiz Fernando também se indignou: — Nós vamos fazer o seu transplante, você vai ver! Ele era médico pediatra e tinha contato próximo com o chefe da equipe de transplante do HC, onde fizera sua cirurgia... Meus amigos me animavam, dizendo que eu conseguiria transplantar, mas eu havia recebido um banho de água fria do médico paulista. Só mesmo o Dr. Walter, meu nefrologista, que conhecia minhas condições físicas, e a Dra. Ing, minha diabetóloga há anos, realmente me reanimaram... Eram muito responsáveis e exigentes para que, vendo alguma possibilidade de um transplante ser ruim para mim, não frearem meu desejo. Pouco depois, recebi um telefonema de um amigo também cego, Carlos Augusto Pereira, que me disse, sem se preocupar em me preparar antes: — Falei com meu padrinho, que é médico, estou seguro do que quero: vou te doar meu rim. Quantas vezes já contei que chorei neste livro? Sei que muitas, mas não tem jeito: chorei. Uma sensação dessas é inigualável, como traduzi-la? Explicando que a amizade existe? Que existem pessoas generosas, grandes seres que sofrem o teu sofrimento e que sabem dizer, na prática da vida, que gostam de você? Fizemos todos os exames pedidos pela equipe de transplante do CDR. Meus exames foram feitos através do plano de saúde de minha empresa, já o de Carlinhos eu mesmo paguei, com exceção dos de sangue, pois um amigo de seu padrinho era sócio de um laboratório. Chegamos ao último exame, o de compatibilidade genética, depois do qual, se tudo estivesse OK, seria marcada a data da cirurgia. – 176 – — Não somos compatíveis? Por quê? — Desde o início vocês não eram compatíveis, e isso poderia ter sido observado simplesmente através do tipo sangüíneo: você é do tipo O e ele é do tipo B! — Como isso é possível? O Carlinhos sempre soube que seu sangue era do tipo O e temos seu exame de laboratório, conferido pela equipe de transplante, que indica o tipo dele como O! — dizia eu enlouquecido. — Sei o que quer dizer... Por ser incomum chegarem aqui, para fazer esse exame, pessoas que não têm o mesmo tipo sangüíneo, eu o repeti. Tenho absoluta confiança no resultado! Imagine o que é receber uma notícia dessas às portas de realizar o que mais se desejava na vida? Imagine mais: um cara de boca aberta e olhando para a mulher, e olhando para a mulher, e olhando. Um cara de boca aberta chocado, um cara, simplesmente, de boca aberta sentindo uma perda imensa. A notícia se espalhou entre os amigos, pois muitos acompanhavam aquele processo. Carlinhos chegou a almoçar com meus colegas de trabalho, que o queriam conhecer; tudo era festa e alegria, e um exame errado de um laboratório particular tornou-o um desastre. Carlinhos parecia ter sentido mais do que eu: pedia desculpas, dizia de sua vontade de doar seu órgão para mim, como que aquilo poderia nos acontecer? Ele pedindo desculpas era impensável... Sua voz era de quem tinha me doado a morte e, até o tempo passar um pouquinho, ficamos nos acostumando à nova realidade de que nada acontecera como imagináramos. Na sala da hemodiálise também foi difícil. Quando comecei a falar de transplante, alguns amigos também se animaram e, logo depois de eu começar meus exames, apareceram na sala histórias de entradas em listas para transplantes, a nova lei de doação de órgãos, etc. Continuava a trabalhar no SERPRO, que me apoiou mesmo faltando três meios expedientes na semana. Era o que segurava minha cabeça também... pois eu chegava a varar a noite até cinco da manhã para entregar as tarefas no prazo certo. Sônia só faltava me matar! Além disso, o SERPRO estava bancando totalmente meu – 177 – transplante, numa época (1997) em que os planos de saúde ainda se negavam a isso. O processo, porém, acabara com um exame de tipagem errado... Antigamente dizia-se, quando o cara tinha uma “boa