O Sistema Dosvox e a revolução por ele causada entre os cegos |
(Joyce Fernanda - Jobis)
1 - O cego
2 - O estudo
3 - O Dosvox e eu
4 - Aspectos Emocionais do dosvox em minha vida - Utilizando a Internet
Partilhar experiências, sair do meu casulinho, descobrir que cada
pessoa era um mundo e que o tratamento ao cego variava de região para
região, só não foi mais mágico que a possibilidade de fazer amizades
sólidas e duradouras através destas ferramentas tão úteis.
5 - Amor
A importância do dosvox.
Sabe-se que o Dosvox é um sistema que permite que cegos usem o
computador. Supondo que este texto deva destinar-se às pessoas comuns
que, normalmente, pouco ou quase nada sabem sobre nós, cegos, misturando
seus achismos com mitos seculares sobre nós, achei melhor falar um pouco
sobre o cego, sobre o que é não enxergar, para que possam entender com
mais exatidão o que o Dosvox significa para nós.
Antes, porém, gostaria de deixar claro que o que vou escrever não é
regra. Vou falar do que eu sinto, do que eu vivenciei, com as minhas
possibilidades de entendimento, que não são das mais amplas.
Os relatos que farei sobre condições de estudo, por exemplo,
aplicavam-se ao Instituto dos Cegos da Paraíba, na década de noventa.
Isto significa que, agora, pode ser diferente, e que em outros estados,
ainda, pode ser diferente.
Quero
dizer, com isto, que o que quer que eu diga representaráa minha visão de
mundo, não uma lei imutável.
Ser cego não é, de maneira alguma, o suplício que os videntes supõe,
quando tentam caminhar com os olhos fechados. Se você nasceu assim, não
é algo tão terrível. Você não fica com vontade de chorar quando vê
pessoas em volta de um aparelho de TV, nem de se matar quando dizem que
o Sol está se pondo de uma maneira linda ou quando as pessoas usam o verbo
" ver" na suafrente. Na verdade, nunca conheci um cego que tivesse
preconceito contra este verbo e seus afins, mas isto não quer dizer que
ser cego seja fácil. Não é.
As pessoas esperam sempre que sejamos inferiores, e enxergam o menor
avanço como mostra de superioridade inequívoca, o que acaba sendo um
tanto quanto exagerado, provindo mais da falta de informação que de
qualquer outro fator.
Entretanto, não é raro cegos terem um mundo próprio,um mundo, de
certa maneira, um bocado alienado. Por não entenderem parte do mundo a
seu redor e por, muitas vezes, não serem estimulados devidamente pelas
suas famílias por fatores quenão nos cabe discutir aqui, eles se isolam,
vivendo sempre de cabeça baixa ou balançando-se ao falar. Alguns há que
adquirem um jeito próprio de falar e se comunicar, cheio de maneirismos
que os tornam ainda mais esquisitos aos olhos de quem enxerga.
Sobretudo, existe a alienação. Alguns não se sentem estimulados a ver
televisão, porque muita coisa é visual, e então vivem fazendo a mesma
coisa todo o tempo, ou sem saber do que acontece a seu redor.
Talvez o " cego da capital" que me ouça dizendo essas coisas fique
furioso comigo, pensando que eu estou desmoralizando a classe. Na
verdade, isso tudo parece absurdo se visto sob o ponto de vista das
grandes cidades. Eu, porém, como aluna seme-interna do Instituto dos
Cegos da Paraíba, vi muitos cegos vindos do interior, e posso garantir
que o quadro não é muito diferente, não apenas por serem do interior,
mas por terem contribuído fortemente para que eles sejam assim a
desinformação das pessoas com que conviviam e as condições precárias de
que dispunham, algumas vezes.
Muitos deles, entretanto, após receberem os estímulos certos,
tornam-se sagazes e totalmente áptos a participar ativa e
produtivamente da nossa sociedade. Mais que isso e mais importante:
tornam-se pessoas mais felizes e satisfeitas consigo mesmas.
