Começou, ele disse
                                   
                    Marina Colasanti
                                   
                                   
                                    Acordou com o primeiro tiro sem saber porque tinha acordado.
   Trazia porém do sono um aviso de alarme. Sem se mexer, sem abrir
completamente os olhos para não denunciar sua vigília, olhou em volta
   pela fresta das pálpebras. Lentamente percorreu as sombras,
detendo-se mais na cadeira, onde as roupas jogadas criavam
formas que não lhe eram familiares. Fazia sempre assim quando acordava
de repente no meio da noite e o coração descompassado lhe
dizia que talvez houvesse algum invasor no quarto. E cada vez se detinha na cadeira. Não havia ninguém. Permitiu-se então abrir os
   olhos, levantar a cabeça, só pelo prazer de tornar a fechá-los,
   ajeitando-se no travesseiro. O segundo tiro estalou seco na rua.
                                   
     O som colheu-o no estômago, na cabeça, na pele. E com a pele
pareceu eriçar os lençóis, ferir a colcha. Mesmo assim não
                              se mexeu.
                                   
      Um tiro que assalta nosso sono sempre atinge o alvo, ainda
que o alvo não sejamos nós, pensou surpreendendo-se com a
      nitidez do pensamento. Sentia-se atingido, a sensação tão
             mais importante do que a ordem das palavras.
                                   
     Esperou um instante para ver se a mulher a seu lado na cama
 se mexia. Mas o colchão continuou imóvel como se vazio.
Melhor assim, ela era muito impressionável, se acordasse o
assunto acabaria se estendendo no dia seguinte tornando-se difícil de apagar. Ele próprio continuou na mesma posição. Tentou ouvir
        a respiração dela. Antes que o conseguisse, adormeceu.
                                   
     Talvez tivesse apenas cochilado, questão de minutos, porque
logo estava novamente acordado, olhos bem abertos, nenhum
descompasso, e a certeza de saber quem lhe entrava quarto
 adentro. Dessa vez não era um tiro. Rajadas de metralhadora pareciam
  ricochetear entre os prédios estremecendo os vidros da janela. Um corte no ar, picotes abrindo superfícies que ele
 não via, não imaginava, recusando-se ainda a pensar carne e sangue. As rajadas seguiam-se a intervalos pequenos. E a cada brecha de silêncio
ele desejava que fosse a última, fechando a noite onde ela
 havia sido rasgada, restaurando integridade da escuridão
   como o lago restaura sua superfície encobrindo o corpo que caiu.
        A primeira granada estourou altíssima. Começou, disse
mulher. E ele então mexeu-se porque já não era necessário
       cuidar do sono dela. Começou, respondeu. Continuaram no
                               escuro.
                                   
     Da rua — mas seria mesmo daquela rua?, os sons se alastravam
 com tal rapidez que poderiam estar vindo da praça, ou de
 outra rua —, de onde quer que fosse, ali embaixo ou ali perto, chegavam agora tiros de revólver. E gritos. Eram ordens gritadas, iradas, esparsas. Será que não acertam ninguém, perguntou-se ele calado, porque nenhum grito de dor ou de medo lhe chegava e a dor e
  medo pareciam ser só dele, dele que ali deitado não era a caça de
     ninguém e se sentia ferido. Desejou que se matassem, que se
          rasgassem, que se largassem aos pedaços pelo chão.
                                   
     Levantou-se. Não vai, disse a mulher, embora sabendo que ele só iria até a janela e que mesmo assim o chegaria perto dos
vidros, protegendo-se atrás da quina de cimento. Não vai,
 você está louco, uma bala perdida te acerta. Nessa altura não chega, disse ele certo que no alto daquele prédio alto nenhuma bala viria se perder, e ainda assim não ousando aproximar-se nem
 muito menos debruçar o corpo e esticar o pescoço para vasculhar,
vasculhar o escuro e saber, com alguma mínima certeza, o que estava se
                              passando.
                                   
