CRÔNICA DE F. PEREIRA DA NÓBREGA



Conversa de fogueteiro

Amava, adorava aquele Bairro das Palafitas. Chegou em busca de chão onde morar. Só achou águas poluídas. Como se fossem terras devolutas, fincou estacas, ergueu barraco. Vieram outros, fez-se o Bairro. Procurou o prefeito para a luz elétrica. Foi negada. Aí começou o dissabor com os políticos.

- Maria, um dia eles vão precisar de mim. Luz no bairro quem vai pôr sou eu.

Fazia fogos-de-lágrimas, acendia no firmamento. O clarão estendia o céu sobre as águas. Era a noite iluminada do Bairro das Palafitas. Na cidade se soube, se viu a arte do fogueteiro. Vieram as eleições, os comícios. Apareceram os políticos.

- Não, Seo Prefeito, não peça, não faço. Foguetão não faço. Não gosto de políticos nem de foguetões. Vocês dois se parecem muito. No tempo de comício chegam, estouram de promessas. Depois se somem, se calam.

Na ausência dos políticos, falava do que gostava. Dizia que a coisa mais bela do mundo era “zelação”. (Assim chamava estrela cadente). Depois disto mais bonitos só mesmo os fogos que fazia.

- Maria, quando corre uma “zelação”, das duas uma: ou um anjo chorou no céu ou na terra um anjo morreu.

Chamava de “anjo” também a criança morta com poucos dias de nascida.

- Maria, a noite é viúva. Toma esses fogos-de-lágrimas. Acende, joga no céu. Ajuda a noite a chorar a sorte que Deus lhe deu

Tinha alma de criança aquele fogueteiro. Via a vida lhe fugindo no fluxo dos anos, sem deixar bens para a família. Dizia rindo:


    - Acho que a única herança que vocês vão ter de mim


    vai ser aquele monte de fogos. Vou deixar muitos para vocês.

Um dia começou a olhar mais para a terra do que para o céu. Corria a notícia de que o Bairro das Palafitas ia ser erradicado. Organizou grupos de resistência. Fez passeatas, fez clamor. Foi marcado o dia do despejo. A resistência aumentou. A polícia veio, atirou. Querendo ou não, acertou no fogueteiro.

Esta noite não mais existe o Bairro das Palafitas. Enquanto saem, levando o esquife do líder, Maria recorda que a noite é viúva. Joga fogos no céu, chora com ela a sorte que recebeu. Essas gotas de luz são o mesmo que “zelação”. No céu um anjo chorou. Na terra um anjo morreu.


    Mas será mesmo que na terra ainda há lugar para anjos?


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