Leia crônicas de F. Pereira da Nóbrega

F. Pereira Nóbrega


Réquiem por Flanelinha

Ele nada tinha. Portanto, nada era. De dia guardava carros. De noite não se guardava. Via a noite passando onde de dia os carros passavam: num terreno abandonado, no cruzamento de importantes avenidas da capital.

Vivia nu mundo em que ele era a sobra. Havia lugares para carros em garagens, para livros em bibliotecas, para porcos em pocilgas, para cavalos em haras. Para Flanelinha não havia lugar. De dia contando carros, de noite, contando estrelas e a lua dormindo nos olhos de quem não conseguia dormir.

Domingo passado Flanelinha enfim adormeceu. Não é que lhe chegara o sono. A morte chegou primeiro. Alguém jogou enorme pedra sobre sua cabeça, esmagou cérebro e Flanelinha morreu.

Agora a lei não sabe quem matou, quem morreu. Falta identidade. ao cadáver. E pobre precisa desse documento? Eles têm apelidos mais que nomes próprios. O nome desse? Ninguém sabe. Sua identidade era sua sobra na sociedade: aquele que guardava carros, ali, - como era mesmo o nome dele?

Para que nome quando a sorte define mais? Menos sortudo que livros e carros, que porcos e cavalos, esse não teve lugar na escola, na família, no hospital. Se fosse para a cadeia, também ali não teria lugar. Mas sua profissão era conseguir lugar para carros.

Flanelinha era um pedaço desta humanidade. Se grão de ouro é ouro, grão de gente é gente. Construímos o mundo do ter, não do ser. Quem nada tem nada é. Mas esse grão da humanidade ainda era sujeito de todos os direitos humanos, sobretudo o de viver, sem o qual os demais ficam como Flanelinha - sem lugar na existência.

Assim não pensa a sociedade do ter. Em SP, recentemente, entre mortos e feridos, 16 moradores de rua foram agredidos. Tudo é continuação daqueles que ontem queimaram índio em Brasília, moradores de rua noutras capitais.

Que sociedade estamos construindo? Se os que mais possuem exterminam os que menos têm, o último dia da humanidade será o de um só, exterminador da espécie, para curtir na solidão o exílio da humanidade que para si escolheu.

Mais racional foi Flanelinha, buscando servir como podia a cada humano que em seu caminho passava. E se o ser de gente não mais valia, guardava-lhes os carros – o ter – só parando ao se largar dessa humanidade.


Envie carta para Vini e Jobis

Assine nosso Livro Nosso Mundo - Página Inicial Cantinho Lilás - Página Inicial Assine a Lista de Atualização de "Nosso Mundo"
Clique abaixo para participar da lista Espiritavox