     Entre vidro e cimento olhou para baixo. Acreditou ter visto
sombras furtivas. Certamente defendiam-se atrás dos carros
      estacionados, protegiam-se nos portões, alguns haveriam de
 correr entre um anteparo e outro, armas nas mãos. Estão lá embaixo, disse para a mulher. Mas sabia que tinha visto o que queria ver, talvez não houvesse ninguém naquele rio negro que era a
  rua visualizada do alto e ainda por cima encoberta pelas copas das
 árvores, talvez estivessem mais para lá, além do sinal luminoso que
     alheio como um farol continuava a trocar de cor.
                                   
      Uma explosão. E quase em cima daquela, outra. Mais fortes,
 dessa vez. Recuou rápido, meteu-se na cama. Estão usando
        armamento pesado, disse a mulher como se entendesse de armamento. E ele respondeu, talvez sejam granadas, sabendo muito bem que
nunca antes tinha ouvido uma explosão de granada e que não
           saberia distingui-la de qualquer outra explosão.
                                   
        A fuzilaria pipocou, as balas pareciam ferir chapas de
  metal. Ao longe, sons semelhantes responderam. Depois
     explosões em série, um estrondo. E o silêncio. Nenhum carro
                               passava.
                                   
     Eles não encontravam nada para dizer. Pensavam que deveriam
   tentar dormir porque no dia seguinte, mas como? e se
   deixavam ficar, tomados por aquele medo que não era medo porque
  nada iria lhes acontecer mas que era medo porque tudo estava lhes acontecendo. Durante longo tempo ouviram o tiroteio intenso
   que ora se aproximava, ora parecia afastar-se, quase ocorresse atrás de muros. Aquilo não tinha fim. Como uma guerra, pensou
 ele encolhendo as pernas sobre o peito, de costas para a mulher. As
 rajadas multiplicavam-se em ecos, silenciavam de repente, sobrepunham-se. Sentiu um desespero sem conserto apertar-lhe
a boca, azedar-lhe a saliva. Como uma guerra, disse em voz alta. E ela
  não respondeu, mas ele teve certeza de que em silêncio
         repetia, uma guerra meu deus uma guerra.
                                   
       Uma guerra da qual amanhã certamente não haveria nenhum vestígio nas ruas, nenhuma notícia no jornal. Uma guerra em que todos lutavam com o rosto coberto. Chegaria um momento, na madrugada, quando as pessoas em suas camas estivessem exaustas, olhos
  ardendo de sono e secura, quando a batalha lá embaixo
estivesse perdida ou gasta, chegaria um momento em que não se ouviriam
 mais tiros só cães latindo, e ele se perguntaria, como se
  perguntava cada vez, onde estão os mortos, onde, e quantos são, um momento em que afinal esticaria as pernas debaixo do lençol
e deitado sobre as costas se permitiria afinal adormecer.
                                   
      Olhou o despertador, mas a fluorescência há muito tinha se
  esvaído. Que hora será? perguntou à mulher, quando na
       verdade queria perguntar há quanto tempo estamos aqui e quanto tempo ainda teremos que ficar ouvindo, ouvindo o esfacelamento da
  noite. É tarde, respondeu a mulher só para dar-lhe uma
resposta, ela que também tinha perguntas a fazer mas, para quê? E ele
        pensou é tarde, e teve vontade de chorar.
                                   
     Marina Colasanti (1938) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11
anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de
 contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o
 Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão.
Dentre outros escreveu E por falar em amor; Contos de amor rasgados; Aqui entre nós, Intimidade pública, Eu sozinha, Zooilógico, A
 morada do ser, A nova mulher (que vendeu mais de 100.000 exemplares), Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal
  delicado, Gargantas abertas e os escritos para crianças Uma idéia toda azul e Doze reis e a moça do labirinto de vento. Colabora, também,
   em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna. O texto acima foi extraído do livro "O
   leopardo é um animal delicado", Editora Rocco — Rio de Janeiro,
                  1998, pág. 90.
                                   
                                   
                                   
                                   
                                   
                                   
                                   
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