estrela”, quando dava sorte na vida, que o sujeito havia nascido com “a bunda virada pra lua”. Não posso dizer, observando pelo lado mais difícil de minha história, que tenha acontecido isso comigo, mas, em alguns aspectos, poucos tiveram minha sorte mesmo. Digamos que eu nasci com os “rins virados pra lua”. Marilene era uma colega de trabalho da qual eu gostava muito. Tínhamos uma amizade tranqüila, de conversas diversas e trocas de informações técnicas que o cotidiano do trabalho produzia entre nós. Não costumávamos freqüentar nossas casas ou lugares comuns, a não ser em almoços comemorativos da empresa e coisas do gênero. Eu mesmo não costumava mais ir a lugares para me divertir, pois com minha saúde do jeito que estava não me sentia impelido a isso. Durante muito tempo, minhas distrações foram a família, o trabalho, a internet e os livros, gravados em fitas cassete. Conheci Marilene em 1981, quando entrei para o SERPRO e ela ainda enxergava um pouco. Viera da filial de Belo Horizonte para se fixar no Rio. Em nossas conversas percebia que nossos gostos, conceitos e valores de vida eram bastante semelhantes, e eu a admirava também por ter enfrentado a maternidade, mesmo sendo solteira. Quando lhe contei que Carlos Augusto não poderia me doar seu rim, ela me disse que, se não fosse pela filha, seria minha doadora. Mas, como saber se no futuro sua filha não precisaria também do seu rim? Como ter certeza absoluta de que sua doação não traria problemas de saúde futuros que a comprometessem? Muitas pessoas se justificavam, como se houvesse necessidade, por não poderem me doar o rim. Jamais pedi que me fizessem uma doação! Mas em Marilene eu percebia o mesmo sentimento que Carlos Augusto me transmitia: uma espécie de certeza interna, de desejo sincero, uma vontade imensa de me ajudar. – 178 – Certo dia, no trabalho, ela me parou para contar um sonho que tivera à noite: — Marco, eu sonhei que estava em um ambiente, não sei qual ao certo, sentindo muita dor em um dos lados do meu corpo. Quando olhei para a frente, vi alguém vestido de branco e com um rim enorme nas mãos, eu até via o rim pulsando... E o sujeito do sonho me disse: “Esse rim é maravilhoso, é muito saudável e, durante muitos anos, vai deixar também saudável quem o receber”. E ela continuava sua descrição: — Durante o sonho eu tentava saber quem iria receber meu rim. Preocupava-me por poder ser minha filha... Só momentos antes de acordar eu tive certeza de quem era: eu te vi alegre e saudável com o meu rim dentro de você, e eu acordei na maior felicidade, com um bem-estar maravilhoso! — Puxa, Marilene, acho que essa possibilidade de doar seu rim abriu muitos sentimentos dentro de você, para chegar a sonhar e dizer que foi um sonho bom... Afinal, você estava sentindo até dor e preocupação! Além disso, não há muito o que possamos interpretar de seu sonho, pois ele traduz claramente seus sentimentos e tudo o que já sabemos, até o desejo de ser minha doadora. — Foi bom, sim, Marco, porque ele me mostrou o que vou fazer: quero ser sua doadora. — Como? Que disse? — perguntei tentando entender se não era alguma brincadeira ou se eu viajara no sonho de Marilene e ainda não tinha aterrissado. Ela iria doar seu rim impulsionada pelo sonho? — Isso, Marco, eu decidi te doar meu rim — repetiu séria. Eu fiquei calado, sem saber a próxima coisa a fazer ou a pensar. Duas sortes dessas, Carlos e Marilene, uma pessoa não costuma ter. Se eu fosse contar ainda Sônia e Tadzo, então... Isso não é um romance, aconteceu, é minha vida! Recomecei nossa conversa, então, gaguejando um pouco: — Que-quem já sa-sabe disso? – 179 – — Ora, Marco, você! — E-e sua família? — Sou dona do meu nariz, mas vou comunicar a todo mundo, tenho certeza de que respeitarão e aprovarão minha decisão. Marilene Lúcia Garcia, de 