Affonso Romano de Sant'anna - O GLOBO, 19/9/99
Você sabe o que é um palíndromo? É uma palavra ou mesmo uma frase que
pode ser lida de frente pra trás e de trás pra frente mantendo o mesmo
sentido. Por exemplo, em português: "amor" e "Roma"; em espanhol:
"Anita lava la tina". Ou, então, a frase latina: "Sator arepo tenet
opera rotas", que não só pode ser lida de trás pra frente, mas pode
ser lida na vertical, na horizontal, de baixo pra cima, de cima pra
baixo, girando os olhos em redor deste quadrado:
S A T O R
A R E P O
T E N E T
O P E R A
R O T A S
Essa frase latina polivalente foi criada pelo escravo romano Loreius
200 anos antes de Cristo, e tem dois significados: "O lavrador mantém
cuidadosamente a charrua nos sulcos" e/ou "o lavrador sustém
cuidadosamente o mundo em sua órbita". Osman Lins construiu o romance
"Avalovara" (1973) em torno desse palíndromo.
Muita gente sabe o que é um caligrama - aqueles textos que existiam
desde a Grécia em que as letras e frases iam desenhando o objeto a que
se referiam - um vaso, um ovo, ou então, como num autor moderno tipo
Apollinaire, as frases do poema se inscrevendo em forma de cavalo ou
na perpendicular imitando o feitio da chuva.
Mas pouca gente sabe o que é um lipograma.
Lipo significa tirar, aspirar, esconder. Portanto, um lipograma é um
texto que sofreu a lipoaspiração de uma letra. O autor resolve
esconder essa letra por razões lúdicas. Já o grego Píndaro havia
escrito uma ode, sem a letra "s". Os autores barrocos no século XVII
também usavam este tipo de ocultação, porque estavam envolvidos com o
ocultismo, com a cabala e com a numerologia.
Por que estou dizendo essas coisas?
Culpa da Internet.
Esses jogos verbais que vinham sendo feitos desde as cavernas, agora
foram potencializados com a informática. Dizia eu numa entrevista
outro dia que estamos vivendo um paradoxo riquíssimo: a mais avançada
tecnologia eletrônica está resgatando o uso lúdico da linguagem e uma
das mais arcaicas atividades humanas - a poesia. Os poetas, mais que
quaisquer outros escritores, invadiram a Internet. Se em relação às
coisas prosaicas se diz que a vingança vem a cavalo, no caso da poesia
a vingança veio a cabo, galopando eletronicamente. Por isto que toda
vez que um jovem iniciante me procura com a angústia de publicar seu
livro, aconselho-o logo: "Meu filho, abra uma página sua na Internet
para não mais se constranger e se sentir constrangido diante dos
editores e críticos. Estampe seu texto na Internet e deixe rolar".
Acabo, por exemplo, de descobrir na Internet, graças à revista "Lire",
um grande parque de diversões, um playcenter do "letrismo" e da
logomania. Refiro-me a uma meia dúzia de sites que praticam
eletronicamente, e com melhor resultado, aquilo que os vanguardistas
pregaram no princípio do século. Lá estão:
1. www.telerama.fr
2. www.00h00.com
3. rafale.worldnet.net/~boissari/
4. www.arts.unimelb.edu.au/~espaces/
5. barbery.net/liste/oulipo/index.htm
6. www2.ec-lille.fr/~book/oulipo/
E nesta linha descubro que foi lançado um CD-ROM intitulado "Machine a
écrire" explorando, na linguagem, a lógica aleatória, a escrita
ambulatória e as permutações. Vivemos realmente tempos de neo e
ultrabarroquismo. Pois foi no barroco que a análise combinatória, as
permutações e os protótipos de computadores, como aquele construído
por Pascal, surgiram. Agora inventaram até a palavra "metatura",
mistura de matemática e literatura.
O escritor francês George Perec (1936-1982) é assunto de um daqueles
sites. Com o romance "La disparition" (1969) fez uma obra
lipogramática, onde não há palavras com a letra "e". Curiosamente, a
crítica nem notou isto. E para mostrar que era um craque, depois
daquela façanha, fez outro texto - "Les revenentes"(1972) - onde as
palavras só tinham a vogal "e". Não satisfeito, Perec lançou um
movimento chamado "literatura potencial" ou "oulipo". Amador de jogos
verbais publicou dezenas de trabalhos, até mesmo um livro de
alucinadas palavras cruzadas.
Há uns meses atrás quando estava em Paris pesquisando para um novo
livro que já entreguei à Rocco - "Barroco, do quadrado à elipse" -
conheci melhor toda a obra de Perec. E constatei que não eram apenas o
escravo romano Loreius e meu saudoso amigo Osman Lins que eram
oulipianos, até eu mesmo o era, conforme testemunha o livro "Poesia
sobre poesia" (1965-1975). Fui oulipiano, digamos, avant la lettre.
Os livros de Perec são também verdadeiros parques de diversões da
linguagem: tudo o que se pode imaginar de jogos verbais e visuais, ele
faz. Vai numa linha similar a Raymond Queneau (1903-1976) que publicou
"Cent mille milliards de poèmes" (1961), onde os versos alexandrinos
propostos podem ser arrumados de infinitas maneiras. Segue na direção
do "Duzentas mil situações dramáticas" de Etienne Souriau, num
interminável teatro do texto.
Quem não gosta de brincar com as palavras? As crianças adoram. O
professor João Maia terminou um livro para crianças ensinando a
desenvolver a leitura por jogos poéticos. As seções de palavras
cruzadas e de logomania nos jornais e revistas são freqüentadíssimas.
E me ocorreu que possivelmente na Internet deve haver muita coisa
sobre isto. Outro dia vi um livro de um americano que inventou cem
jogos diferentes com palavras. É o ludismo verbal puro.
Mas certos jogos podem virar mania. Escritores podem ter sintoma de
uma perturbadora "logopatia", como oradores têm logorréia. Outros, às
vezes, se perdem na logomaquia, ou seja, na disputa de palavras pela
palavra. Isto pode levar, como em vários casos conhecidos, a uma
"logolatria" - uma adoração da palavra, que em casos crônicos se
corporifica numa "logofania" - ou seja, o autor achar que é a própria
encarnação do Verbo.
Advertidos destes riscos brinquemos com as palavras e se possível
façamos uma melhor literatura.
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NOTA: Fora isto, tendo que deixar esta crônica adiantada devido a uma
viagem aos Estados Unidos, estou tão atônito e indignado quanto vocês,
com o que ocorre em Timor Leste e com o assassinato do juiz Leopoldino
Marques do Amaral. São a mesma coisa. Um povo querer ter independência
e uma pessoa ter dignidade equivalem a assinar a própria sentença de
morte.