Sobre o futebol e o estupro
Rubem Alves
Já contei do meu primo Nilo, aquele que morreu por causa de seu amor
ao Botafogo: bebia para comemorar quando Botafogo ganhava, bebia para
apagar a tristeza quando o Botafogo perdia. Mas, de repente,
me veio uma situação para a qual não encontrei resposta: "E
quando o Botafogo empatava, o que é que o Nilo fazia?".
Depois de muito meditar conclui que, quando o Botafogo
empatava, o Nilo bebia dobrado, porque não existe coisa mais
chata que jogo que termina empatado. Jogo empatado é feito
transa não consumada, os dois na cama, uma coisa emocionante tem de
acontecer, os dois se esfregam, o tempo todo, pelejando para
ver se pinta alguma emoção, mas tudo é inútil pedindo desculpas ao
outro, sem saber o que dizer e fazer. O jeito é beber...
A partida terminou empatada. Os dois times broxaram. Não
adianta dizer que o espetáculo coreográfico foi maravilhoso,
que os times exibiram técnica de rara beleza. Ninguém vai ao
futebol para ver beleza. Beleza em futebol só é bonita quando o time da
gente ganha. Futebol não é concerto. É pra sofrer e fazer
sofrer: um espetáculo depravado, perverso, onde o orgasmo
acontece sobre o sado-masoquismo. Ninguém assiste a um jogo de
futebol pôr razões estéticas. O tesão do futebol se encontra,
precisamente, na possibilidade de fazer o outro sofrer.
Pois o que é um gol? Um gol é um estupro. O prazer do gol é
o prazer de ter estuprado o adversário, de ter metido a bola
da gente no buraco dele contra a vontade dele. Uma partida
de futebol é uma tentativa de estupro estilizada. Vai um time levando a
bola, a bola tem de estar bem cheia, dura, vai o jogador
ludibriando as tentativas de defesa, passando a bola no meio das pernas,
o outro time faz tudo para evitar, fecha os buracos, todos
lutando, não querem que a bola entre no lugar mais sagrado do seu time,
aquele buraco guardado pelo goleiro, vem o chute potente, a
bola vai, o goleiro se estira, inutilmente, a bola entra.
Gol! O estupro aconteceu.
A torcida grita de prazer. É o orgasmo. E geme a torcida do
estuprado: qualquer penetração violenta dói muito. Mas o
prazer do estuprador está precisamente nisso: é o sofrimento
do outro que lhe dá uma medida da sua potência. Nada mais broxante para
o estuprador que encontrar uma vítima que não ofereça
resistência, que se abra toda e até goste. A tentativa de
estupro terminaria na hora. O estuprador ficaria broxa. O mesmo
com o futebol. É a resistência ao estupro que dá ao estuprador a medida
de sua macheza. Cada prazer de gol é prazer de um estupro
bem sucedido.
Rubem Alves nasceu em Boa Esperança, Minas Gerais, em 1933.
Bacharel em Teologia — Seminário Presbiteriano de Campinas, SP. Mestre
em Teologia — Union Theological Seminary, NY, USA, é doutor em
Filosofia pelo Princeton Theological Seminary, NJ, USA. É,
também, psicanalista pela Associação Brasileira de Psicanálise de São
Paulo. Foi professor junto à UNICAMP, adjunto e titular da Faculdade de
Educação, livre-docente pelo Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas e Diretor da Assessoria de Relações
Internacionais daquela Universidade. Publicou diversos livros, dentro os
quais destacamos "O que é a Religião?", "Filosofia da Ciência",
"Conversas com quem gosta de ensinar", "Ghandi: A política dos gestos
poéticos", "A alegria de ensinar", além de vários livros infantis.
O texto acima foi publicado no jornal "Correio Popular",
Campinas, edição de 18-06-1998. Colaboração de Ricardo A.
Bacci.
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