anne rice
por Martha Argel
Em 1976 foi publicado o livro que mudaria para sempre o
universo vampírico: Entrevista com o Vampiro , fruto da criatividade de
Anne Rice, uma escritora que aos 35 anos já havia passado por algumas
das maiores perdas pessoais que alguém pode sofrer. Anne Rice criou
vampiros com uma vida interior rica, cheios de questionamentos
filosóficos e com uma elaborada apreciação estética e artística, e com
eles fez escola. Depois do surgimento do angustiado Louis e do amoral
Lestat, nunca mais os vampiros foram os mesmos.
Entrevista com o Vampiro é o primeiro volume da série denominada
Crônicas Vampirescas , que tem, entre outros, o mérito de não apelar
para o recurso fácil da violência e do sangue gratuitos, característicos
de boa parte da produção de horror – livros, quadrinhos e filmes que em
geral nada acrescentam de novo ao gênero e que têm finalidade puramente
comercial. Em Entrevista com o Vampiro , um jovem repórter grava, nos
dias de hoje, o depoimento em que o vampiro Louis Pointe du Lac narra
sua vida. Louis, um ex-proprietário rural de Nova Orleans, foi
vampirizado em finais do século XVIII por Lestat de Lioncourt, um
vampiro fascinante que, vindo de Paris para a Louisiana, torna-se o
primeiro vampiro europeu em solo americano.
Nos volumes seguintes das Crônicas , Lestat contrapõe sua visão
dos fatos à história contada por Louis. No livro dois, O Vampiro Lestat
, ele se transforma em um astro do rock, e traz pânico à comunidade
vampírica ao divulgar pela mídia, dissimulados em letras de músicas, um
sem-número de segredos terríveis. No terceiro, A Rainha dos Condenados ,
ele aborda a questão da origem dos vampiros, que remonta ao antigo
Egito. Em A História do Ladrão de Corpos , ele anseia por voltar a ter
as sensações de um mortal, e acaba fazendo uma arriscada troca de
corpos. Ao concluir que prefere a condição vampírica, ele encontra a
resistência do humano que habita seu corpo e que não quer abandoná-lo.
Em Memnoch , uma criatura que diz ser o próprio demônio o leva em um
tour pela criação, pelo céu e pelo inferno, para convencê-lo de que Deus
é um ser inconsciente, sem preocupação com o destino da Criação ou do
ser humano.
Em O Vampiro Armand , Lestat, ainda não recuperado de sua viagem
filosófica, é substituído como narrador por Armand, o vampiro com a face
da inocência que apareceu já em Entrevista com o Vampiro , e que conta
sua longa e atribulada vida a convite de David Talbot, um estudioso de
assuntos paranormais. É o mesmo Talbot que serve como fio condutor em
Pandora , que junto com Vittorio, o Vampiro faz parte de uma trilogia
que não pertence às Crônicas , mas está relacionada a elas. Os dois
livros são fábulas, em que os vampiros dos títulos contam suas vidas
pré-vampirismo, relacionando-as a eventos históricos e à sociedade da
época.
Anne Rice estabeleceu para seus vampiros uma série de padrões
comportamentais que, sem que ela o pretendesse, acabaram se
transformando, para boa parte dos fãs dos vampiros, em normas quase
inflexíveis. O tremendo êxito, no mundo inteiro, de seus livros e do
filme baseado em Entrevista com o Vampiro levou à curiosa situação em
que, para muita gente, ela constitui a principal e às vezes única fonte
de informação sobre o que são os vampiros e quais suas características
físicas, psicológicas e paranormais. Nem sempre é fácil lembrar-se que
os vampiros são personagens artísticos, que cada autor tem a liberdade
de criá-los com as características que bem entender e que isso é válido
para Anne Rice da mesma forma que para outros autores, com a única
diferença de que seus vampiros são mais conhecidos que os outros. Assim,
as características descritas a seguir não são universais para os
vampiros, literários ou do cinema, mas constituem uma mistura bem dosada
de traços que já apareciam antes na literatura e de invenções da própria
Rice.
No universo que ela imaginou, os vampiros são criados por outros
vampiros através da troca de sangue: o vampiro-criador suga o sangue até
que a vítima esteja à beira da morte e a seguir dá-lhe de beber seu
próprio sangue. Ocorre a morte humana, e o corpo sem vida se converte em
vampiro. A autora abordou o problema da criação do primeiro vampiro,
levando-a tão longe no passado que chegou ao antigo Egito, e atribuiu-a
a uma possessão demoníaca.
Assim como entre as pessoas, os vampiros de Rice têm
personalidades diferentes entre si. Alguns são cruéis, mas outros são
bons e confiáveis, e até protegem os humanos contra os vampiros "maus".