1,50 metro de altura, cega, mãe, solteira, programadora de computadores do SERPRO, filial Rio, cujo endereço de moradia até hoje não tenho, doou-me seu rim na Casa de Saúde São José no dia 17 de setembro de 1998, o primeiro presente mais importante de minha vida depois de meu filho! No dia anterior ao transplante, chegamos à casa de saúde, os três juntos: Marilene, Sônia e eu. Eu e Marilene cumprimos todos os pré-operatórios e nos reunimos novamente em meu quarto para conversar. Dr. Marcos Sandro Vasconcellos, um dos quatro médicos da equipe de nefrologia, avisara-me de que, se eu não parasse de fumar, ele não permitiria minha operação. Eu fumava “somente” desde os 11 anos e estava com 42. No momento, minha rotina eram dois maços por dia, e ele pensava que eu já tinha parado de fumar há alguns dias. Eu descobrira, através de outro médico, o pneumologista Rogério Rufino, que eu estava com asma e tinha adquirido enfisema pulmonar. Simples, não? Decidira que o último cigarro seria fumado na porta da casa de saúde, mas, como não se desliga a dependência de uma hora para outra, quando Sônia foi ao térreo fumar ao ar livre e Marilene foi até seu quarto ver algo, escapei até o banheiro e fumei, agora, sim, meu último cigarro. Saí do banheiro satisfeito pela travessura, pelo menos minha ansiedade diminuíra um pouco. Quando deitei na cama novamente, achando que nada poderia acontecer, uma vez que já raspara o que tinha de ser raspado e já tomara os remédios que tinha de tomar, alguém entra pelo quarto: — Mas... que cheiro de cigarro é esse aqui na porta do banheiro? — Cheiro de cigarro, Dr. Marcos Sandro? — Sim, e já está vazando aqui para o quarto também! Você fumou, Sr. Marco Antonio de Queiroz? – 180 – — Euuu? Logo eu? — Quem fumou então? — Sônia, ela fuma e, como não tem lugar no andar para fazer isso, ela deu uma chegadinha no banheiro. Qual o problema, Dr. Marcos Sandro? Eu havia escovado os dentes e lavado mãos e rosto para que meu crime fosse perfeito. Além disso, tinha dado uma abanada com a toalha no banheiro e deixado a porta fechada, mas... Infelizmente, naquele exato momento, Sônia, a ré, entrou na cena do crime com a inocência de um anjo: — Boa-noite, Dr. Marcos Sandro! — Boa-noite? Como posso te dar boa noite se você fuma no banheiro do quarto de um sujeito que tem problemas de pulmão e que vai transplantar amanhã pela manhã? Silêncio... Eu torcendo para Sônia entender o que ela já tinha entendido... Dr. Marcos Sandro continuou e estava muito bravo... Da parte de Sônia só silêncio.. Dr. Marcos Sandro me examinou, deu-me instruções e informações e foi ver Marilene... — Desculpe-me, Sônia... — Isso foi uma injustiça, eu não mereço. — Você tem toda razão, mas não vai mais acontecer, parei de fumar, juro! Eu, que nunca conseguira me imaginar sem um cigarro na mão, parei de fumar, realmente, naquele dia. Depois, com o tempo, ríamos a valer desse episódio, mas na hora a coisa ficou feia mesmo... Eu me senti um traidor, e logo de quem! Quando acordei pela primeira vez no CTI, no dia seguinte, Dr. José Suassuna é quem estava ao meu lado, averiguando uns papéis... — Sente-se bem? — Acho que sim, parece que dormi bastante, mas vou acordar! – 181 – — Sinta-se feliz, Marco, seu transplante foi um sucesso! Seu novo rim já está dialisando a todo vapor e sua taxa de creatinina está fabulosa. Todos estamos muito contentes. — Marilene está bem? — Aquela menina? — sorriu. — Pequenininha daquele jeito e tem um rim maior que você, um rinzão! Já está no quarto cheia de analgésicos. Lembrei-me de que, para retirar o rim de um doador, uma de suas costelas é cortada pela metade, sendo conhecido que a dor de quem doa é bastante superior à do receptor. Até hoje Marilene se lembra do sonho, da dor que sentia de um lado do corpo, do rinzão pulsando na