Leia crônicas de F. Pereira da Nóbrega

Inutilidade e vida

- F. Pereira Nóbrega

Meus filhos ainda eram crianças. No começo da manhã, fui a uma praia quase deserta. A maré enchente da noite passada deixara conchinhas nas areias ainda não palmilhadas. Meus filhos e eu nos pusemos a catá-las, admirados de seus tamanhos, formas e cores.

O pescador passou e não escondeu sua ironia. Eu a traduzi: estaria dando valor ao inútil. Peixe se vende, pérolas marinhas ainda mais. Mas conchas! Para que servem conchas?

A madame passou, puxando o filho pelo braço. A criança queria juntar-se às minhas. Ela reclamou: depressa que o tempo é pouco, concha para nada serve. Quando ela se afastou, o suficiente para não me ouvir, desabafei em voz alta: serve, sim, serve para se viver.

Em todos os caminhos da vida, os homens estão procurando somente o lucro. E eu, morrendo de pena deles! Passarão pela vida sem viver.

Mais soltei meus filhos na praia, para perderem tempo, isto é, para viverem. Amanhã eles seriam os robôs da máquina humana, teleguiados da febre do dólar. Outros valores poderiam despontar onde plantei os meus, que dão sentido à vida.

Eu lhes ensinei o valor da inutilidade das coisas belas que ninguém mais valoriza. Não são vendidas nem compradas. Eu quis tirar de minha alma de adulto as cicatrizes da civilização mercenária para voltar a ser criança, catando conchas nas praias. Quis descer aos rios secos dos sertões, catando pedras roliças que as águas rolaram, como ovos que as enchentes puseram em ninhos de areia branca.

Minha vida no mundo é como minha face no espelho. Ou a vejo refletida nas coisas ou não a verei jamais. Minha vida, eu a vejo quando me vejo admirando flores, borboletas, noites de lua cheia que o ocidental não enxerga mais. Trocamos o viver pelo lucrar. Para isso matamos e morremos. Para tanto fazemos a guerra e fingimos a paz.

A roseira seria um triste ser se desse rosas apenas para lucrar. As crianças não ririam, não fariam algazarra porque isso não dá lucro. Mas rimos e choramos, damos pêsames e parabéns, sem com isso lucrarmos. Esses modos desinteressados pertencem ao homem como à roseira pertence florescer. Riso é flor dos humanos. Flor é riso vegetal.


Domingo, 30/maio/2004


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