Leia crônicas de F. Pereira da Nóbrega


A tv me mostrou o ontem. O barroco descia o penhasco, levado pela correnteza.. Famílias pobres se desabrigavam, perdendo tudo o que tinham. A experiência me prediz o amanhâ. Haverá apelo à solidariedade, roupas usadas serão doadas. E os desabrigados de hoje serão convidados amanhã a construírem em mutirão, seus barracos com as próprias mãos.

Isso me lembra o canário de meu amigo. Sempre canta na gaiola, na hora em que lhe trazem comida. E seu dono fica adivinhando o que diz a ave. Se canta na mesma ocasião, pela mesma razão, estaria dizendo que meu amigo é bomzinho, que não sabe como agradecer. Se ficasse entregue à sua sorte, iria morrer de fome ainda que a gaiola fosse de ouro.

Coitadinho daquele canário. Não imagina que o exploram miseravelmente. Trazem-lhe ração, não por atenção a ele, pelo proveito que desta escravidão podem tirar. Nem pensa no direito perdido. Antes, se alegra porque pior poderia ser. A escravidão da gaiola lhe parece regra geral. A ração trazida seria exceção generosa. Nem sabe ele, nunca saberá que a regra geral é a ave livre nos céus da natureza, como Deus a faz.

Há entre nós muita coisa parecida com esse canto da ave escrava. Caridade, esmola, são dessa linhagem. Os agradecimentos do mendigo me soam como o trinado daquela ave.

Ai de quem neste mundo combater essas expressões de assistencialismo. Na esmola dada, misturam-se dois aspectos, numa ambigüidade dificilmente superável. Ali um bem existe e outro falta. Existe o socorro à emergência, um indiscutível bem. Mas falta ao mendigo um bem maior, uma condição humana que não dependa do esmolar.

O homem de classe média compra sua casa. Ninguém o condiciona: se quiser moradia, construa com as próprias mãos. Para isto deixe seu trabalho, sacrifique seu repouso. Mas por que essa discriminação a respeito de um direito de todo ser humano? Por que uns têm poder aquisitivo para obter seu teto e outros, por que não o têm, trabalham duplamente?

Alguém prendeu a ave na gaiola, o mendigo na miséria, o homem do mutirão, na sua incapacidade aquisitiva. O certo agora não é bendizer a servidão atenuada. É maldizer que ela exista. Livre por excelência, em nenhuma gaiola cabe o ser humano. Todas elas maldizem seus construtores. Mas como dói ouvir cantar lá dentro, agradecida, a ave humana que o outro engaiolou!


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