Leia crônicas de F. Pereira da Nóbrega

F. Pereira Nóbrega


Repouso do mendigo

Postara-se nas esquinas. Cada frase dita terminara com as mesmas palavras: “... pelo amor de Deus”. Quando a tarde desceu, contou os tostões ganhos e teve a impressão de que os amigos de Deus se tornavam raros.

O dia inteiro, seus olhos viram coisas que o coração desejara. Viram o charuto e o whisky importados, cada um esperando sua vez na fila da boca do nobre. Passou a moça, provocante, nas vestes exibindo mais que cobrindo partes do sensual. O impossível mais que a virtude o convidou a ser casto. Nenhuma delas aceitaria um mendigo numa noite de amor.

Começou a passar o cortejo que precedia quem aqui era hóspede e na sua terra era rei. Antes viera a polícia, escondendo todos os mendigos. Como quem joga lixo no lixo, ele foi jogado numa Kombi, despejado no bairro menos nobre da cidade. “Não apareça no centro até o rei ir embora”. Respondeu “sim”. A vinda inteira, quando não dizia “sim” dizia “sim, senhor”. A vida inteira, mendigos foram a vergonha dos nativos na hora em que os reis passam.

No bairro ele ficou até quando luzes no horizonte se acenderam. Começou a retornar ao centro da cidade. Dentro de seus andrajos, era a vergonha de existir sem a coragem de se manar. Não mendigos, os ricos, sim é que se matam.

A fome pedia janta para quem não almoçara. Alguém lhe deu muitos reais. Estava certamente pagando promessa. Alguém lhe perguntou se tinha troco para nota de 1 Real. Curtia a chuva fina, no meio da rua. Não pediu abrigo, não forçou entrada. Ninguém o acolheria nem para passar chuva. E longe de invadir, mendigo sempre respeita a propriedade privada. Olhou o céu. Viu o avião. Jamais entrara naquele “bicho”, jamais veria um de perto.

Veio o sono, hora do único prazer que a vida não lhe negara. Adormeceu, na inconsciência de tudo, no prazer de se ignorar. Na vida mendiga, a noite é o prazer do dia. Adormeceu, sonhou. Viajava de avião. A aeromoça era provocante como aquela que o dia lhe mostrara. Bebeu whisky, fumou charuto importado.

De repente, não era mais sonho, era realidade. O rei estava de volta, os mendigos eram recambiados. O soldado o acordou com a ponta da bota. Não há coisa mais estúpida do que interromper o sono do mendigo. E ele, paciente: “meu Deus, neste mundo quando finda de tanto rei passar!”.


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