mão do médico, e ela feliz por ser eu o receptor. Foram emocionantes aquelas informações que recebi ao acordar no CTI. Passaram por minha cabeça as palavras de Luiz Fernando: “Só reconhece o céu quem passou pelo inferno”! Eu ainda no CTI, todo cortado na barriga, cheio de anestesia, com tudo que eu deveria estar sentindo, já reconhecia o céu, é imediato. A vida continuava, agora bem melhor. Mesmo com a imunossupressão, problema que enfrenta todo transplantado para manter o novo órgão, meu corpo estava mais leve, não existia mais razão para vomitar sempre, eu não dialisava mais quatro horas e meia três vezes por semana, mas a cada minuto, a cada segundo, a cada líquido que ingeria. Até hoje é assim, obrigado Marilene, obrigado! Tadzo, depois de meus dois transplantes, brincava comigo que eu iria vender órgãos na feira, porque, curiosamente, na enorme maioria das vezes, não se retira o órgão original para colocar o transplantado. O novo órgão é colocado na barriga e, no meu caso, tenho agora o pâncreas à esquerda e o rim à direita dela, além dos antigos que continuam em seus lugares originais. Assim, tenho três rins e dois pâncreas... No caso dos rins, isso é apenas uma praxe para não se mexer na costela do receptor, aumentando o tempo cirúrgico desnecessariamente. Deixam-se os sujeitos por lá mesmo, sem função. No entanto, o pâncreas original não pode ser retirado, pois se houver – 182 – rejeição, não se fica sem as demais funções do pâncreas, que não é só a de produzir insulina, mas o suco pancreático e outras substâncias necessárias. Dessa forma, continuo com o antigo que produz tudo menos a insulina, enquanto do novo eu só aproveito a insulina, jogando fora, pela urina, as substâncias extras para não haver duplicata. Os amigos de dentro e de fora do trabalho até hoje brincam comigo, dizendo que, pelo rim transplantado ser de uma mulher, eu passara a urinar sentado. Depois também veio o pâncreas... de outra mulher. Agora comentam que, se eu transplantar novamente e se a cirurgia for abaixo da barriga, vão passar a me chamar de Márcia. Tudo bem, sem preconceitos, mas acho que não vou transplantar mais não! Minha vida, a partir de determinada etapa, foi influenciada por computadores. Desde minha sobrevivência financeira, como técnico em informática fazendo programação, até mesmo na criação de novas amizades. Eu diria até que a maioria das amizades que tenho hoje foi criada na internet. Posso participar de listas de discussão por e-mail, de chats e de programas de comunicação por voz, navegar na internet, fazer compras e até mesmo criar meus sites. O primeiro que fiz, em fevereiro de 2000, existe até hoje e eu cuido dele com o maior carinho. É o www.bengalalegal.com. Era para ser um site totalmente pessoal, onde eu falaria de cegueira, diabetes, transplantes e outras coisas a partir de minha experiência. Só que a internet me fez conviver com pessoas por vezes tão diversas e tão diferentes de mim que passei a relatar a vida dessas pessoas também. O “Bengala Legal” é totalmente acessível a pessoas cegas e àquelas que utilizam teclado para navegação. Tecnicamente, o site foi feito por mim, mas foi Madel Rosa, uma amiga que enxerga, quem decorou, escolhendo as cores e distâncias entre links... Na verdade, eu até escolhi as cores, mas ela traduziu o que eu queria, fazendo-me experimentá- las na página até encontrar a ideal. Valeu Madeu! Eu não preciso de um teclado em Braille, pois todo teclado comum possui, nas letras “f” e “J”, um ponto em relevo e da cor do teclado na parte inferior. Assim, tendo essas letras com seus pontos como referência e colocando meus dedos indicadores nelas, posso ter o domínio de todo o teclado. – 183 – “O bom datilógrafo é aquele que não vê”; este ditado popular tem de ser atualizado, mas, independente de