Rubem Braga - Mãe |
(Crônica dedicada ao Dia das Mães,
embora com o final inadequado, ainda que autêntico.)
Rubem Braga
O menino e seu amiguinho brincavam nas primeiras espumas; o
pai fumava um cigarro na praia, batendo papo com um amigo. E o mundo
era inocente, na manhã de sol.
Foi então que chegou a Mãe (esta crônica é modesta
contribuição ao Dia das Mães), muito elegante em seu short,
e mais ainda em seu maiô. Trouxe óculos escuros, uma
esteirinha para se esticar, óleo para a pele, revista para ler, pente
para se pentear — e trouxe seu coração de Mãe que
imediatamente se pôs aflito achando que o menino estava
muito longe e o mar estava muito forte.
Depois de fingir três vezes não ouvir seu nome gritado pelo
pai, o garoto saiu do mar resmungando, mas logo voltou a se
interessar pela alegria da vida, batendo bola com o amigo.
Então a Mãe começou a folhear a revista mundana — "que vestido
horroroso o da Marieta neste coquetel" — "que presente de casamento
vamos dar à Lúcia? tem de ser uma coisa boa" — e outros
pequenos assuntos sociais foram aflorados numa conversa
preguiçosa. Mas de repente:
— Cadê Joãozinho?
O outro menino, interpelado, informou que Joãozinho tinha
ido em casa apanhar uma bola maior.
— Meu Deus, esse menino atravessando a rua sozinho! Vai lá,
João, para atravessar com ele, pelo menos na volta!
O pai (fica em minúscula; o Dia é da Mãe) achou que não era
preciso:
— O menino tem OITO anos, Maria!
— OITO anos, não, oito anos, uma criança. Se todo dia morre
gente grande atropelada, que dirá um menino distraído como
esse!
E erguendo-se olhava os carros que passavam, todos guiados
por assassinos (em potencial) de seu filhinho.
— Bem, eu vou lá só para você não ficar assustada.
Talvez a sombra do medo tivesse ganho também o coração do
pai; mas quando ele se levantou e calçou a alpercata para
atravessar os vinte metros de areia fofa e escaldante que o
separavam da calçada, o garoto apareceu correndo alegremente com uma
bola vermelha na mão, e a paz voltou a reinar sobre a face
da praia.
Agora o amigo do casal estava contando pequenos escândalos
de uma festa a que fora na véspera, e o casal ouvia, muito
interessado — "mas a Niquinha com o coronel? não é
possível!" — quando a Mãe se ergueu de repente:
— E o Joãozinho?
Os três olharam em todas as direções, sem resultado. O
marido, muito calmo — "deve estar por aí", a Mãe
gradativamente nervosa — "mas por aí, onde?" — o amigo
otimista, mas levemente apreensivo. Havia cinco ou seis meninos
dentro da água, nenhum era o Joãozinho. Na areia havia outros. Um deles,
de costas, cavava um buraco com as mãos, longe.
— Joãozinho!
O pai levantou-se, foi lá, não era. Mas conseguiu encontrar
o amigo do filho e perguntou por ele.
— Não sei, eu estava catando conchas, ele estava catando
comigo, depois ele sumiu.
A Mãe, que viera correndo, interpelou novamente o amigo do
filho. "Mas sumiu como? para onde? entrou na água? não sabe?
mas que menino pateta!" O garoto, com cara de bobo, e
assustado com o interrogatório, se afastava, mas a Mãe foi segurá-lo
pelo braço: "Mas diga, menino, ele entrou no mar? como é que
você não viu, você não estava com ele? hein? ele entrou no
mar?".
— Acho que entrou... ou então foi-se embora.
De pé, lábios trêmulos, a Mãe olhava para um lado e outro,
apertando bem os olhos míopes para examinar todas as
crianças em volta. Todos os meninos de oito anos se parecem
na praia, com seus corpinhos queimados e suas cabecinhas castanhas. E
como ela queria que cada um fosse seu filho, durante um
segundo cada um daqueles meninos era o seu filho, exatamente
ele, enfim — mas um gesto, um pequeno movimento de cabeça, e deixava
de ser. Correu para um lado e outro. De súbito ficou parada olhando o
mar, olhando com tanto ódio e medo (lembrava-se muito bem da
história acontecida dois a três anos antes, um menino estava
na praia com os pais, eles se distraíram um instante, o
menino estava brincando no rasinho, o mar o levou, o corpinho só
apareceu cinco dias depois, aqui nesta pr aia mesmo!) — deu
um grito para as ondas e espumas — "Joãozinho!".
Banhistas distraídos foram interrogados — se viram algum
menino entrando no mar — o pai e o amigo partiram para um
lado e outro da praia, a Mãe ficou ali, trêmula, nada mais
existia para ela, sua casa e família, o marido, os bailes, os Nunes,
tudo era ridículo e odioso, toda essa gente estúpida na
praia que não sabia de seu filho, todos eram culpados —
"Joãozinho !" — ela mesma não tinha mais nome nem era
mulher, era um bicho ferido, trêmulo, mas terrível, traído no mais
essencial de seu ser, cheia de pânico e de ódio, capaz de tudo —
"Joãozinho !" — ele apareceu bem perto, trazendo na mão um sorvete
que fora comprar. Quase jogou longe o sorvete do menino com
um tapa, mandou que ele ficasse sentado ali, se saísse um passo
iria ver, ia apanhar muito, menino desgraçado!
O pai e o amigo voltaram a sentar, o menino riscava a areia
com o dedo grande do pé, e quando sentiu que a tempestade
estava passando fez o comentário em voz baixa, a cabeça
curva, mas os olhos erguidos na direção dos pais:
— Mãe é chaaata...
Maio, 1953
Rubem Braga é considerado o melhor cronista brasileiro de
todos os tempos.
Texto extraído do livro “A Cidade e a Roça”, Editora do
Autor – Rio de Janeiro, 1964, pág. 57.
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