O que acontecerá se pegarmos um deficiente físico de nascença e não
lhe dermos o menor estímulo? Não precisa ser muito inteligente para
deduzir que ele não conhecerá os limites da sua limitação, e lhe
atribuirá poderes excessivos;
se você pegar um deficiente auditivo e não lhe proporcionar o
aprendizado da linguagem de sinais ou da leitura de lábios, ele crescerá
isolado do mundo que o serca, ou com fracos vislumbres dele;
Se pegarmos um deficiente mental e não o estimularmos, não veremos
quadro muito melhor.
Então, por que não supor que com o cego acontece o mesmo?
O cego, como todo deficiente, precisa de estímulos, para que possa
florescer e conhecer os limites exatos da sua deficiência.
A independência que um cego pode adquirir, seja para o que for, é
relativa, mas cada conquista é um passoa mais para sua emansipação como
ser humano e sua auto-estima.
Em 1994, eu ingressei em uma Escola Normal. Isto significa que eu
deixei de estudar em uma escola própria para cegos e passei a estudar,
junto com outros cegos, em uma escola comum, composta majoritariamente
por alunos e professores que enxergavam.
Isto foi super positivo em termos de integração, mas trouxe algumas
dificuldades práticas, no tocante aos estudos.
Nós não tínhamos os livros. Então, precisávamos copiar todos os
exercícios, perguntas e respostas a mão, utilizando-nos das nossas
regletes e punções. Quando o conteúdo era muito grande, pessoas
batiam-no à Máquina Braille para nós, método mais rápido que o uso da
reglete. Entretanto, como o material era grande, os alunos cegos
estudando em escolas normais eram muitos e os escreventes e máquinas
disponíveis poucos, não era raro não recebermos o material há tempo para
estudarmos paraa prova, ou recebê-lo na anti-véspera ou véspera da
avaliação. Isto significava que acabávamos ficando atrás, no tocante à
oportunidade de ler e memorizar o conteúdo. Como solidariedade não cai
no vestibular, não era raro não conseguirmos acompanhar a aula dada pelo
professor, o que seria nossa esperança enquanto o material não chegasse,
porque os alunos não conseguiam fechar a boca enquanto o mestre
explicava.
Dessa maneira, enquanto o material datilografado não chegava, os
cegos que tinham sorte gravavam as aulas e tentavam, em meio às
conversas dos colegas, entender o que o professor dizia.
Com as matérias de cáuculos, isto era ainda mais trágico.
O professor não podia nos ajudar. Se tentasse nos explicar, por
exemplo, equação do segundo grau até que entendêssemos, a turma ficaria
para trás, e nós tínhamos muito para copiar para darmos a atenção devida
às matérias de cáuculo. Além disso, no Instituto, havia poucos
itinerantes para muitos alunos cegos, de escolas e séries diferentes.
Não foram raras as vezes em que vi nossa itinerante ditar exercícios de
história para algumas pessoas, de português para outras e, de quebra,
tentar nos ensinar matemática ou química.
Só tínhamos contato com os gráficos na véspera da prova, isso se
tivéssemos sorte.
Não tenho medo de dizer que muitos professores de matérias de cáuculos
nos passavam por gentileza, pois sentiam nosso interesse em aprender e
nossa impossibilidade de fazê-lo à contento.
O que o advento do dosvox fez por nós?
Por mim, em termos escolares naquela época, muito pouco, porque só comecei a usar o dosvox quando
estava no segundo ano científico, mas posso falar do que vi e do que
creio ser viável.
Existe o Desenvox, um programa que faz gráficos em braille. Com ele
e uma impressora braille, pode-se ensinar aos alunos cegos a lidar com
os gráficos muito antes das provas.
Com um scanner e uma impressora braille, consegue-se o material
necessário com muito mais agilidade, isto para não falar nos Centros de
Apoio Pedagógicos que podem nos fornecer capítulos de livros inteiros em
um tempo muito curto.
As pessoas que ficariam ocupadas usando a máquina (são necessárias
duas: uma que enxerga, para ditar, e uma cega, para datilografar), podem
nos ajudar a entender os conteúdos. Não foram poucas as vezes em que eu
e meus amigos ficamos sem assistência em alguma matéria, porque o
professor tinha que datilografar ou ajudar a datilografar algum assunto
importante para nós mesmos ou para algum companheiro de escola.
