Leia crônicas de F. Pereira da Nóbrega



A tartaruga

Não era fugitiva. Era desgarrada.

Vinha do descuido de alguma porta escancarada. Andava devagarzinho, como quem carrega saudades. Menos tinha vontade de ir do que talvez de voltar.

Parou na minha calçada, quase em frente à porta de entrada. Pareceu-me dizer: aqui é meu lugar.

Temi que a pegassem, dela fizessem o prato do dia. Alguém ponderou: não é tartaruga, é jabuti. Não tenho preconceito de raças. Adotei-a por anos, Tartaruga – era assim que ela era chamada.

O animal ajudou-me a filosofar.

Lembrei-me de uma concepção que vem das civilizações antigas. Diz que a tartaruga é símbolo do homem.

Eu tenho, curvo, acima de mim, o céu que me cobre, abaixo de mim , retilíneo, o chão que piso. Ela por cima tem o casco, quase abóbada, por baixo outro casco, em horizontal. Entre um e outro, ela e eu passamos a vida.

Não pararam por aí minhas reflexões. Este animal vive longos anos certamente porque não tem pressa. E pressa não tem – por que será?

Lembrei-me dos que carecem de teto próprio, vivem em casa alugada.

Há os que tentam construir a casa própria, ficam na metade. Há os que pedem empréstimos para isso. Depois discutem na Justiça, com a Caixa Econômica, com empresários, a escalada das prestações mensais.

Lembrei-me ainda dos que são despejados. Não tiveram como chegar ao fim da aquisição de sua própria casa. São quase 10 milhões de brasileiros sem teto, uns inquilinos de parentes, outros dormindo debaixo das pontes.

Resolvi o enigma. Tartaruga tem vida longa, pressa não tem porque não tem esses problemas, não paga aluguel, não é inquilino. Por onde vai, leva consigo sua casa própria

Esta semana procurei minha tartaruga, não a encentrei mais. “ Foi-se embora, não disse nada, nem uma carta deixou” . Novamente vai por aí, menos fugitiva que desgarrada. Fico imaginando que vai no mesmo passo, lento, vagaroso, de quem vai carregando o peso da saudade.

Se você vir por aí um jabuti que responde por tartaruga, se carrega consigo seu céu e seu chão, se mais que isso carrega sua própria casa, se não tem pressa em ir porque tem saudades de voltar, é ela, minha tartaruga. Diga-lhe que porta aberta não serve só para fugir, também para retornar.


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