alguns teclarem com extrema rapidez e outros “catarem milho”, o acesso ao computador começa pelo teclado, pois nós cegos não utilizamos mouse. Para complementar esse acesso, há programas que são ledores de tela: posso ouvir o conteúdo de cada tecla que digito, cada palavra ou frase. Posso também ouvir o conteúdo de toda a tela ou partes dela, sem estar digitando e conforme eu queira. Dessa forma, podendo escrever e ler, os computadores criaram um novo sistema de escrita e leitura para cegos, que se transformou também em um grande sistema de informação, cultura, comércio e entretenimento, além do Braille. A primeira vez em que entrei num chat me surpreendi. Estava acostumado aos e-mails, em que se esperam “séculos” por uma resposta. No chat é tudo na hora... Cheguei a levar um susto, mesmo acostumado com informática havia anos. Era um chat especialmente feito para cegos, todo acessível, colocado no ar pela UFRJ (NCE) em convênio com a Rede SACI, de São Paulo. Hoje entram muitas pessoas sem deficiência, mas naquela época éramos todos cegos por lá e as brincadeiras rolavam: - Estou tomando um café, quem quiser levanta a mão! Ou: - Você está teclando de onde? São Paulo? - Não, do computador! - Se os bebês das pessoas comuns são trazidos pela cegonha, os dos cegos são trazidos pela ceguinha? Hoje essas coisas não têm mais graça, mas nos divertíamos muito. O mais surpreendente, no início, era conversarmos com cegos de todo o Brasil. Era uma emoção percebermos nossa presença nos diversos recantos do país. Eu ficava imaginando minha amiga sentada em frente ao computador em João Pessoa, conversando comigo aqui no Rio. Aí entravam colegas de Porto Alegre, Salvador, Brasília, Natal, Curitiba, Pato Branco, Ourinhos... Nosso amigo Salvador, de Porto Alegre, casando com Ligia, de Belo Horizonte... – 184 – Surpreendente! Todas as pessoas, independente de terem alguma deficiência ou não, foram sendo integradas na internet, que alterou costumes para todos. Todos? Os excluídos digitais ainda existem, e não só porque computadores e conexões são caros, mas porque muitas vezes somos literalmente esquecidos, ou mesmo desconhecidos, dos desenvolvedores de páginas e programas. Certa vez, ministrei um curso de acessibilidade na Unisys Rio, a pedido de uma colega cega da Data-Mec, Rita Gaudino. Os profissionais que enxergavam e que eram desenvolvedores de site da empresa e de outras empresas parceiras, ainda se adaptando ao nosso ledor de telas e a navegarem somente via teclado, coisa que desde o primeiro dia do curso eu já ensinava, às vezes se traíam; no meio de uma explicação, eu escutava um clique sorrateiro. - Quem está usando o mouse? - perguntava eu com voz de aborrecido. Escutava risadas cúmplices vindas de todos os lados... Em geral, era Jocelisa Christovam de Moura, a Jô: - Fui eu, mas foi um cliquezinho só... vício, sabe? Mas a experiência com uma coisa diferente ainda não havia atingido o ápice no curso... No terceiro dia, pedi para que todos os mouses fossem retirados, por sugestão de outro amigo cego, Paulo Romeu Filho, sujeito que mais entende de acessibilidade que conheço. Jô deu um grito quando descobriu: - Cadê meu mouse? Pegaram meu mouse! Você também está sem mouse, Leonardo? Horácio sem mouse? O que está havendo, uma revolução? As risadas eram gerais, mas eu sentia no ar que cada um imaginava, silenciosamente, como arrumar um “mousezinho” escondido! Mas as sugestões de Paulo Romeu, esse cara que considero genial, não haviam parado por aí, e eu as empreguei... Sempre era Jô a descobrir as novidades, pelo menos a única que falava em alto e bom som. Mas desta vez ela chegou a gritar: – 185 – - "Querido" professor, meu monitor está desligado, totalmente, nem o botãozinho da tela acende... Meu Deus, estou sem mouse e com o monitor desligado, o