A quem lê, pode soar como irresponsabilidade, mas não era, mesmo!
Acreditem: aquelas pessoas faziam o que era possível. A diferença é que,
com o dosvox, é possível que façam muito, muito mais.
Comecei a usar o Dosvox em 1999, e, pouco a pouco, entendi do que
ele é capaz.
Um computador é muito mais útil a uma pessoa que não enxerga que a
uma pessoa que enxerga. Você, que está lendo este texto agora, não
precisa de um computador para ler um jornal, uma revista, o resumo da
sua novela favorita, um romance, uma receita de bolo, escrever uma carta
com privacidade para um amigo e, muitas das vezes, conversar.
Provavelmente você tem seus jornais e seus livros longe do PC, e pode
ler suas receitas na cozinha, perto dos utencilhos necessários.
Provavelmente você nunca precisou ditar uma carta para alguém, ou
escrevê-la em Braille e pedir para que alguém escrevesse em tinta entre
as linhas (chamamos transcrever a isto), ficando sem jeito de abrir seu
coração para o destinatário, porque alguém leria a carta, além dele.
Fica difícil para explicar a você, caro leitor, o que isto significa
para uma pessoa que nunca pôde disfrutar esses prazeres simples.
Sei de cegos que choraram quando puderam acessar um jornal pela
primeira vez e ler o que quisessem, sem depender da boa-vontade de
alguém, sendo eu mesma uma delas.
Eu tive um aluno que escreveu um texto qualquer no Dosvox e pediu
para imprimí-lo. depois, levou-o para uma pessoa que enxergava e pediu
para que ela o lesse. Ela o leu, e ele se emocionou. Sempre houvera uma
barreira entre as coisas que ele queria escrever e o fato das pessoas
que enxergam não poderem ler.
Embora o Braille seja muito útil quando somos adolescentes e podemos
deixar nossos diários secretíssimos à toa, por aí,
a brincadeira acaba quando percebemos que, por mais que saibamos, é como
se fôssemos analfabetos, porque não podemos escreverpara o mundo. Não
podemos anotar nosso telefone para ninguém, não podemos ler nada.
eu fiquei felissíssima quando pude imprimir minhas poesias e ouví-las
sendo lidas pelas pessoas de minha família, quando pude escrever uma
carta para uma correspondente sem depender umbilicalmente de alguém que a
copiasse ou transcrevesse para mim, quando pude escolher o que queria
ler do jornal, e não ficar torcendo para que o vidente que lesse a minha
frente tivesse a inspiração de dividir comigo o que lia, fiquei exultante
quando descobri que podia ler sobre o que quisese e tudo que quisesse.
muitos cegos são alienados por não poderem ler sobre atualidade,
ficando irremediavelmente restritos às publicações em Braille e ecos do
que as pessoas videntes leem para eles. A consciência que se toma da
sociedade e do mundo à sua volta a partir do momento que se pode
acompanhar a história pelos jornais e revistas é algo tão maravilhoso,
que estranha-me muito que as pessoas que enxergam não leiam mais
seguidamente.
Com a Internet e o dosvox, eu pude muito mais que ler o
quequeria do jornal ou saber o que aconteceria na novela das oito. Eu
pude conhecer pessoas e interagir com videntes e cegos, ampliando meu
leque de amizades e de experiências.
Pela primeira vez, um vidente pôde conversar comigo sem prestar
atenção mais à deformidade dos meus olhos que a mim; pela primeira vez,
o fato de eu ser cega não era responsável umbilical pela sua
aproximação; pela primeira vez, eu podia ter a certeza de que as minhas
idéias valiam mais que a minha aparência.
As salas de chats exercem um encanto ainda maior quando a pessoa que
está do outro lado da telinha tem restritas possibilidades de sair de
casa - por fatores que não cabe discutir - e, muitas das
vezes, tem uma visão restrita do universo a sua volta.
Quando você se sente sozinho por qualquer motivo, entra em uma sala
de bate-papo e descobre que, do outro lado, existe uma pessoinha tão
ávida de comunicar-se quanto você, então a vida fica mais cor-de-rosa, e
por mais realistas que tenhamos que ser, um pouco de colorido em nossas
vidas só faz o ato de existir ser ainda mais prazeroso.
