F. Pereira da Nóbrega



Canção da vida

A música dita pré-lógica parece com o mito do eterno retorno. Como em cantigas de grilo, o fim coincide com o começo. Assim também, a canção da vida.

Nasci sem dentes, quase sem cabelos, sem o uso da razão. Depois tudo em mim aflorou: dentes, cabelos, razão. Mais tarde será como o outono europeu, com o vento no sopro manso, tangendo as folhas da vegetação. Quando o sopro da velhice chegar, irá levando dentes, cabelos. E o próprio ancião, como num eterno retorno, voltará a ser criança, carente até da razão.

A criança vive os primeiros dias em horizontal, ora deitada no berço, ora nos braços alheios. Depois se faz erecta, na postura da nova idade . Imitará finalmente a torre de PIsa, cada vez mais inclinada. Mesmo sem terremoto, já se sabe que um dia cairá. Dai em diante, será eterna a horizontal.

O velho está no passado, a criança no tempo futuro. Ele ama o que amou. Porque amar passa, ter amado não passa. Todas as rugas de sua idade são cicatrizes do amor de ontem.

Nasce a criança sem preconceitos. Se o anão se envergonha de si, se o negro também, esta vergonha não nasceu com eles. A sociedade lhes emprestou. Por isso, em boa hora, o jovem leva a julgamento valores e normas recebidas. É a hora da rebelião. O ancião consagrou valores, não os mudará mais.

O menino fala de seu pai com orgulho. Quando jovem, dirá que o ele é careta, é quadrado. Quando envelhece, como num eterno retorno, falará com saudade do pai que já passou.

A criança aprendeu medos: de escuro, de alma, de solidão. A juventude é a hora de arriscar-se, esbanjando a vida à margem dos perigos. Como quem entra num túnel, sem ver luz após, o ancião descobre que o medo lhe é maior que a vida. No velho o coração é menino, tem medo de escuridão.

A vida, canção sem fim, vem de outros que nos precederam, se continua noutros que nos sucederão. Rostos afloram em nossos lares. São os filhos de nossos filhos, se continuando nos netos de nossos netos. Milhões de rostos, nenhum a outro igual, cada um, um momento da eterna canção da vida! Cada um, uma palavra de Deus que não se repete mais.

O velho toma a mão da criança e lhe diz: o que você é hoje eu já fui ontem, o que sou hoje você será amanhã.

A gente sai e mais forte grita. Começa a vida. A gente grita e sai menos forte. Começa a morte.


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