Leia crônicas de F. Pereira da Nóbrega

F. Pereira Nóbrega


O bóia-fria

Gosto de andar um pouco na frente. No hoje já me inclino sobre o amanhã. Quando tanta chuva caiu por esse Brasil afora, já penso na safra do milho, arroz, dos gêneros de subsistência. Também na outra, da cana, da laranja, de gêneros de exportação. Termino pensando no bóia-fria que vem aí.

Um tipo de trabalhador que já se sabe desempregado alguns meses por ano – esse não pode existir. Pode haver um emprego do qual o desemprego faz parte?

Não pode existir também porque o ônus é da sociedade, não dele apenas. O bóia-fria é um ser humano com reduzido poder aquisitivo, na mão de obra excedente em seu tempo. Trabalha quando pode, não come quando deve. Ao menos deveria diariamente. Aí emerge nova contradição: o direito de comer sem o dever de trabalhar.

Ninguém deve o impossível. Se trabalho não há, trabalho ele não deve a essa sociedade. Antes e depois da colheita, centenas de milhares de bocas estarão comendo o que não produziram. Decaem o PIB e a exportação. Porque não produziram, comerão parcela do que seria exportado. Na sociedade justa se espera que todos comam porque todos trabalharam.

O bóia-fria é uma resultância do capitalismo rural, relativamente recente neste país. Antes do capitalismo tivemos a servidão. Antes da servidão, a escravatura. Na servidão, outras eram as relações de produção Se não eram tão justas, eram menos desumanas.

No Brasil da servidão rural, era dito “morador” quem explorava a terra que não era sua. Repetia de fato a condição do servo medieval. O dono das terras tinha uma responsabilidade permanente por ele e sua família. Responsabilidade de lhe dar o que fazer em suas terras, de lhe garantir a sobrevivência também. A vida rural no Brasil imitou inicialmente a servidão medieval. Mesmo em tempos de seca, o dono das terras não deixava seu morador morrer de fome.

O bóia-fria de hoje é um nômade no trabalho, no quarto minguante da barriga vazia, esperando o quarto crescente de nova ocupação. Nessas condições de trabalho, a família não acontece, a criança não se desenvolve, o homem não tem horizonte de esperanças.

O capitalismo rural tem um único vínculo com o bóia-fria: corte essas canas, cate essas laranjas, tome seu dinheiro e vá embora. Essa incerteza de vida nunca foi vivida por um só ser humano, dito servo, nos latifúndios das eras medievais.


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