que é isso? Você não vai me dizer que... você não ousaria! - Qual o problema, Jô, faço isso todo dia! - Silêncio, MAQ, ele está falando! MAQ era eu, apelido que ganhei na internet, das iniciais do meu nome, Marco Antonio de Queiroz; “ele” era o ledor de telas... - Mas ele está falando desde antes de ontem, Jô! - Mas eu não precisava saber onde ele estava, era só olhar.... agora, que maldade, MAQ, só quero ver como vai ser! - Ora, Jô, você não vai ver, vai ouvir, ou vai ver ouvindo, se preferir assim! O silêncio na sala foi total... até que os ledores de tela de todos os micros começaram de uma só vez; foi uma zorra! Jô batia palmas para que os colegas parassem de acionar seus ledores, coisa que não aconteceu, e, atenta e agitada como os outros, começou a navegar no site que indiquei, totalmente acessível, como nós cegos fazemos. Confesso que senti uma satisfação emocionada ao perceber o entusiasmo dos participantes que, com minha ajuda, de Rita e Gaudino, dois colegas cegos que participavam do curso, iam descobrindo como navegar. Ao entrarem em outro site, propositalmente com erros de acessibilidade, mais satisfação ainda senti quando, trocando idéias entre nós, tornamos a página totalmente acessível, só que a colocando em outro endereço. Algo que está me entusiasmando cada vez mais na internet são os programas nos quais podemos nos comunicar por voz. A voz traduz a personalidade das pessoas, o jeito de ser, geralmente escondidos na escrita. Eu construo alguém dentro de mim, entre inúmeras manifestações, também por esse quesito superimportante que é a voz. O medo, o carinho, a tristeza, a irritação, a alegria, poucas vezes passam despercebidas nas conversas. Isso tanto pessoalmente quanto em um programa no qual possamos falar à vontade. – 186 – Encontrei pessoas interessantíssimas num desses programas, mas a que mais me incentivou a entrar e a permanecer cada vez mais tempo nele foi André Baldo, de Pato Branco, no Paraná. O Supermalavox, seu apelido, é um sujeito cego, de 1,30 metro, com uma deficiência óssea chamada osteopetrose, que torna os ossos mais densos que o comum... Apesar de mais duros, esses ossos se quebram com uma tremenda facilidade, pois são secos e sua estrutura predispõe a isso. André encontrou na internet um meio de se comunicar cada vez mais com o mundo. Conhece como poucos os programas utilizados por cegos e está sempre ajudando alguém a fazer algo, ou se divertindo com os amigos. Acabou se tornando um centro de referência no programa de voz, no qual muitos de nós aparecemos. Como André também sabe falar inglês, passei a conhecer Shawn, do Kansas, nos EUA, e Bachir, de Lion, na França, ambos cegos também, através dele. Brinco, por vezes, dizendo que existe uma "epidemia" de cegos na internet, e que é uma epidemia "internacional", pois Shawn por vezes aparece com outros cegos estrangeiros. Sua lista de contatos está perto da casa de 300 cegos em todo o mundo. Como cada um tem sua própria lista... cuidado, um cego pode invadir sua praia! Vinte anos se passaram após minha passagem interrompida pela Ladeira dos Guararapes e eu estou aqui, contando os paraísos e infernos que percorri. Não sou mais aquele cara bonito de antes, meu corpo tem marcas na barriga, meus olhos "secaram", pela falta de uso e pela calcificação da hemodiálise, as marcas dos anos estão evidentes nas rugas, nem muitas, nem poucas, apenas próprias dos meus 48 anos, a calvície invade o coro cabeludo e tudo que natural ou extraordinariamente me aconteceu para ficar da idade física e também emocional que tenho estão bem representados em mim. Digo até que "estou fazendo hora extra na vida e o que vier de bom é lucro", mas, sinceramente, o que acho que me faz ser uma pessoa satisfeita com a vida é ainda ter a pretensão, o descaramento, o abuso