F. Pereira da Nóbrega |
Conversando sozinho
Converso sozinho. Assuntos menos banais, ponho-me diante do espelho e os converso comigo.
Hoje, diante dele, tive indizível surpresa e exclamei: gente, que coisa fantástica, eu existo! Em
sociedade, o raro é comentado, o cotidiano é banal. Mas nada mais cotidiano nem mais surpreendente do
que existir.
Hoje, esse canto de jornal seja espelho de meu falar sozinho.
Se meus pais nunca se tivessem conhecido, eu nunca teria existido. Num dia de 1500, o vento soprou
sobre o Atlântico, em nossa direção e aconteceu Brasil. Sem isso, não teria existido nenhum desses 160
milhões de brasileiros? Somos todos filhos do acaso que o descobriu?
Numa corrida de 1,5 bilhão de espermatozoides, só 1 fecunda o óvulo da mãe. Se, no meu caso, outro
houvesse chegado antes, eu nunca teria existido.
O jovem infla o peito e seu orgulho diz que tirou primeiro lugar entre 5 mil vestibulandos. Rio dele
porque, no vestibular da existência, concorri com 1 bilhão e 500 milhões e tirei primeiro lugar. Quer a
prova? Eu existo.
Imagino, na idade Média, o caçador rumando na direção em que a ave voou. Assim conheceu Maria,
minha ancestral, e graças a isso hoje existo.
No Império Romano, o soldado não viu, não matou o ferido porque naquele instante a nuvem encobriu
a lua. O outro sobreviveu, gerou meus ancestrais e graças a isso hoje existo.
A fera esturrou nos dias da Caverna e ele e ela entraram nela. E porque entraram dois e saíram três,
graças a isso, hoje existo.
Foi linha cruzada, foi telefone errado mas assim dois se conheceram, se casaram. Graças a isso, seus
filhos existem.
Diante do espelho, falo sozinho. Meu existir poderá ter dependido do rumo da ave num dia da Idade
Média, do rumo do vento sobre o Atlântico num dia do Ano 1500. Do instante em que a nuvem encobriu a
lua numa noite do Império Romano. Do esturro da fera nos tempos da Caverna,. De um telefonema errado
em qualquer um desses dias.
Gente, é quase inacreditável, mas eu existo! Só dedo de Deus pode somar tantos acasos para eu existir.