F. Pereira da Nóbrega |
Crônica do bem dormir
Até mesmo adormecidos, a diferença nos marca. Uns se deitam e não dormem. Outros dormem e
sonham. Outros não conseguem dormir nem sonhar. Outros ainda de pesadelos não passam.
Só é pesado de noite quem não é leve de dia. Qual sacerdote de Satã, o medo monta plantão noturno.
Transmuda interioridades humanas em catedrais do medo, onde celebra o macabro culto do terror.
Somos diferentes de noite porque, de dia, não somos iguais.
Insônia priva uns de dormirem, porque, de dia, a inveja não os deixa sonhar. Ao outro deseja menos
quem a si não sabe desejar mais. A inveja tem de quem tire sem ter a quem dar.
Não só a inveja, também o ódio faz dos humanos seres pesados. Almas leves se elevam, sobem,
levitam.
Subir é também sonhar. A quem desejou se elevar, o Criador deu asas e chamou de aves. A outros deu
sonhos, asas do espírito, enquanto a noite durar. Sonho é asa do homem. Asa é sonho da ave. No homem
sonho é esperança do adormecido.. Esperança é sonho do acordado.
É também carteira de identidade.
O fotógrafo colhe, à luz do dia, imagens que na câmara escura vai revelar. É assim que, cada noite, vou
para a cama. A noite vai revelar-me o que o dia fotografou.
Na mais profunda intimidade, quando estou longe até de mim, meus sonhos me beatificam o passado,
aspergem o futuro, se fazem rituais de desejos, até dos que o dia me proibiu pensar. Eles são realização
dos anseios frustrados.
Você, repetidamente, sonha com as mesmas cenas? Está soletrando o que ainda não consegue
pronunciar. Assim, nas madrugadas de meu viver, também solfejo desejos que a vida me negou.
Somos de noite o que fomos de dia. Se você acordar com pesadelo, se depois disser “já passou” - , não,
não passou. Sonhos e pesadelos, não os temos, os somos. Passarão quando passarmos.