F. Pereira da Nóbrega |
Já se quis, declarado em Carteira de identidade, se os órgãos, após morte, serão dos vermes ou
transplantados.
Na Carteira do pobre, isso é testamento. A única coisa que em herança deixa é seu cadáver. Na minha,
é socialismo póstumo. A morte nos reduz a verme entre os vermes da terra. Ou a cinzas entre as cinzas que
o vento levar.
Deixo meus olhos para os que se acham no eclipse total de todas as coisas ou no vestibular da noite
radical: os cegos. Duplamente amargurados, seus olhos se recusam a ver, não se recusam a chorar. Os
meus voltem a ser os da criança que em mim deixou saudades. Vivam noutros, uma vez mais, a felicidade e
o espanto de descobrir o mundo e a humanidade.
Estradas cortam o Planeta e cada uma é mão estendida, em traço de união. É esperança, também! Toda
ela parece que espera por alguém que nunca vem. Que, nelas, os pés vivos, de quem já não anda, levem
ainda o sorriso das chegadas, a lágrima das partidas, de ambas o abraço.
Para quem, meus ouvidos? A sinfonia não findou. Desde o começo do mundo, o homem arranca da
matéria o milagre do som. O instrumento vibra e sente com quem o tocar. O sopro, a corda, a percussão,
tudo é o homem arrancando da matéria o gemido da dor, o conforto da esperança, o alívio da lágrima, a
canção do amor, a ânsia da saudade.
Música é rumor de passos da humanidade, caminhando. Passou por mim ao ouvir, de Bach, Jesus
Alegria dos Homens, Danúbio Azul de Strauss, Asa Branca de Luís Gonzaga. Ainda não passou tudo o que
está preso na garganta humana e amanhã ocorrerá. Se não incomoda ao morto a surdez da morte, então,
meus ouvidos sejam de quem precisar.
Quando os meus forem apenas órgãos úteis de um ser finado - não cabe mais hesitar. A morte é minha,
a vida de outros será. Noutros continuarei vendo, ouvindo, andando. Sou eu depois de mim. Se antes fui
egoísta, a morte corrija o que a vida negou. À humanidade deixo pedaços de mim. Esses ao menos sejam
solidários se nem isso consegui ser.
Faça o mesmo. Doe, não dói.