Fiz inúmeros amigos através da Internet. Amizades que sobreviveram aos
anos e às minhas três mudanças de estados; amigos que sobreviveram às
minhas imperfeições e às deles próprios, e que sempre estiveram ao meu
lado. Amigos cegos e não cegos, com quem eu pude abrir meu coração e
permitir que o coração deles se derramasse no meu, seja por declarações
fervorosas de amizade "Você é minha melhor amiga!", seja por momentos
alegres, aparentemente inúteis, para quem vise de fora. É da simplicidade
e da delicadeza que nosso coração se alimenta, e a Internet, juntamente
com o dosvox, ampliou esta possibilidade.
Quando eu tinha onze anos, assim que entrei para a escola regular,
meu pai faleceu de cancer. Foi algo terrível!
Quando comecei a participar das salas de Chats, acabei ganhando um pai
virtual. Não, nada a ver pensar que ele substituiu meu pai. Idiota seria
até cogitar isso! Mas era gratificante poder chamar alguém de pai e ser
chamada de filha por alguém, e o fato de eu estar no Rio, Minas ou
Paraíba e ele no Rio grande do Sul, não fazia a mínima importância.
Podíamos passar meses sem nos falar, mas eu sabia que ele estava lá
e, estou certa, ele sabia que eu me importava com ele. E quando
telefonei-lhe para comunicar sobre o meu casamento iminente, ouvi
alegria sincera nas suas palavras, quase como se sua filha estivesse se
casando. O fato de nunca termos partilhado um abraço físico parecia de
muito pouca relevância naquele momento.
Ganhei, ainda, dois irmãos maravilhosos (Um de Minas e outro também
do rio Grande), e é sincero o afeto que nos une. Embora nem sempre
estejamos nos comunicando, não restam dúvidas de que nossos corações
estão sempre sintonizados em uma só faixa de harmonia e querer bem
recíprocos.
Eu conheço várias histórias de amor nascidas entre os cegos da nossa
comunidade virtual, a dosvox, mas como só sei os detalhes da minha
própria, gostaria de falar, muito brevemente, sobre ela.
Eu morava em João Pessoa, na Paraíba, e tinha dezesseis anos.
Trocava cartas com um moço de Guaxupé, em Minas, e fiquei muito contente
quando consegui usar a Internet porque sabia que ele já tinha E-mail.
Acabamos nos encontrando no bate-papo e a nossa amizade foi tomando
forma, tomando forma, até que, em fevereiro de 2000, começamos a
namorar.
Nosso encontro aconteceu no VI Encontro de usuários Dosvox, onde
conhecemos diversos amigos da Internet e demos nosso primeiro beijo
Não vou descrever os quase quatro anos que passamos namorando quase
que apenas pela Internet, já que os encontros eram esparsos, por causa
da distância entre nossos estados. Não direi que foi fácil. Foi muito,
muito difícil. Entretanto, se não fosse o Projeto Dosvox, nós nunca
teríamos nos conhecido, e embora nosso relacionamento seja humano, com
altos e baixos como convem a todo relacionamento, não gosto de imaginar
como seria minha vida sem ele.
Vamos nos casar no dia 23 de janeiro.
6 - Conclusão
A minha história de vida é apenas a minha história de vida. Não
significaria nada, se fosse um caso isolado, se fosse apenas a história
de uma cega nascida na paraíba e indo casar em Minas gerais. Seria um
caso interessante, mas, ainda assim, isolado, sem importância social
nenhuma.
Acontece que os agentes que protaconizaram minha história de vida
protagonizaram milhares de histórias, por todo o país. O dosvox tem,
atualmente, serca de dez mil usuários espalhados pelo Brasil. São cegos
que tem suas vidas melhoradas em diversos aspéctos porque um professor
formado em Computação Gráfica decidiu se importar com um aluno cego da
sua sala de aula, e acabou, direta e indiretamente, importando-se com os
cegos do país inteiro.
