Luiz Augusto Crispim



Almas mortas

Não foi o jeito do mendigo estender a mão, na tentativa de alcançar o vazio da vontade do outro.

Não foi isso que me chamou atenção. Tantas vezes já vi a mão oferecida a sobrar inutilmente...

Foi o gesto de soberba impresso na efígie da moeda atirada no fundo da cuia, a tilintar na alma de quem viu comigo.

Ao lado do mendigo, um menino. Desses meninos sem idade, que carregam nos olhos toda a tragédia do mundo. O olhar opaco, sem curiosidade, meramente testemunhal, acompanhou a trajetória da moeda, numa parábola de humilhação, que começava nos dedos bem tratados do motorista da camioneta luxuosa, descrevia uma curva ascendente de arrogância, para se precipitar no fundo da miséria recolhida pela banda de lata enferrujada.

Pai e filho atrapalhando o trânsito num cruzamento de vidas sem explicação.

Foi mais ainda o olhar baço do menino rastreando o caminho daquele meteorozinho de metal cruzando o infinito da distância que separava o pai daquele homem sentado ao volante de um carro daquele tamanho, feito um Júpiter materializado à sua frente numa nave de fogo.

Por um breve instante, vi a chispa de uma centelha a incendiar os olhos do menino. Era o grito de Marat, a revolta de Danton ou a desesperança de Jesus que eu via lampejar naqueles olhos de fitar uma vela acesa?


    Era apenas a dor de ver a miséria sendo remunerada pela soberba.

Lembrei-me de um personagem de Dostoiévski, em "Os irmãos Karamazovi". Depois de assistir ao espetáculo de ver o pai surrado em plena rua por Dimítri Karamazovi, o pequeno Iliúchka diz:

- Não faças as pazes com ele, “pápotchka”, de modo nenhum. Os meus colegas dizem que ele te deu dez rublos por isso.


    E o pai humilhado:

- Não, meu pequeno, por nada deste mundo aceitaria dinheiro dele agora.


    Iliúchka, então, conclui:

- Pápotchka”, que cidade de gente ruim a nossa, vamos morar em outra cidade onde não nos conheçam...

Não sei o que conversaram aqueles dois nesta cidade de tanta gente boa, mas também de tantas histórias ruins. Sei apenas que o nosso pequeno Iliúchka falava ao ouvido do pai quando a camioneta arrancou. Deixando uma nuvem de poeira para trás.


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