O colocador de pronomes
Monteiro Lobato
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de
gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou
como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima
dum novo erro de gramática.
Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como
pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no
fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro.
Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai
duns acrósticos dado à luz no "Itaoquense", com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa
seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel
Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente,
então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota,
histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeiras. Esgoelara um
vereador oposicionista em plena sessão da Câmara e desde aí,
se transformou no tutu da terra. Toda a gente lhe tinha um
vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia
sobrecenhos enfarruscados, nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância
hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê,
que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas.
Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores — o
que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de
lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e
medição de passos na Rua D'Elba, nos dias de folga. Depois, a serenata
fatal à esquina, com o
Acorda, donzela...
sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois,
bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro
palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amolhe!…
Para abrir o jogo, bastava esse movimento de peão.
Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho
celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado,
mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto —
para umas certidõezinhas, explicou.
Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga
atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mal o
pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou
a carranca e disse:
— A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta
terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca-nunca,
ouviu? que contra ela se cometa o menor deslize. Parou.
Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o.
— É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação
— Muito bem! continuou o coronel em tom mais sereno. Ama,
então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois
agora...
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a
cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma
retirada estratégica.
— …é casar! concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num
pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos
olhos, disse, gaguejante:
— Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta
generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o
julgam aí fora!...
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
— Nada de frases moço, vamos ao que serve: declaro-o
solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
— Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem,
corrigiu o erro.
— Laurinha quer o coronel dizer...
— Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete
à Laurinha dizendo que ama-"lhe". Se amasse a ela deveria
dizer amo-"te". Dizendo "amo-lhe" declara que ama a uma
terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo.
Salvo se declara amor à minha mulher!...
— Oh, coronel...
— ...ou à preta Luzia, cozinheira. Escolha!
O escrevente, vencido, derrubou a cabeça, com uma lágrima a
escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de
tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro
paternalmente, repetiu a boa lição da sua gramática matrimonial.
— Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa— quem
fala, e neste caso vassuncê; da segunda pessoa-a quem se
fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa — de quem se
fala, e neste caso Maria do Carmo, minha mulher ou a preta.
Escolha!
Não havia fuga possível.
O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava,
muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental
novo ao alcance do maquiavélico pai. Submeteu-se e abraçou a
urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:
— Deus vos abençoe, meus filhos!
No mês seguinte, solenemente, o moço casava-se com o
encalhe, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o
futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor da língua que
durante cinqüenta anos a fio, coçaria na gramática a sua incurável sarna
filológica.
Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma.
Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o
sarampo da praxe, mais a caxumba e a catapora. Mais tarde,
no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções
de matar o tempo — empapelamento de moscas e moidelas das
respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de
ver o desenho que sai — Aldrovando apalpava com erótica
emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do
furúnculo filológico, que o determinaria na vida, para matá-lo,
afinal...
Deixemo-lo, porém, evoluir e tomemo-lo quando nos serve, aos
40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e
combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho,
fossando, à luz dum lampião, os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado,
magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário
impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o
rim, volta e meia, a fazer-se lembrado.
Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com
as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos
lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna.
Sabe-os de cor, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma seca
de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as
patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa
encruada de Fr. Pantaleno do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm
atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na
pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar.
Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor-mundo, diabo,
carne, eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja
soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como
porco em lameiro. Em certa época viveu três anos, acampado
em Vieira. Depois vagamundeou, como um Robínson, pelas florestas de
Bernardes.
Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza,
negava o presente. Passarinho, conhecia um só: o rouxinol de
Bernardim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias
vinha bicar "pomos de Hespérides" na laranjeira do seu quintal,
Aldrovando esfogueteava-se com apóstrofes: — Salta fora, regionalismo de
má sonância!
A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira à
perfeição com Fr. Luís de Sousa, e daí para cá, salvo
lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu
barbaresco.
— A inglesia de hoje, declamava ele, está para a Língua,
como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.
E suspirava, condoído dos nossos destinos:
— Povo sem língua!... Não me sorri o futuro de Vera-Cruz…
E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a
temos a evoluir na boca do povo.
— Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que
estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos.