O dosvox não tem uma importância isolada, restrita a mim, ao diniz,
ao Márcio ou a Miau. O dosvox alfabetiza cegos, instrui, socializa,
estimula, imprega, ajuda a formar e a dar mais independência e
felicidade às pessoas . Antes dele, nosso
campo de trabalho era super restrito; com ele, quase tudo pode ser
possível ou viabilizado.
O objetivo deste texto é explicar porque o Dosvox tem uma
importância Social imensa e deve ser estimulado e preservado a todo
custo. Ele não serve apenas para permitir que cegos façam amigos; ele
não serve apenas para permitir que cegos tenham mais oportunidades de
emprego; ele não serve apenas para permitir que cegos possam ler seus
jornais à vontade; ele não serve apenas para que cegos possam estudar
com mais facilidade; ele não serve apenas para que cegos possam se
comunicar com mais rapidez; ele não serve apenas para nos auxiliar, com
as falas Sape, a estudar e ler em outros idiomas; ele não serve apenas
para auxiliar na alfabetização de cegos. Ele serve para tudo isso e
muito mais, por isto é importante, por isto merece que todos saibam
dele, mesmo que não tenham nenhum amigo sem visão, mesmo que todos os
seus parentes enxerguem perfeitamente.
Somos muito hábeis em publicar injustiças por aí, mas somos muito
morosos para falar sobre coisas boas que acontecem.
Jobis
HP:
http://www.lerparaver.com/nossomundo
MSN: jobis_jp@hotmail.com
A importância do Dosvox na minha vida - Vini
O Dosvox na minha vida
Vinícius Alencar de Carvalho - 07-01-2004
Soube da existência do Sistema Dosvox em noventa e seis, através da
leitura do Jornal Superação, do C. V. I. (Centro de Vida Independente).
Na época, meu contato com pessoas cegas era nulo. Moro em Guaxupé, uma cidade pequena
do interior mineiro que não tem associação de deficientes visuais.
Fiquei encantado ao descobrir que já existia um programa de computador próprio para
cegos. Desde pequeno, tinha interesse pela informática, mas não
imaginava como poderia vir a operar um microcomputador.
Embora o jornalzinho me permitisse vislumbrar a possibilidade de,
um dia, travar contato direto com o mundo da informática, que sempre
achei fascinante, dava poucas informações práticas sobre o Dosvox, de
maneira que fiquei sem saber como ele era na prática.
Durante o ano de noventa e sete, li na "Febec em Revista", um artigo
sobre o Dosvox, que me fez querer ainda mais conhecê-lo. No ano
seguinte, minha irmã comprou um computador, mas este permaneceu
praticamente inutilizado, por vários meses. Na época, ainda não tínhamos
Internet em casa, por isso pedi a um amigo que pesquisasse para mim na
grande rede sobre o Dosvox. ele conseguiu para mim o telefone da extinta
Kátia Multimídia, empresa que comercializava o programa.
Em setembro do mesmo ano, finalmente, comprei o meu sonhado Dosvox.
Eu pensava que se tratava de um programa que apenas falava as letras
digitadas e lia o que estivesse na tela, soletrando.
A instalação do programa foi uma novela. Primeiro, o computador
estava avariado, com um vírus qualquer; depois, a pouca experiência em
informática minha e da minha família fez com que não conseguíssemos
realizar a instalação. Uma empresa de técnicos pouco hábeis também não
percebeu que o problema era muito simples. Acontece que o disquete de
instalação vinha preparado para buscar o CD-rom na unidade D e na minha
máquina a unidade de CD era a "e". Um técnico mais atento, de outra
loja, ouviu a fita que vinha com o programa e o instalou facilmente
em três de dezembro de noventa e oito, dia em que, surpreso e
emocionado, ouvi pela primeira fez o meu computador dizer: "Dosvox - O
que você deseja?"
Logo pude perceber que o Dosvox era muito mais do que um leitor;
era, na verdade, um sistema, composto por leitor e editor de textos,
caderno de telefone, agenda, jogos divertidos e, para minha inteira
surpresa, utilitários de acesso a Internet!
