Projeto DOSVOX Pena e Palha - F. Pereira da Nóbrega

F. Pereira Nóbrega


Pena e palha

A palha é a pena do coqueiro. A pena é a palha da ave., Mas eu, racional, tenho pena de alguém que tem palha. Essa aconteceu no Ceará. Após a noite de invasão, de um terreno baldio na capital, os humildes buscavam com que cobrirem seus barracos improvisados. Um jovem, de 22 anos, entrou na granja do vizinho, subiu ao coqueiro para retirar uma palha. O vigilante não perguntou nem respondeu. Não deu alarme nem interrompeu. Seu primeiro gesto foi o tiro para fazer do outro cadáver.

Anos atrás, em João Pessoa, o pivete saiu correndo com a mercadoria roubada do supermercado. Também não se perguntou nem se prendeu o outro. O tiro foi para matar Nesses últimos meses, o Ocidente desabou avalanches de críticas a Fidel Castro. Estava fuzilando inimigos políticos. A Ilha pode ser maldita. Mas não a maldigam os que mais sujos que ela alimentam cemitérios clandestinos da iniciativa privada e a três por dois usurpam o direito de matar.

Ocidentais riem da Índia onde o homem pára em respeito à vaca sagrada que passa. Aqui, sagradas são a fruta, a palha. Aqui o direito de possuir é também o direito de matar. Mas hoje quero discutir a posse, não das coisas, só a da vida. Sem coisas nascemos todos nós e os direitos que asseguram a propriedade nos diferenciaram. Iguais nascemos, vivemos, iguais devemos morrer na condição humana, indiscutível de termos todos o mesmo direito à vida.

Você quer assegurar a propriedade sobre a fruta que o menino está roubando? Quer proteger o supermercado - coitadinho! - que talvez abra falência se o pivete levar aquela mercadoria? Atire, se quiser, não para matar. Nem tiro é preciso para o ser a quem Deus conferiu o dom da palavra.

Um dia acordei cm o ladrão. Entre mim e ele a distancia era de um vidro e alguns palmos. Poderia atirar. Não atirei. Um apito, destes de guarda noturno, bastou para que ele fugisse levando sua vida e deixando intacta a minha

O cadáver do jovem retornou ao terreno baldio no Ceará. A mãe chorou, declarou que não tinha com que sepultá-lo. Confesso que tenho pena de quem, ao preço de trabuco, guarda palmas de coqueirais. Porque gente morta ainda parece mais gente do que os que matam por uma fruta, por uma palha.

Empreste-me sua palma de coqueiro, para diminuir minha pena, mão para cobrir uma barraco. É para cobrir uma cadáver sem condições de ser sepultado onde definitivamente a morte vai morar.


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