Deletreemo-lo ao acaso.
— Teve lugar ontem!... É língua esta espurcícia negral? Ó
meu seráfico Frei Luís, como te conspurcam o divino idioma,
estes sarrafaçais da moxinifada!
— ...no Trianon... Por que, Trianon? Por que este perene
barbarizar com alienígenos arrevezos! Tão bem ficava-a
Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho-o
Logratório...Tarelos é que são, tarelos!
E suspirava, deveras compungido.
— Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este
teor. Ai! Onde param as boas letras de antanho? Fez-se peru
o níveo cisne. Ninguém atende a lei suma:— Horácio! Impera o
desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice
é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me
confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem
cá mercadores de má mote. E é de notar, outrossim, que a
elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes
olhos um gentil mancebo preferir uma sordícia de Oitavo Mirbelo-Canhenho
duma dama de servir, creio, à... adivinhe ao quê, amigo? À
Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!...
— Mas a evolução...
— Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a
"evolução" darwínica, os vocábulos macacos-pitecofonemas que
"evolveram", perderam o pêlo e se vestem hoje à moda da
França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luís, que ali
daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na
esquipática sesquipedalice.
Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando
em duas fases distintas: a estática, em que apenas acumulou
ciência, e a dinâmica, em que, transferido em apóstolo, veio
a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.
Abriu campanha com um memorável ofício ao congresso, pedindo
leis repressivas contra os ácaros do idioma.
— Leis, senhores, leis de Drácão, que diques sejam, e
fossados, e alcáçares de granito prepostos à defensão do
idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço
merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem
ao semelhante a vida tira. Vede, senhores, os pronomes, em
que lazeira jazem...
Os pronomes, ai! eram a tortura permanente do professor
Aldrovando. Doía-lhe como punhalada, vê-los por aí pré ou
pospostos contra regras elementares do dizer castiço. E sua
representação, alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais
da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.
Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e
grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.
— Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de
pronomes! Isto seria autocondenar-nos à morte! Tinha graça!
Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E
depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto
e Aldrovando, com a mortificação na alma, teve que mudar de
rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi,
antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos
"galicífragos de papel e graxa". Transigiu e, breve, desses
"pulmões da pública opinião", apostrofou o país com o verbo
tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias
ultraviolentas, escritas no mais estreme vernáculo.
Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles
intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e, ao
cabo da aspérrima campanha, viu que pregara em pleno
deserto. Leramno apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre
em toda a parte, como notas rezingüentas da sinfonia
universal.
A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos
flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os
"periódicos" fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta
de espaço e coisas.
— Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas
sobeja, e pressuroso, para quanto recomende à
podriqueira!...Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia
limpar-vos a gafa!... exclamou, profético, sacudindo à soleira da
redação o pó das cambaias botinas de elástico.
Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório
gramatical.
— Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em
leis, os charlatães de toda a espécie. Abra-se um para a
medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê,
que me não move amor de bens terrenos.
Falhou a nova tentativa. Apenas as moscas vagabundas vinham
esvoejar em torno da ciência que se oferecia na salinha
modesta do apóstolo. Criatura humana, uma só, sequer, ali
não veio remendar-se filologicamente.
Ele, todavia, não esmoreceu.
— Experimentemos processo outro, mais suasório.
E anunciou a montagem da "Agência de Colocação de Pronomes e
Reparos Estilísticos".
Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de
cincas, um calhamaço a compor-se com os "afeites" do lídimo
vernáculo, fosse lá, que, sem remuneração nenhuma, nele se
faria obra limpa e escorreita.
Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais
necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de
versos, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.
Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava
Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas
próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar:
— Professor, V. Sa. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos
pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim...
Aldrovando ergueu os óculos para a testa:
— E traduzi em latim o tal ingranzéu?
— Em latim ou grego, pois que o não consigo entender…
Aldrovando impertigou-se.
— Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é ali com o alveitar
da esquina.
Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o
povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção...
O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar,
exasperou o apóstolo.
— Hei de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer.
Fogem-me à férula, os maraus de pau e corda? Ir-lhes-ei
empós, filá-los-ei pela gorja... Salta rumor!