Passei os meses seguintes aprendendo, sozinho, a trabalhar com o
sistema. No princípio, gastava grande tempo jogando: Jogo da forca, da
memória, de mistura de sons, 3x3, paciência... Depois passei a me
interessar pelos utilitários, como o televox. paralelo a isso, descobri
as músicas, as quais eu acessava de uma forma muito complicada, por não
conhecer ainda o sistema de diretórios e subdiretórios. Quando descobri
os manuais sonoros no CD do Dosvox, ouvi todos e aprendi muito com eles.
No começo da minha aprendizagem, conheci o companheiro Gesuel, de
Andradas, a quem sou muito grato pela amizade e pelas várias dicas. Foi
ele quem me falou da Lista Dosvox, a primeira em que entrei, quando
passei, finalmente, a ter Internet, em Fevereiro de noventa e nove.
Desde noventa e seis, eu tinha grande vontade de navegar pela
Internet, toda vez que ouvia uma referência à Rede. Meu pensamento
viajava, ao ouvir, em uma propaganda, a música "Internet", de Gilberto
Gil.
Quando pude finalmente trocar E-mails e acessar conteúdo de páginas,
logo a Internet tornou-se meu principal lazer. Aos poucos fui fazendo
amigos. Lia todas as cartas da lista Dosvox e aprendia muito com os
companheiros. Foi esta lista que me "apresentou" ao mundo dos cegos.
Antes, minha irmã era a única deficiente visual que eu conhecia. Através
da lista, comecei a perceber todas as coisas que um cego podia fazer.
Fiquei feliz e encorajado, ao perceber que havia cegos advogados,
professores, programadores, analistas de sistemas... Saber do sucesso de
outros deficientes visuais me fazia crer mais em minhas capacidades.
O contato com cegos me fez encarar a mim mesmo com mais realismo.
Antes, de certa forma, eu julgava poder fazer as coisas da mesma forma
que os ditos normais faziam. Minha deficiência não era muito comentada
no círculo familiar. Minhas dificuldades escolares eram resolvidas da
melhor forma possível, mas eu nunca estudei como um cego normal. De certa
forma, eu pairava entre o "mundo dos normais" e o "mundo dos cegos". A
leitura diária das mensagens da Dosvox possibilitou que eu refletisse
melhor sobre minha verdadeira identidade. Não que meu contato anterior
com cegos fosse totalmente nulo, pois eu tinha uns três ou quatro
correspondentes em Braille; é que a leitura de diversas mensagens, todos
os dias, foi fazendo com que eu notasse que, com força de vontade, um
cego pode fazer quase tudo que uma pessoa normovisual realiza.
Em noventa e nove, o Webvox, navegador do sistema Dosvox, ainda era
muito deficiente, por isso eu navegava pela rede usando o Internet
explorer e o Virtual Vision, programa nacional da Micropower.
Em julho de noventa e nove, surgiu algo que viria a ter uma
importância fundamental na minha vida: o Papovox, programa de bate-papo
do Dosvox. Sinto-me feliz ao lembrar que fui um dos primeiros a utilizar
o programa, quando ele ainda não possibilitava conversas envolvendo mais
de duas pessoas. Lígia e Estêvão foram as primeiras pessoas com que
conversei.
Poucas semanas depois do advento do Papovox, o professor Antônio
Borges apresentou-nos o "Sítio Cantinho da Mamãe", uma sala de bate-papo
que podíamos acessar com o Papovox. Foi uma felicidade geral. Agora
podíamos interagir melhor, fazer amigos, brincar e trocar idéias com
gente de todo o país.
Em agosto de noventa e nove, recebi uma carta em Braille de uma
garota paraibana. Chamava-se Joyce Fernanda e sua linguagem e
inteligência me impressionaram. Tinha apenas dezesseis anos e pareceu-me
bem diferente da maioria das garotas da minha cidade. Respondi sua carta
tão logo pude e, pouco depois, recebi mais uma miciva dela. Logo que esta
chegou, vi o nome dela na lista Dosvox. Pensei logo:
- Será que é a mesma?
Era. No princípio, fiquei sem jeito de falar com ela por e-mail,
algo que demonstra o quanto era - e ainda sou - tímido.
