Tenho vontade de lhe dar hoje a receita de Roberto Carlos: "quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar".

Mas, amigos ninguém tem aos milhões. Há o sócio da empresa, o companheiro de bar. Há o correligionário político, o cúmplice no roubo. Nenhum deles é amigo, que amizade não se faz graças ao negócio, ao copo, ao crime, à política.

Detentores de poder, econômico e político, vivem cercados de gentilezas, acenos, atenções. Podem ser bajuladores, amigos não são. Perca o poder e veja quantos em torno lhe restarão..

Não lhe desejo um milhão de amigos porque, aos milhões, eles não há. Na loteria você acerta alguma vez, se acertar. Amizade verdadeira é rara como prêmio lotérico.

Existe uma esfera da privacidade, onde nenhum olho humano esteja presente, sem ser convidado. São pensamentos que não se dizem, desejos que não podem ser contados. Tenho sentimentos - talvez de culpa, de inferioridade - que são demais íntimos para que o outro saiba. Nessa esfera não cabem dois. Mas ele é meu outro eu. Meu amigo cabe.

Amigo, mais que prazer, é necessidade de vida. É que viver é perigoso. Estou constantemente em perigo, incertezas, desafios. Preciso de olhos, mais que os dois meus, que me ajudem a ver no mundo, desde as profundezas de minha intimidade. Psiquiatras nem advogados substituem a esfera da amizade.

Amigo nunca seja uma espécie de Eu clonado. A amizade se enriquece na diferença que se preserva. Não seja necessariamente outrem que tenha suas mesmas idéias. Para isso, o Eu se basta.

Amigos transcendem todas essas relações. Ele e eu temos a vida em comum. O inimigo que vier também será de nós dois.

Tenho medo dos homens que não têm amigos. Desconfio que os suicidas são desta classe. Não tiveram a quem dar o aviso prévio da opção fatal.

Cultive amigos que isso é divino. Sejam bem menos que um milhão - talvez uns dois ou três - para você bem mais forte poder viver.

Domingo, 17 de março de 2002

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