E foi-lhes "empós". Andou pelas ruas examinando dísticos e
tabuletas com vícios de língua. Descoberta a "asnidade", ia
ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores
argumentos catequistas.
Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda
uma tabuleta — "Ferra-se cavalos" — escoicinhava a santa
gramática.
— Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a
mim que parece que erres, alarve que és. Se erram paredros,
nesta época de ouro da corrupção...
O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.
— Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o
apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate
existe que seriamente à lingua lusa ofende. Venho pedir-lhe,
em nome do asseio gramatical, que o expunjas.
— ? ? ?
— Que reformes a tabuleta, digo.
— Reformar a tabuleta ? Uma tabuleta nova, com a licença
paga? Está acaso rachada?
— Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem, ali, os
dizeres à sã gramaticalidade.
O honesto ferreiro não entendia nada de nada.
— Macacos me lambam se estou entendendo o que V. Sa. diz...
— Digo que está a forma verbal com eiva grave. O "ferra-se"
tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o
sujeito é "cavalos".
O ferreiro abriu o resto da boca.
— O sujeito sendo "cavalos", continuou o mestre, a forma
verbal é "ferram-se" — "ferram-se cavalos!"
— Ah! respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz
V. Sa. que...
— ...que "ferra-se cavalos" é um solecismo horrendo e o
certo é "ferram-se cavalos".
— V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou
eu, e eu não sou plural. Aquele "se" da tabuleta refere — se
cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos
— Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua
abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se(rafim) cavalos. Isto
me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.
Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.
— Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o
mesmo!... Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela
admissão dum "m" ali...
— Se V. Sa. paga...
Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte
dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras
da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes
Aldrovando passava por lá para gozar-se dela.
Por mal, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a
entronização do "m" com maus negócios na oficina, o
supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos
dizeres, e lá raspou o "m" do professor.
A cara que Aldrovando fez quando, no passeio desse dia, deu
com a sua vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a
dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar, quando o
ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo:
— Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no
serviço e na língua, sou eu. E é ir andando, antes que eu o
ferre com um bom par de ferros ingleses!
O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e
moscou-se.
— "Sancta simplicitas!" ouviram-no murmurar na rua, de rumo
à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor
Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de
borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas,
chorou...
O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram
impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele,
já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a
continuação da guerra.
— Não hei de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande
livro, onde compendie a muita ciência que hei acumulado.
E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo
programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um
tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais
claudicava a gente de Gomorra.
Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao
mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu
trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada
um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade!
Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de
boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar
resolvido de vez! Maravilhosa coisa...
Pronto o primeiro tomo — Do pronome Se — anunciou a obra
pelos jornais, ficando à espera da chusma de editores que
viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo
sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de
gordos proventos pecuniários.
Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais,
que, generoso que era, cederia por cinqüenta. E cinqüenta
contos para um velho celibatário como ele, sem família nem
vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em
empréstimos hipotecários, sempre eram seus quinhentos mil
réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida, na
gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos.
Servia, servia!... E Aldrovando, contente, esfregava as mãos, de ouvido
alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo...
Que vinha vindo mas não veio, ai!... As semanas se passaram
sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus
surgisse a chatinar o maravilhoso livro.
— Não me vêm a mim? disse ele. Salta rumor! Pois me vou a
eles!
E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.
Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas.
Torciam o nariz, dizendo: "Não é vendável"; ou: "Por que não
faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?"
Aldrovando, com a morte n'alma e o rim dia a dia mais
derrancado, retesou-se nas últimas resistências.
— Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o
cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim.
Bofe!...
Para lutar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo
metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa!
Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de
Pallissy, e não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso
de sua ciência impressa. Editaria, ele mesmo, um por um,
todos os volumes da obra salvadora.
Passou esse período de vida alternando revisão de provas com
padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se,
magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não
existia igual.
Dedicou-o a Fr. Luís de Sousa:
À memória daquele que me sabe as dores — O autor.
Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse
os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má
colocação de outro pronome lhe cortaria o fio da vida.
Muito corretamente havia escrito na dedicatória :...daquele
que me sabe... e nem poderia escrever de outro modo um tão
conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram,
porém — até os fados conspiram contra a língua! — e, por artimanha do
diabo que os rege, empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo
e recompõe-na a seu modo... daquele que sabe-me as dores...