de sonhar. A vida é bonita porque me emociona, apesar de todas as suas diferenças. Nisso eu não mudei. – 187 – Não é preciso ter uma doença, uma diferença física ou sensorial para se sentir diferente dos outros. Outro dia, conversando com Kathleen, uma querida amiga, ela me falou sobre Dalida, uma mulher exuberante, de origem egípcia, cantora da moda, eleita Miss Egito em 1954; enfim, linda, consagrada, com um corpo escultural e muito dinheiro, mas que não tinha algo que ela achava que todos tinham ou poderiam ter. Os amores de sua vida haviam partido e Dalida estava sozinha. Suicidou-se deixando um bilhete em que lastimava não ter tido um filho, reconhecendo-se uma deusa, mas uma deusa de coração triste e com um vazio na alma... Escreveu no final: "Perdoem-me; a vida é insuportável para mim". Era uma mulher sofrida, sentia-se diferente. As pessoas com deficiências não necessariamente sofrem por serem deficientes, nem aquelas que alguns sonham ser são exatamente felizes. Enquanto só diabético, eu já me sentia diferente. Quando fiquei cego, a diferença tornou-se muito mais pública. Fazendo hemodiálise, comecei a cumprimentar a morte, acreditando que tudo o que via de bom em mim não valia mais nada. Era como se meu espírito fosse prisioneiro do corpo errado, um corpo limitado demais. Até os 21 anos enxerguei normalmente, nem óculos usava. Jamais imaginei que daria um passo fora de casa sendo cego e, mesmo depois, a vergonha de ser deficiente era um fator de opressão enorme para mim. Até que com uma professora de mobilidade aprendi a andar na rua, a entrar em um ônibus e me situar, a conhecer a frente do meu prédio de cor e salteado. Comecei a conquistar o Rio de Janeiro de quarteirão em quarteirão, diabético e cego. Nessas condições casei, fui pai, arrumei emprego, estudei, fiz dois transplantes e estou aqui vivo e satisfeito. Sempre achei que cego só servia para ser mendigo, vender loteria federal em ruas movimentadas do centro da cidade ou ser pedinte com um garoto-guia, geralmente o filho. Temos de limitar nossas opressões emocionais para chegarmos realmente aos nossos limites reais. Quem enxerga e não convive com cegos acha que cego não pode andar sozinho na rua, porém, a maior parte dos cegos que não é mimada pelas famílias, superprotegida, o – 188 – faz. A maioria das pessoas acha que os diabéticos não podem comer açúcar de jeito algum. Aí ocorre uma baixa glicêmica e todos ficam espantados quando tomamos glicose na veia. Se os diabéticos fossem se guiar pelo censo comum, morreriam sem conhecer nada. Então, procurei não me limitar mais do que já sou limitado. Só podemos conhecer nossos verdadeiros limites vivendo-os, experimentando, aprendendo, tocando; não só imaginando a existência deles. São essas descobertas que me fazem amar a vida e não deixá-la, aos pedaços, pelo caminho. Marco Antonio de Queiroz. maio de 2005. Fim. *** Quarta Capa ou Capa de trás: Marco Antonio é muito parecido comigo. Deficiente de várias formas, conseguiu dar a volta por cima em todas elas, vivendo uma vida que serve de modelo para todos. E por quê? Porque sempre escolheu as soluções mais altamente improváveis, isto é, escolhe sempre o impossível, tal qual a vida. A vida só se torna possível na medida em que algum animal ou ser humano escolhe uma opção altamente improvável. Tais como algumas bactérias escolheram ser unicelulares, uns poucos unicelulares se tornaram pluricelulares e assim foram subindo na escala da evolução, ganhando o mar, a terra, os ares e, finalmente, a condição humana. Os que não escolheram o impossível continuam bactérias unicelulares, pluricelulares e não saem da condição animal. Estes escolheram o possível, isto é, se repetem sempre. Só os que escolhem o impossível, como Marco Antônio, fazem a vida caminhar. Rose Marie Muraro.