A casa do remorso - Luís Fernando Veríssimo |
LUIS FERNANDO VERISSIMO
A casa do remorso
Li no Estadão uma matéria, reproduzida do The Guardian, da Inglaterra,
sobre Mikhail Kalashnikov, que criou o mais usado fuzil automático do
mundo, o AK-14. Mikhail está com 83 anos, vive uma aposentadoria
tranqüila nos Urais, cercado pelas filhas, e, fora a surdez, resultado
dos anos testando armas, não ficou com qualquer seqüela do seu
trabalho. Certamente nenhum remorso.
Ele desenhou o AK-14 para as tropas soviéticas, que tinham resistindo
às armas automáticas dos alemães durante a Segunda Guerra Mundial com
fuzis comuns, e se orgulha do que fez pela pátria. Se depois o AK-14 (o
produto mais exportado da União Soviética) foi usado em guerras sujas,
massacres e assassinatos em todo o mundo, inclusive na Rússia, isso não
é da conta de Mikhail. A simplicidade e a eficiência do AK-14 foram os
responsáveis pela sua adoção universal depois do aparecimento do
primeiro protótipo, em 1946.
Não Mikhail, que só fez o seu trabalho. Nenhum fantasma shakespeariano
vem perturbar o seu sono nos Urais, como os fantasmas que visitaram
Ricardo III antes da sua batalha final para lhe dizer "Desespere e
morra".
J. Robert Oppenheimer foi visitado por fantasmas aos milhares.
Depois do triunfo do programa do qual ele era o diretor científico, com
as explosões atômicas bem-sucedidas em Hiroshima e Nagasaki, que ele
festejou alegremente com sua equipe, Oppenheimer teve uma crise de
consciência e uma transformação. Ele e a equipe não tinham apenas feito
seu trabalho, e uma arma eficientíssima, com brilhantismo. Tinham dado
à luz um monstro inédito no mundo e provocado a mais radical
intervenção da ciência na vida humana desde que esta existia. Isto e os
mortos assombraram o resto da vida de Oppenheimer. Ele se opôs à
construção da bomba de hidrogênio e foi considerado um pouco penitente
e filosófico demais para continuar à frente do programa nuclear
americano, sendo substituído pelo mais pragmático Edward Teller. "Let
me sit heavy in thy soul", que eu pese na sua alma, diziam os fantasmas
vingativos de Ricardo. O maior feito da ciência na História pesou na
alma de Oppenheimer até o fim.
Não houve muitas expressões de contrição no julgamento dos
criminosos de guerra nazistas, em Nuremberg. Muitos disseram que
estavam apenas cumprindo ordens (o adágio do século). Apenas fazendo
seu trabalho. Uma espécie de remorso institucionalizado ocupou a
Alemanha depois da Segunda Guerra, dispensando a nação de grandes
mergulhos na sua própria consciência, e é recente o aparecimento de uma
literatura histórica, auto-reflexiva ou revisionista, no país. O
neonazismo é uma coisa de jovens, com novos rancores e nenhuma culpa
herdada, ou reconhecida. Os japoneses também se beneficiaram dessa
amnésia induzida e suas atrocidades cometidas durante a guerra não eram
assunto em nenhum nível, intelectual ou oficial, no Japão, até há bem
pouco tempo. Nos dois casos os fantasmas foram mantidos a distância
enquanto deu.
Sarah Winchester conseguiu driblar os fantasmas. Ela era a viúva de
William Winchester, filho do fabricante do fuzil Winchester, "o rifle
que conquistou o Oeste". Além de usado para eliminar coiotes, índios e
outros entraves à ocupação do Oeste bravio, o Winchester - uma arma tão
revolucionária, na sua época, quanto a máquina de matar de Kalashnikov
- chegou ao mercado pouco antes de começar a Guerra da Secessão
americana, que fez a fortuna da família.
Sarah e William casaram-se em plena Guerra Civil e prepararam-se para
uma vida de luxo e conforto com os milhões produzidos pelo fuzil de
repetição.
Tiveram uma filha, Annie. Que morreu ainda bebê, começando o que Sarah
identificou como uma danação sobre a sua família. Pouco depois, William
também morreu, de tuberculose, confirmando para Sarah que o nome
Winchester vinha carregado de pragas e maus presságios. Com a morte do
marido, ela herdou 20 milhões de dólares e metade da fábrica
Winchester, o que lhe rendia mil dólares por dia em royalties, mas isso
não foi consolo.
Aconselhada por uma amiga, procurou uma médium que lhe disse que os
espíritos de todos os mortos pelos rifles Winchester eram os culpados
pela maldição. Eles tinham levado sua filhinha e seu marido como
retribuição, e a única maneira de Sarah fugir dos espíritos seria
comprar uma casa e aumentá-la continuamente. Construir novas peças,
puxados, andares, anexos, terraços, alas - sem parar. No dia em que
parasse a construção, segundo a médium, Sarah também morreria. Os
espíritos chegariam a ela e também a levariam. Sarah comprou uma casa em
San José, na Califórnia, e pôs-se a aumentá-la. As obras duraram, sem
interrupção, até o dia da sua morte e a casa - que ainda existe, e hoje
é uma atração turística em San José - chegou a ter sete andares, antes
de ser parcialmente demolida por um terremoto, que Sarah atribuiu aos
espíritos enraivecidos. Sarah era sua própria arquiteta.
Construiu corredores que levam a lugar nenhum, escadas para o nada,
portas que dão no espaço, e dezenas de quartos. Dormia num quarto
diferente a cada noite, para enganar os espíritos. Pode-se imaginar uma
horda variada de fantasmas dos abatidos pelo Winchester - soldados,
bandidos, índios, mexicanos, tantos quanto os fantasmas de Hiroshima e
Nagasaki - perdida no casarão, atrás de Sarah. Que conseguiu
ludibriá-los até os 85 anos, quando morreu. E foi sepultada junto com
Annie e William.
Na sua casa de campo de poucos cômodos nos Urais, ao lado de um
lago de águas cristalinas como a sua consciência, Mikhail Kalashnikov
não teme os fantasmas. Se por acaso for interpelado por um, pode
referi-lo aos seus superiores, ou à Rússia, ou aos tempos em que viveu.
Nada pesa em sua alma.