Carlos Drummond de Andrade |
I-
ANTIGAMENTE, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e
muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral
dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes
pé-de-alferes, arrastando
a asa, mas ficava longos meses debaixo do balaio. E levavam tábua, o
remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As
pessoas, quando corriam, antigamente, era de tirar o pai da forca, e
não caíam de cavalo magro.Algumas jogavam verde para colher maduro, e
sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não empedia que, nesse
entrementes, esse ou aquele embarcasse em canoa furada. Encontravam
alguém que lhes passava manta e azulava, dando às de Vila-diogo. Os
idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar a fresca; e
também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam
ao animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de
altéia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se
metiam em camisa de onze varas, e até em calças pardas; não admira que
dessem com os burros n'água.
Havia os que tomavam chá em criança, e, ao visitarem família da maior
consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus
respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: "Farei presente." Outros,
ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu , exclamando: "Louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristo"; ao que o Reverendíssimo correspondia:
"Para
sempre seja louvado." E os eruditos, se alguém espirrava - sinal de
defluxo -, eram impelidos a exortar: "Dominus Tecum." Embora sem saber
da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao
vigário, e com isso punham a mão em cumbuca. Era natural que com eles se
perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a
desfeita que l he faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho
era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram encapetados;
chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não :
verdadeiros cromos, umas tetéias.
Antigamente, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios;
outros eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por
tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde judas perdeu as
botas. Uns raros amarravam cachorro com lingüiça. E alguns ouviam cantar
o galo, mas não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda,
tinham conta no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse
à porta, desde que o moleque do tabuleiro, quase sempre um "cabrito",
não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que,
andando por ceca e meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da corte do
Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente
ao dono da casa um canivete roscofe. As donzelas punham carmim e
chegavam à sacada para vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente,
alguns eram mais que velhacos: eram grandessíssimos tratantes.
Acontecia o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava
o próprio chamar o doutor e, depois ir à botica para aviar a receita, de
cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era phtysica, feia era o
gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos
lombrigas, asthmas os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e
capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O.London,
não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam:
descansavam. Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora.
II-
Antigamente, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um
se esquecia de arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era
capaz de entrar no couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés
sem tugir nem
mugir. Nada de bater na corcunda do padrinho, nem de debicar os mais
velhos, pis levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte
e logo voltava aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do
mestre, mesmo que não entendesse patavina da instrução moral e cívica.
O verdadeiro smart calçava botina de botões para comparecer todo liró
ao copo d'água, se bem que no convescote apenas lambiscasse, para
evitar flatos. Os bilontras é que eram um precipício, jogando com pau
de dois bicos, pelo que carecia muita cautela e caldo de galinha. O
melhor era pôr as barbas de molho diante de um treteiro de topete;
depois de fintar e de engambelar os coiós, e antes que se pusesse tudo
em pratos limpos, ele abria o arco. O diacho eram os filhos da
Candinha: que somava a candongas acabava na rua da amargura, lá
encontrando, encafifada, muita gente na embira, que não tinha nem para
matar o bicho; por exemplo, o mão-de-defunto.
Bom era ter costas quentes, dar as cartas com a faca e o queijo na
mão; melhor ainda, ter uma caixinha de pós de pirlimpimpim, pois isso
evitava de levar a lata, ficar na pindaíba ou espichar a canela antes
que Deus fosse
servido. Qualquer um acabava enjerizado se lhe chegavam a urtiga no
nariz, ou se o faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça,
no dia-de-reis, um capado! Ganhar vidro de cheiro marca Barbante, isso
não: a mocinha dava o cavaco. Às vezes, sem tirte nem guarte, aparecia
um doutor pomada, todo cheio de noive horas; ia-se ver, debaixo de tanta
farafo era um doutor mula ruça, um pé rapado, que espiga! E a moçoila,
que começava a nutrir xodó por ele, que estava mesmo de rabicho, caía
das nuvens. Quem queria lá fazer papel pança? Daí se perder as
estribeiras por uma tutaméi, um alcaide que o caixeiro nos impingia,
dando de pinga um cascão de goiabada.
Em compensação, viver não era sangria desatada, e até o Chico vir de
baixo vosmecê podia provar uma abrideira que era o suco, ficando na
chuva mesmo com bom tempo. Não sendo pexote, e soltando arame, que vida
supimpa a do Degas! Macacos me mordam se estou pregando peta. E os
tipos que havia: o pau-para-toda-obra, o vira-casaca (este cuspia no
prato em que comera), o testa-de-ferro, o sabe-com-quem-está-falando, o
sangue-de-barata, o dr. Fiado que morreu ontem, o Zé-povinho, o biltre,
o peralvilho, o salta-pocinhas, o alferes, a polaca, o passador de nota
falsa, o mequetrefe,
o safardana, o maria-vai-com-as-outras....Depois de mil peripécias,
assim ou assado, todo mundo acabava mesmo batendo com o rabo na cerca,
ou simplesmente a bota, sem saber como descalçá-la. Mas até aí morreu o
Neves, e não foi no dia de São Nunca de tarde: foi vítima de pertinaz
enfermidade que zombou de todos os recursos da ciência, e acreditam que
a família nem sequer botou fumo no chapéu?
Carlos Drummond de Andrade
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