Alguns se sentem bem à vontade com sua vida predadora, enquanto outros
abominam o fato de serem assassinos. Eles são mais fortes que as pessoa
normais, e têm sentidos, como visão e olfato, mais aguçados. Sua
aparência nada tem de monstruosa, ao contrário, são sempre belos. Podem
se fazer passar por humanos, em especial depois que se alimentam, quando
perdem algo de sua palidez. Têm habilidades telepáticas, comunicando-se
entre si através dos pensamentos, embora não, porém, com o vampiro que
os transformou. À medida que envelhecem tornam-se mais e mais poderosos,
e quando velhos o suficiente tornam-se imunes a elementos que ferem ou
matam os mais jovens, como o fogo e a luz do sol. Ao nascer do sol
automaticamente perdem a consciência, de forma que enquanto jovens têm
de se abrigar quando a aurora se aproxima, em geral recolhendo-se a
caixões.
À diferença do Drácula, personagem clássico criado por Bram Stoker
no fim do século XIX, não se transformam em animais, e têm reflexos em
espelhos. São imunes ao alho e a estacas, e os símbolos religiosos só
afetam aqueles que acreditem que podem ser afetados. Também não têm a
dependência do solo natal, como tinha o famoso conde, que só podia
passar o dia dormindo em cima da terra que trouxera da Transilvânia.
Uma característica muito marcante dos vampiros de Anne Rice é que
a transformação em vampiro faz com que os órgãos sexuais deixem de ser
funcionais. Isso não quer dizer que eles sejam criaturas assexuadas.
Muito pelo contrário, eles obtêm prazer a partir da sedução e da
dominação, tendo o equivalente ao ato sexual quando mordem e sugam suas
vítimas. No universo que ela criou, os vampiros são seres altamente
sensuais e sexuais, seduzindo e sendo seduzidos por suas vítimas
independente do sexo a que pertençam. A atração que existe entre, por
exemplo, Lestat e Louis, não é uma simples manifestação de
homossexualismo, mas se encaixa dentro de um panorama muito mais amplo
criado pela autora, em que os vampiros não têm restrições a sexo, idade,
raça ou parentesco ao se sentirem atraídos. Lestat vampiriza tanto sua
mãe quanto uma criança de cinco anos, e se sente atraído por uma bela
jovem da mesma forma que por um velho de setenta anos. Os vampiros de
Anne Rice vêem o ser humano em sua essência, e não através dos traços
convencionais usados para estabelecer as relações entre seres humanos
normais. Esse aspecto constitui uma das grandes contribuições da autora
para o desenvolvimento da atual mitologia dos vampiros.
Nascida em 1941, em Nova Orleans, sul dos EUA, Anne Rice por algum
motivo foi batizada com o nome masculino de Howard, que também era o de
seu pai. Ela mesma se pôs o nome de Anne, no primeiro dia em que foi à
escola. O sobrenome Rice vem de seu marido, o poeta Stan Rice. Ela foi
criada no Garden District, o mesmo que serve como cenário para muitos de
seus livros, tanto das Crônicas Vampirescas quanto das Bruxas Mayfair ,
seus dois universos mais conhecidos. Apesar de ter se mudado aos 16
anos, voltou a morar lá em 1989. Sem dúvida, a infância passada numa
vizinhança com tanta personalidade foi fundamental para que Rice
desenvolvesse o estilo e a ambientação de suas novelas. O fascínio pelo
bairro de sua meninice fica evidente em A Hora das Bruxas , onde o
Garden District e suas casas de época são personagens tão importantes e
vívidos quanto as pessoas, e não um mero pano de fundo.
Além de ter sido criada no mais perfeito cenário para histórias
sobrenaturais, ao longo de sua vida Anne Rice passou por pelo menos duas
situações trágicas. Primeiro, a perda de sua mãe, Katherine O’Brien, uma
alcoólica que bebeu até morrer, quando Rice tinha 14 anos de idade.
Depois, a morte de sua própria filha, Michele, aos cinco anos de idade,
de leucemia, ocorrida em 1972, quando Rice tinha 30 anos. Os dois
eventos jamais foram esquecidos por Anne Rice, e o exemplo mais claro de
sua importância na vida dela é justamente seu livro mais conhecido,
Entrevista com o Vampiro . Anne Rice escreveu o livro em 1973, depois de
passar quase um ano alcoolizada, incapaz de recuperar-se do choque de
perder sua filha única. Foi escrito em cinco semanas, a partir de um
conto produzido em 1969. Recusado na primeira tentativa de publicação,
em 1974, acabou saindo dois anos depois, pela editora Knopf, que até
hoje publica os livros da autora.