Foi então que ela, sabedora de que eu tinha Internet, procurou-me, em outubro, no "Sítio cantinho da
mamãe". Na ocasião, eu estava viajando. QUando voltei, Gesuel e Joana
contaram-me que eu havia sido procurado por uma garota, o que me deixou
contente. Muita coisa nela me impressionava positivamente e eu tinha
vontade de conhecê-la melhor.
Minha primeira oportunidade de falar com ela através do Papovox
chegou em dezesseis de outubro, uma tarde de sábado. A conversa foi
breve e já não lembro do que falamos.
Nas semanas que se seguiram, começamos a nos corresponder por
E-mail. As mensagens eram esparsas, mais por culpa minha do que dela.
Sempre fui um pouco preguiçoso para escrever. Freqüentemente,
encontrávamos no bate-papo. Eu gostava da alegria dela, do seu português
correto, da inteligência que demonstrava e do carinho que deixava
entrever nas palavras. Jô (como a maioria a chama)sempre foi muito popular e, já naquela
ocasião, recém-chegada à comunidade virtual, tinha muitos amigos. Porém,
na minha avaliação de garoto que começava a se apaixonar, ela devotava
um carinho especial a mim, algo que pôde ser comprovado mais tarde.
Em dezembro de noventa e nove, já havia entre mim e Jô (Jobis
para os amigos da Internet) um elo, algo difícil de explicar. Tinha com ela um
contato bem menor que o mantido por outros rapazes, entretanto, sentia
que ela podia ter por mim um carinho maior do que aquele devotado a um
amigo. Nesse mês ela, que morava em João Pessoa, viajou para passar as
férias em Macaé e eu me senti solitário. No começo de janeiro, ela me
escreveu em Braille; eu respondi, mas a carta não chegou às suas mãos. A
frustração que senti ao descobrir isso mostrou-me que eu já estava
gostando dela bem mais do que se gosta de uma amiga da Internet. Durante
as férias, ela conseguiu falar comigo, da casa de uma amiga, a Cristiane
Leite, do Rio de Janeiro. Aquela conversa foi muito especial. Depois dela,
meu sentimento de que ela gostava de mim se fortaleceu.
A intenção aqui é falar da importância do Dosvox na minha vida, por
isso peço desculpas se estou parecendo excessivamente autobiográfico.
Conto os detalhes para que se perceba como o Dosvox esteve presente em
momentos importantíssimos da minha vida.
Em fevereiro de dois mil, Jô (Nina, como eu a chamava) disse que
estava gostando de mim, no dia vinte. Cinco dias depois, no "Sítio da
luz", do companheiro Ricardo Collório (na época já tínhamos o
Sitiovox, que possibilita a criação de salas de bate-papo), eu a pedi em
namoro e ela aceitou. Iniciamos então o que muitos chamam de "namoro
virtual". Conversávamos sempre que possível pelo Papovox, nos
telefonávamos uma vez por semana e trocávamos e-mails, escritos no
Cartavox, quase todos os dias. Era uma relação terna e delicada, cheia
de encanto e companheirismo. Nossa relação, pode-se dizer, era
quase inteiramente espiritual, baseada no carinho de alma para alma.
Sonhávamos com o dia do primeiro encontro, que acabou tardando um pouco.
Durante esse tempo de sonho e espera, o Dosvox foi nosso melhor aliado,
pois era ele que nos possibilitava comunicação barata e praticamente
diária.
Em agosto, tudo ficou mais fácil para nós. Ela mudou-se para Macaé,
no Rio de Janeiro. Dois meses depois, foi realizado o V Encontro
Nacional de usuários de Dosvox. Nós dois tivemos a oportunidade de ir e
foi lá, no dia doze de outubro, que pudemos dar nosso primeiro beijo ao
vivo.
Mas o encontro Dosvox não foi produtivo para mim só do ponto de
vista amoroso. Pude conhecer muitos amigos com quem conversava só pela
Internet e abraçar pessoalmente o professor Antônio Borges. Além disso,
tive a chance de conhecer um pouco mais sobre o modo de vida de
deficientes visuais mais independentes que eu.
