F. Pereira Nóbrega

Uma canção de ninar

“Dorme, menina, que a cuca vem pegar. Papai foi pra roça. Mamãe foi trabalhar”

Dorme onde a fome ceifa, na Nigéria, Biafra, Índia, Guiné Bissau. Em Londres, Nova Iorque, não precisas dormir. Lá, crianças brincam com maravilhosas bonecas, ao lado de outras, louras, de olhos azu8is.

Na Paraíba dorme, que a cuca do Nordeste é a mais fatal. Se possível, adormece no limbo dos que jamais nasceram, quais sonhos falidos de pais miseráveis. Dorme, que a cuca dos sertões só pega para matar. Se não vier no primeiro, no segundo, no terceiro ano virá. Mais do que isso raramente se fez esperar.

Não se sabe se te chegarão o pão, escola, saúde. Mas a cuca não faltará. Ela vem do litoral, dos canaviais, tomando a terra dos pais, roubando o sonho dos filhos. Sai do colete de políticos bem sucedidos porque na eleição passada prometeram a cuca não mais voltar. Dorme, porque, se acordares, outra será minha canção de ninar: “Boi, boi, boi! Boi da cara preta, pega esta menina que tem medo de careta.”.

Adormecida, é a vez da cuca. Acordada, é a vez do boi. Então dorme, que o sono é o jeito de morrer sem morrer. E o sonho é o acordar, sem acordar. Dorme, misturando as duas faces do mesmo destino, que o sonho é imagem da vida, o sono imagem da morte. Dormir, esquecer, ignorar que há um boi de cara preta e que cuca vem pegar!

Enquanto dormes, por ti velarão alguns adultos de boa vontade. Quando acordares - quem sabe! - nossa vigília te presenteará um mundo sem cucas, sem bois de caras pretas. Por ti muitos desceram às prisões, conheceram a tortura. Por ti houve cabras marcados para morrer.

Enquanto não dormes, passas pelas vitrinas e o que entra pelos olhos planta amor no coração. Quiseste aquela boneca? Ninguém existe para comprá-lo. “Papai foi pra roça”, longe, numa terra chamada São Paulo. Dorme, enquanto o avião do Ministro, lá das nuvens, olha a miséria das secas, cá em baixo. Lá em cima, a promessa. Cá em baixo, a realidade.