Entrevista com o Vampiro é contado a partir do ponto de vista de
Louis, o vampiro sensível e amargurado, que não por acaso se tortura
pela morte de seu irmão. Ele é a imagem da própria Anne Rice, então
consumida pela dor de sua perda. O sofrimento de Louis quando Claudia, a
criança-vampiro, morre nas mãos dos vampiros parisienses, é tão
claramente o da própria autora que chega a dar calafrios. E não menos
arrepiante é o fato de Michele e Claudia terem tido o mesmo destino:
nenhuma delas teve a chance de crescer. Se no primeiro livro Anne Rice
era Louis, à medida que seu estado de espírito se alterava e ela
conseguia, às custas da passagem do tempo, conviver com a perda de
Michele, mais e mais ela se identificava com o vampiro que transformou
Louis: Lestat, uma criatura sem qualquer problema de consciência, que
não sente qualquer necessidade de definir o que é o Bem e o que é o Mal.
Assim, depois de estrear como o grande vilão em Entrevista com o Vampiro
, Lestat levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. Em O Vampiro
Lestat , A Rainha dos Condenados e A História do Ladrão de Corpos , ele
é o coração das Crônicas , é o herói anti-herói, irrequieto e irritante,
irresistivelmente atraente e inevitavelmente repulsivo. O mal em sua
essência, a amoralidade completa e, ao mesmo tempo, capaz da sedução
total.
Lestat é considerado por Rice como seu próprio eu perverso, seu eu
masculino e implacável, aquele que, segundo ela, por sorte existe apenas
na ficção. Rice confessa que houve um momento em que, mesmo quando não
estava escrevendo, ela via o mundo através dos olhos de seu personagem
mais famoso, e que o tempo todo se perguntava "que pensaria Lestat sobre
isto", "como reagiria Lestat a isto". Em uma mensagem dirigida a seus
fãs, em 1996, porém, Anne Rice declara que Lestat "simplesmente havia
saído de sua vida". Memnoch havia saído publicado no ano anterior.
Aparentemente, ao escrever esse estranho livro ela finalmente exorcizou
algum fantasma insistente que a atormentava. Ela mesma afirma que
Memnoch é seu livro preferido. Esse não é um dos livros mais
movimentados dela, e o leitor que busca nele uma história de vampiros é
forçado a enfrentar longos trechos de discussões filosóficas. Talvez
seja este, de fato, o mais filosófico dos livros de Anne Rice, e está
cristalino que através dele ela expressa toda sua filosofia de vida,
virtualmente abandonando os vampiros para embarcar em uma viagem
interior. Memnoch é um esforço magnífico para explicar, talvez mais
para si que para o leitor, sua forma própria de interpretar e aceitar a
religião, o misticismo, a vida e a morte, o bem e o mal. Não é de se
espantar, portanto, que Lestat a tenha abandonado, e ao leitor, em O
Vampiro Armand . Esse livro dá início a uma nova fase da relação de Anne
Rice com os filhos das trevas, e os livros decorrentes desse novo
relacionamento têm feito muitos fãs lamentarem a redução das doses de
ação e aventura que caracterizaram os primeiros livros.
O Vampiro Armand tem muito em comum com outros dois livros
surgidos na mesma época, Pandora e Vittorio, o Vampiro , que não
pertencem às Crônicas Vampirescas mas a uma trilogia relacionada a ela.
São dois livros que Anne Rice já vinha anunciando desde 1996. Neles, a
autora se aprofunda na história, na filosofia e na análise de processos
que resultaram em situações presentes. Em todos fica muito clara, por
exemplo, a paixão de Rice pela história, pela arte e pela política do
Renascimento italiano. E neles também Anne Rice tem a oportunidade de
mostrar todo o amadurecimento pelo qual passou como escritora, desde o
início das Crônicas . Em Pandora , por exemplo, sua habilidade com a
escrita é surpreendente.
Aparentemente o novo romance de Anne Rice, Merrick , ainda não
publicado no Brasil, marca uma nova mudança de rumo. Ao sintetizar suas
duas séries mais famosas, as Crônicas Vampirescas e as Bruxas Mayfair ,
é possível que ela esteja afastando de vez os fantasmas de seu passado,
juntando num mesmo volume sua infância, a atormentada época em que
perdeu a filha, a batalha posterior contra o luto e a fase mais
reflexiva que se seguiu a Memnoch . É difícil prever o que virá a
seguir, mas Anne Rice é uma autora prolífica, com uma quantidade
impressionante de idéias, e que constantemente explora novos estilos e
abordagens. E parece que depois de Merrick muita ação ainda está por
vir!