E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.
Mas não antecipemos.
Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que
glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria
imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.
A grande idéia do livro, exposta no capítulo IV — Do método
automático de bem colocar os pronomes — engenhosa aplicação
duma regra mirífica, por meio da qual até os burros de
carroça poderiam zurrar com gramática operária como o "914"
da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta dos
pronomococus.
A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes
químicos de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom
laboratório fácil lhe seria reduzi-la a ampolas para
injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.
E quem se injetasse ou engolisse uma pílula do futuro
PRONOMINOL CANTAGALO curar-se-ia para sempre do vício,
colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no
escrever. Para algum caso de pronomorréia aguda, evidentemente
incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL N.° 2, onde
entrava a estriquinina em dose suficiente para libertar o
mundo do infame sujeito.
Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando
lhe entrou pela escada a dentro a primeira carroçada de
livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas
empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o
serviço um deles pediu:
— Me dá um matabicho, patrão!...
Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele "Me" tão
fora dos mancais, e tomando um exemplar da obra ofertou-o ao
"doente":
— Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às
mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo
sexto.
O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao
companheiro:
— Isto no "sebo" sempre renderá cinco tostões. Já serve…
Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de
trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num
certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o
primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa, quando seus
olhos deram com a horrenda cinca: " daquele QUE SABE-ME as
dores ".
— Deus do céu! Será possível?
Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares
da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a
Fr. Luís de Sousa, o horripilantíssimo — QUE SABE-ME ...
Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no
rosto uma estranha marca de dor — dor gramatical inda não
descrita nos livros de patologia - permaneceu imóvel uns
momentos.
Depois, empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se
nas garras de repentina e violentíssima ânsia.
Ergueu os olhos para Frei Luís de Sousa e murmurou.
— Luís! Luís! Lamma Sabachtani!
E morreu.
De quê, não sabemos — nem importa ao caso. O que importa é
proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o
primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação
dos Pronomes.
Paz à sua alma.
Monteiro Lobato , natural de Taubaté (SP), nasceu em
18-04-1882. É uma das figuras excepcionais das letras brasileiras.
Jornalista, contista, criador de deliciosas histórias para crianças,
suscitador de problemas, ensaísta e homem de ação, encheu com
seu nome um largo período da vida nacional. Com a publicação do livro de
contos "Urupês", em julho de 1918, quando já contava com 36
anos de idade, chama para o seu talento de escritor a
atenção de todo o país. Cita-o Ruy Barbosa, em discurso,
encontrando no seu Jeca Tatu um símbolo da realidade rural brasileira.
Lança-se à indústria editorial, publica livros e mais livros
— "Onda Verde", "Idéias de Jeca Tatu", "Cidades Mortas",
"Negrinha", "Fábulas", "O Choque", etc. Fracassa como
editor, ao lançar a firma Monteiro Lobato & Cia., mas volta
com a Companhia Editora Nacional, ao lado de Octales
Marcondes, e triunfa. Tenta a exploração de petróleo, e acaba na cadeia,
perseguido pela ditadura de Getúlio Vargas. Não só escreve,
como traduz sem pausa, dezenas e dezenas de livros,
especialmente de Kipling. Uma vida cheia. E uma grande obra, que lhe
preservará o nome glorioso. Foi um grande homem, um grande brasileiro e
um dos maiores escritores — em todo o mundo — de histórias
para crianças. Basta dizer que, no período de 1925 a 1950
foram vendidos aproximadamente um milhão e quinhentos mil
exemplares de seus livros.
Era, de fato, um ser plural: escritor precursor do realismo
fantástico, escritor de cartas, escritor de obras infantis,
ensaísta, crítico de arte e literatura, pintor, jornalista,
empresário, fazendeiro, advogado, sociólogo, tradutor, diplomata, etc.
Faleceu na cidade de São Paulo (SP), no dia 04 de julho de 1948.
Através de Monteiro Lobato o Projeto Releituras homenageia
a todos os escritores, no momento em que publica seu
centésimo texto. (19-03-99)
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