Adultério - F. Pereira da Nóbrega

   Adultério

Na cidade ele se julgava um desconhecido. Mas desconhecido não era seu lado clandestino de encontros amorosos. Quando ela punha na varanda aquele jarro de flores, no outro lado da rua, não só ele entendia: o marido estava ausente, a mulher esperava o outro. Mais uma vez ele entrou pela porta dos fundos, sentou-se, começou o diálogo: - De que você mais gosta em mim? - Dos olhos. - E no seu marido? - Dos olhos. - De que cor são os olhos dele?
- Da cor da morte. A porta gemeu, um homem entrou. O desconhecido estremeceu. Ela o tranquilizou: "ele é cego". - Dina - disse o marido, entrando - você jura que não anda homem nenhum aqui em casa? - Juro pela Hóstia Consagrada. Por quê? - Pois estão dizendo na rua que você é infiel a mim.
Mais ela jurou, mais o desconhecido se encolheu. - E agora, Dina, não há ninguém aqui em casa?
- Lula, que homem anda nesta casa, senão você? - Não estou falando de "homem". Pode ser mulher, até criança. Não há ninguém mesmo aqui? - Ninguém. - Pois ouça, pra ninguém mais ouvir: Sempre acreditei em vocÊ, Dina. Mais ainda, quando ceguei. O que você diz é como se eu estivesse vendo. Quando eu ceguei, foi como se o mundo anoitecesse pra sempre. Mas quando Deus fecha a porta, abre uma janela. Você é a janela de minha vida, Dina. Você diz: "Lulu, o sol está se

pondo" e parece que estou vendo a Estrela Dalva nascendo. Você diz: "Hoje é lua cheia" e parece que estou vendo S. Jorge, a cavalo, no céu. Sua palavra bota estrelas no meu céu. Se eu desacreditasse de você, erá como se um cego cegasse de novo. Você é meus olhos, Dina. O estranho baixou a cabeça. Envergonhou-se do adultério iminente. Aquele diálogo seria poema se ele não estivesse ali. Nem mais olhava aquela mulher. Cada palavra do cego mais lhe açulava o remorso. Lulu pediu para ela fechar a porta. Tinha algo de mais íntimo ainda pra lhe dizer. Ela levantou-se. O desconhecido fez gesto de acompanhá-la, tentando fugir. Ela acenou que não. Qualquer ruído seria comprometedor. Quando ela já retornava, o desconhecido aproveitou seus passos para respirar, se aliviando da tensão. O cego percebeu a respiração e, pensando ser ela, caminhou para junto dele. Ela lhe prendeu as mãos. - Dina, estou ouvindo tanta estória. Se for verdade, vou terminar
preso, mas mando matar um. O desconhecido mais se encolheu, nem sei se de vergonha, se de medo. - Eu só queria que Deus me desse ainda a luz dos olhos, sabe pra que, Dina? Só pra ver você, como vi um dia, entrando na igreja, vestida de noiva, só pra mim. No cego os olhos se recusavam a ver, mas não se recusavam a chorar. O remorso, por dentro, triturava o desconhecido. - Mas, quem sabe, Dina, Deus me tirou a luz dos olhos pra não enxergar o que mata quem vê: o adultério da mulher amada.
   Depois, sobreveio o silêncio. E, no silêncio, baixinho, uma adúltera soluçava, Entre dois homens: um cegara, o outro emudecera.


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