MENINA, MULHER DA NOITE



        Eu vi a menina brincando na praia. Trazia uma flor minúscula
        e despetalava. Alguém lhe dizia: "não desmanche a flor". E ela:
        "não adianta, já está machucada".
        Seguia-se strip-tease da flor. Começava a lhe arrancar as péta-
     las, alternativamente, (como se faz em brincadeira infantil), e as jo-
        gava no mar: "essa eu dou, essa eu nego, o que restar de quem se- rá?". Enfim, com o resto sem pétalas, concluia: "restei eu, restou
        meu corpo, lá vai ele, de quem será!". E mergulhava no mar, segu-
        rando o resto de rosa despetalada. Quando dizia "restei eu, restou meu corpo", não sei se falava
        de si ou se fazia a rosa falar.
        Esta manhã eu vi a menina brincando na praia. Podia ter seus
        dez anos. De repente se voltava, perguntando: "alguém me tocou?" senas me voltam à memória com força de tempestade. Agora é
        noite e chove silêncio sobre todas as ruas. Quando chove água, as
        pedras choram nos calçamentos, nas paredes de rocha das velhas ca- sas.
        Porque não sou de pedra, esse silêncio quase me faz chorar. associo a menina da praia ã recente notícia que li nos jornais. A
         da Mulher, memorável movimento de recuperação femini- na, publicou: a prostituição aumenta assustadoramente. Pessoas vin- das do interior perderam tudo. A caminho, a famlia se perdeu tam-






bém. Agora, em quase todos os bairros da periferia, cresce a prosti- tuição , abundante e desenfreada. A oferta é maior do que a procura.
        as de até dez anos vendem seus corpos para se alimentar.
        Por isso, essa noite até as pedras devem chorar. As imagens
         do dia me estão de volta. E vejo meninas, de mãos dadas, a disposição dos machos. De volta, na madrugada, a consciência lhes
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        pergunta: "alguém me tocou?" E a mesma consciência, se justifi_
        cando: "ninguém, foi o vento que passou". Foi um vendaval que
        não deixa escolher passos nem caminhos. À margem da prostituição
        deixa crianças tombadas.
        Essa noite me sinto como se fora o pai de todas as flores vir-
        gens que apodreceram prematuras, infantes, trazendo no corpo as
        tempestades do mar. Esta noite, uma menina de dez anos não dormira.
        É muito cedo mas os sonhos não a visitam mais. Nem alguém mais
        neste mundo lhe contará uma canção de ninar. Esta noite uma crian-
        ça de dez anos fará de seu corpo umá rosa, de suas partes fará péta-
        las, para a diversão dos machos: "essa eu dou, essa eu nego, o que
        restar de quem será!". De retorno a seus casebres, com pouco di-
        nheiro e muita doença venérea, estará dizendo: "restei eu, restou
        meu corpo, lá vai ele, de quem será!". E, com ele, lá vai ela, de dia
        menina, de noite mulher. De dia flor em botão, de noite botão sem
        casa.
        Se você é desses machões que compram mulheres na madruga-
        da, se nos seus caminhos aparecer uma flor-criança, se falar de suas
        pétalas, de suas partes, se lhe disser "essa eu dou, essa eu nego",
        uma coisa lhe peço: "não desmanche a flor". Não diga a si mesmo:
        "não adianta, já está machucada". Num mundo em que as crianças
        não merecem respeito, nada mais resta a ser respeitado.
        Respeite a nudez do corpo que ainda não adolesceu. Respeite a
        flor em botão. Não a force a desabrochar. Ela quer o pão, não o se-
        xo. E você lhe daria sexo a preço de pão. Um dia, adolescente, ela
        vai querer o sexo, a preço de amor, e não achará. "Resteu ei, restou
        meu corpo, lá vai ele, de quem será!". A preço de amor, de ninguém
        será. Não proíba uma rosa de hoje florir. Nem uma criança de ama-
        nhã amar.


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