Fernando Sabino
Como já tive ocasião de contar ( Aventura do Cotidiano
- 4 , em "A Falta que Ela me Faz"), eram três solteirões que
viviam com o pai viúvo naquela casa do interior de Minas. Um dia o mais
novo, e já não tão novo, conheceu uma moça, gostou da moça, acabou se
casando com a moça.
Casou e mudou.
Tempos depois, indo visitar o pai e os irmãos, não
escondeu seu entusiasmo:
- Gente, vocês não sabem como mulher é bom! Serve
para tanta coisa...
Não deixa de ser uma definição do casamento, como
era concebido antigamente. Hoje em dia, prevalece mais a que
decorre do comentário feito por aquele outro, depois que se casou:
- Então quer dizer que casamento é isso? Ela lava e eu
enxugo?
- Pois comigo agora vai ser diferente - pensava
ela, ao deixar o trabalho. Em vez de ir direto para casa
fazer o jantar do marido, foi ao cabeleireiro mudar o penteado.
Depois de vários meses sem cozinheira, chegara
enfim o dia de não encostar a barriguinha no fogão, como ele
costumava gracejar, aliás sem graça nenhuma.
Em vão ela havia tentado avisar, telefonando-lhe
para o escritório, que queria jantar fora naquela noite: não
está na sala, está em reunião, ainda não chegou, já saiu. Onde
diabo estaria? Nenhuma ponta de ciúme chegou a se manifestar na sua
irritação por não encontrá-lo: parece até que está fugindo
de mim, pensou apenas, indo finalmente para casa.
- Eu hoje quero jantar fora - foi declarando,
categórica, quando ele lhe abriu a porta.
- Onde você andou? - perguntou ele, dando-lhe
passagem.
- Fui ao cabeleireiro. E você? Tentei te avisar o
dia todo.
- Me avisar o quê?
- Que eu queria jantar fora.
- Vim mais cedo para casa. Como não te encontrei...
- Nem podia encontrar, pois eu estava no cabeleireiro.
- Eu sei, você já falou. Não te encontrei, e estava com
fome...
Que é que ele queria dizer? Que já havia jantado?
- Jantado, propriamente, não. Como estava com fome,
fritei um ovo, e tinha um resto de arroz na geladeira... Não
achei mais nada.
- Não achou nada porque eu não vim fazer o jantar.
- Estou sabendo. Foi ao cabeleireiro.
- Isso mesmo. Fui e hoje eu quero jantar fora - insistiu
ela: - Não venha me dizer que você não vai me levar só
porque comeu um ovo.
-
Calma, minha filha - fez ele, evasivo: - Jantar onde? Você nem acabou de chegar da rua e já quer sair de novo. Que
diabo de penteado é esse?
O comentário final foi a gota d'água - ela, que esperava
dele um elogio pelo penteado.
- Não pensa que você me leva na conversa - protestou,
indignada: - Eu quero saber se vai me levar para jantar. Se
não vai, diga logo, que eu vou sozinha.
Um tanto temerária, aquela afirmativa, admitiu ela para si
mesma: jantar sozinha como? onde? com quem? e pagar com quê?
- Estou com fome... - choramingou, para ganhar tempo.
Ele fora sentar-se diante da televisão, indiferente,
enquanto ela ficava por ali, lamuriando a sua fome.
- Vê se encontra aí qualquer coisa para comer, como eu fiz -
ele se limitou a dizer.
Ela botou as mãos na cintura e sacudiu com raiva a cabeça,
ao risco de desmanchar o penteado:
- Olha bem para mim e vê se me acha com cara de arroz com
ovo.
- Ovo, só tinha um - ele ria, o cínico! - E o arroz já era.
Num impulso de revolta, ela se voltou para a porta:
- Não preciso de você. Na casa da mamãe deve ter sobrado
alguma coisa do jantar.
- Ridículo - ele se limitou a suspirar, e voltou a se
distrair com a televisão.
Em vez de sair, ela partiu batendo os saltos em direção à
cozinha. Pôs-se a remexer ruidosamente em tudo, devassando a
geladeira, abrindo latas e destampando panelas. Acabou encontrando duas
bolachas e, no armário sobre a pia, uma simples, única e solitária
cebola. Começou a descascá-la, já em lágrimas, soluçando alto para que
ele ouvisse lá da sala. Em pouco ele vinha bisbilhotar:
- Que é que você está fazendo? Está chorando por quê? Por
causa dessa cebola?
- Não seja estúpido - reagiu ela, enxugando as lágrimas com
as costas da mão: - Estou chorando porque estou sem comer!
Quando me casei com você jamais pensei que ainda ia acabar
passando fome.
- Amanhã te levo para jantar fora - concedeu ele.
- Não preciso de você. Se eu quiser, eu sei como encontrar
alguém que me leve ainda hoje.
O sorriso irônico dele não animava a prosseguir nesse
caminho: não encontraria ninguém, ainda mais assim de
repente - nem ao menos uma amiga tão infeliz quanto ela. Descobrindo
no armário um tablete de caldo de carne, animou-se e com deliberação
pôs-se a preparar uma sopa de cebola, enquanto ele voltava
para a televisão.
Levou a bandeja com a sopa para tomar na sala, com as duas
bolachas, como se fosse o melhor dos jantares, esperando que
o cheiro que dela emanava, realmente apetitoso, provocasse nele alguma
fome. Se tal aconteceu, ele não deu mostras: em pouco
desligava a televisão e, espreguiçando, ia para o quarto dormir.
Como era de esperar, passaram a noite de costas um para o
outro. Pela manhã nenhum dos dois tomou a iniciativa de
romper o silêncio. E em silêncio partiu cada um para o seu trabalho. O
que mais doía nela era o detalhe do penteado-que fez questão
de desfazer durante o banho.
Ao longo do dia não se telefonaram, como costumavam fazer.
À tarde, quando ela regressou, teve a surpresa de sua vida:
encontrou a mesa posta, com o que havia de melhor a
esperá-la para o jantar dos dois. Até mesmo, como sobremesa, aquela
tortinha de mil-folhas de que gostava tanto.
Ao lado do prato, um bilhete: "Para que você hoje não passe
fome."
- Como é que você fez tudo isso? - exclamou, ao vê-lo surgir
do quarto.
- Encostando a barriguinha no fogão.
- Encomendou no restaurante - ela concluiu, encantada.
Ele a abraçou, afagou-lhe os cabelos:
- Ficam tão mais bonitos assim, ao natural.
Findo o jantar, ele quis levá-la em seguida para o quarto,
mas ela pediu que esperasse: ia primeiro tirar a mesa e
lavar os pratos.
- Eu lavo e você enxuga - disse, com doçura. Mais tarde, já
na cama, ao tê-la nos braços, ele admitiria para si mesmo:
- Como mulher é bom! Serve para tanta coisa...
Texto extraído do livro " No Fim Dá Certo ", Editora Record
– Rio de Janeiro, 1998, pág. 153.
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