Nos meses que se seguiram ao encontro Dosvox, eu e minha namorada
continuamos a conversar pelo Papovox e a trocar cartas, nos intervalos
entre um encontro e outro. Assim foi até dezembro passado, quando ela,
já então minha noiva, veio para Guaxupé, para nos casarmos no dia vinte
e três de janeiro de dois mil e quatro. Posso dizer, sem medo de errar,
que o Dosvox foi decisivo para que chegássemos a esse ponto.
Em dois mil e um, junto com meu pai, montei uma empresa de
distribuição de água mineral. Era através do Dosvox que eu controlava os
pedidos, as entregas e os pagamentos.
Nesse mesmo ano, foi também com o Dosvox que estudei para o concurso
público de Minas Gerais na área da educação. Fui aprovado no concurso e
em dois mil e dois assumi o cargo de professor de português em uma
escola de minha cidade, função que ainda exerço.
Para o desempenho de minhas funções, utilizo largamente o Dosvox. é
com ele que procuro textos a fim de levar para os alunos, registro
notas, faltas e demais ocorrências do cotidiano escolar. É no edivox que
digito as provas. Com esse mesmo editor, escrevo este texto.
O Webvox, em dois mil, teve um grande salto para frente. Hoje é um bom
navegador, acessando praticamente todas as páginas de meu interesse. é
com auxílio dele que pesquiso sobre futebol, fórmula-1, xadrez e muitos
outros assuntos de que gosto.
Graças ao Dosvox, tenho hoje uma página na Internet, junto com a
Jô. A "Nosso Mundo" foi inteira feita com uso de dois programas do
sistema Dosvox: Edivox e Intervox, que é um programa simples que
transforma um texto comum, com algumas marcações especiais, em um
arquivo .htm.
No Dosvox, posso ainda gravar e editar som, ter funções de agenda e
me divertir com jogos variados.
Adoro o xadrez, que constitui uma de minhas principais fontes de
divertimento. Em dois mil, conheci, através do Papovox, colegas cegos
adeptos desse jogo. Junto com eles, realizei três torneios Dosvox de
xadrez virtual, disputados em dois mil, dois mil e um e dois mil e dois.
As partidas eram jogadas em salas abertas pelos jogadores, tudo com uso
do Papovox e do Sitiovox. Os torneios, além de servirem para divertir,
propiciaram sociabilização aos participantes. Já estou pensando em
convidar os amigos para um quarto torneio, a ser realizado ainda no
primeiro semestre desse ano.
É inegável a função social desse sistema, que tanto fez, não só por
mim, mas também por muitos outros deficientes visuais espalhados por
todo o território nacional. Há, inclusive, deficientes visuais de outros
países fazendo uso desse maravilhoso sistema. Pessoas que viviam
isoladas, hoje têm amigos; gente desempregada e sem muitas perspectivas
conseguiu trabalho; casais se formaram. Tudo isso com ajuda do Dosvox
que, infelizmente, ainda não recebe das autoridades a atenção a que faz
jus.
Neste momento, o projeto Dosvox passa por dificuldades. O núcleo de
Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - NCE
/ UFRJ -, onde é desenvolvido, conta com uma verba muito pequena para
levá-lo adiante. O professor Borges, coordenador do projeto, carece
muito de pessoal especializado para ajudá-lo no desenvolvimento do
sistema. O NCE não tem verba para pagar programadores profissionais e
muita gente boa já precisou sair da equipe desenvolvedora do Dosvox. O
projeto corre o risco de acabar, se não se descobrir, em breve, uma
alternativa viável para salvá-lo.
É hora de toda a comunidade Dosvox se unir para buscar uma forma de
ajudar o projeto Dosvox a prosseguir seu caminho brilhante de conquistas
e realizações sociais. Esse sistema fez muito por nós e precisamos
retribuir de alguma maneira. Entretanto, necessitamos do apoio de
diversos setores da sociedade para salvar o projeto. É necessário que as
autoridades competentes atentem para o bem social do Dosvox. Também é
preciso que a iniciativa privada perceba os benefícios de se associar a
um projeto de tamanha envergadura social.
Para encerrar, digo apenas mais uma frase:
- Obrigado, Dosvox, por tudo que me proporcionou!
Envie carta para Vini e Jobis
Essa página foi gerada através do Intervox, mais um utilitário
desenvovido pelo
PROJETO DOSVOX
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