Não há dúvida: o universo vampírico jamais seria o que é, não
fosse por Anne Rice. Dentre toda a ficção de vampiros produzida desde o
Drácula , de Bram Stoker, seus livros foram os mais populares, e
representaram uma revolução no gênero. É inegável que as Crônicas
Vampirescas estiveram entre as razões principais da vampirofilia que se
alastrou pelo mundo nas duas últimas décadas. Seu personagem Lestat
assumiu um papel quase tão importante quanto o Drácula como fator
determinante da imagem contemporânea dos vampiros. Se Lestat passou a
ser um padrão de referência para vampiros cruéis, sanguinários e
inescrupulosos, Louis não deixou por menos, e transformou-se no
protótipo do vampiro que, por ter alma e por manter sua moral humana,
vagueia angustiado através das décadas, abominando sua vida como
criatura da noite, buscando respostas para perguntas que não são apenas
suas, mas de toda a humanidade: quem somos, por que sofremos, de onde
viemos e todo esse tipo de coisa.
Os vampiros de Rice hoje são quase objetos de culto. A ampla
variedade de sites na internet e de informações disponíveis sobre esses
personagens é uma boa indicação quanto a sua popularidade. As pessoas
estão sempre em busca de ídolos, aos quais possam seguir e admirar, e
muita gente acabou associando essas necessidades ao vampiro Lestat.
Lestat oferece um caminho para sejam exploradas questões profundas, como
a imortalidade e as crenças íntimas sobre a morte e a vida no além.
Desde o surgimento da literatura vampírica, o erotismo e a sedução
tiveram um papel destacado nas obras, dividindo com a violência, a
crueldade, o terror e a morte a condição de principais atrativos desse
gênero literário. De fato, há quem reconheça, dentro dessa literatura,
duas correntes principais. Uma, mais "masculina" centrada nos vampiros
como personificação do mal, e enfatizando o poder, o terror e a
dominação, e outra mais "feminina", na qual essas criaturas são
atraentes e sedutoras. Anne Rice conseguiu unir as duas, e fixar de vez
a visão mais "feminina" na literatura de vampiros. Suas cenas de caça,
de sedução e de ataque podem ser tanto de um erotismo notável como de
uma perversidade tremenda, ou ainda ambos ao mesmo tempo, provando uma
vez mais o talento da autora. Rice abriu caminho para que muitas outras
autoras se destacassem. Atualmente, boa parte da literatura vampírica de
sucesso é escrita por mulheres. Além de Anne Rice, algumas das autoras
mais conhecidas e mais lidas são Chelsea Quinn Yarbro, P. N. Elrod,
Tanya Huff e Laurell K. Hamilton.
Um estudo realizado sobre o sucesso atingido pelos livros de Anne
Rice chegou à conclusão de que, além do rico mundo interior de seus
sombrios heróis, vários outros fatores também contribuíram para o êxito.
Pela própria forma de contar as histórias, em primeira pessoa
(sucessivamente por Louis, Lestat e Armand), a identificação do leitor
com os personagens é maior que na literatura vampírica mais tradicional,
e o vampiro deixa de ser um monstro e passa a ser um objeto de
identificação, com sua vida interior agora acessível ao leitor. A nova
imagem criada pela autora, do vampiro atormentado com seu destino
sombrio, conquistou os fãs dessas criaturas, passando a competir, se não
com vantagem, ao menos em pé de igualdade, com o estereótipo anterior de
ser dominador e cruel, derivado do Drácula.
Além disso, ela conseguiu criar personagens vampiros que
satisfazem plenamente os desejos dos leitores quanto a beleza, riqueza,
poder e imortalidade, descrevendo sua existência vampírica de tal
maneira que a muitos leitores ela parecerá bem mais atraente do que a
simples e mera vida vivida pelos mortais. Esses atrativos fazem com que,
numa sociedade como a atual, que valoriza o prazer fácil, rápido e
abundante, os vampiros de Anne Rice sejam vistos como criaturas
particularmente tentadoras.
Mas talvez seja importante também o fato de que os heróis sejam
americanos ou americanizados, encontrando-se, portanto, na fonte de
nossa atual civilização de massas. Ela criou toda uma hierarquia de
vampiros, e em seu topo estão vampiros americanos. Os vampiros franceses
que Louis encontrou no Teatro dos Vampiros, por exemplo, são criaturas
decadentes, que acabam sendo derrotadas por ele. Além disso, não se pode
esquecer que os EUA construíram uma máquina eficiente e complexa para
produção e exportação do american way of life. Se Anne Rice fosse
francesa, ou alemã, ou brasileira, nem todo o seu talento seria
suficiente para transformá-la no ícone da vampirofilia mundial que é
hoje.
Martha Argel é paulistana, doutora em ecologia e autora dos livros
Contos Improváveis e Olhos de Gato .