O trabalho discute o acesso à informação como um direito de cidadania, destacando a importância da mesma para a formação da visão de mundo para as pessoas cegas assim como sua inserção na cultura; avalia o contexto atual, em que as tecnologias são a ferramenta privilegiada nos processos de produção, estocagem e distribuição da informação; discute a questão no contexto das bibliotecas universitárias brasileiras e a forma como o conhecimento e a informação contidos nesses serviços chegam aos usuários cegos. Apresenta sugestões alternativas para a melhoria desse atendimento.
Inicialmente gostaria de dizer que essa minha comunicação não parte
de uma abordagem acadêmico/científica, mas antes se alimenta das muitas
inquietações que tenho vivenciado enquanto usuária potencial da
biblioteca universitária, assim como da minha militância em uma
associação de cegos, para onde deságua toda uma série de demandas
freqüentes pelo acesso à informação, nos mais variados níveis. Parto
também de uma constatação um tanto quanto preocupante: A problemática do
acesso à informação por parte dos usuários cegos ainda é um desafio
praticamente intocado no círculo das bibliotecas universitárias, assim
como na maior parte dos serviços responsáveis pela produção e
distribuição dessa informação.
Se nas sociedades contemporâneas, a informação permeia a quase
totalidade das ações dos indivíduos e grupos eminteração, para o
indivíduo cego ela é gênero de primeira necessidade, direito de
cidadania, pois é certo que é sobretudo a partir do acesso à informação,
que ele pode interferir e atuar na sociedade, visando a sua
transformação; é a partir do acesso à informação, em todos os níveis,
que ele constrói um modo de ser e estar no mundo que lhe permita
independência e emancipação social.
Quando analisamos de forma mais detida essa questão do acesso à informação como um direito de cidadania das pessoas cegas, nos confrontamos com uma realidade extremamente paradoxal. Os recentes avanços tecnológicos nos permitem falar das sociedades modernas como de "sociedades informacionais". E aqui cabe um parêntesis interessante e ilustrativo da situação das pessoas cegas nesse contexto: A escrita manuscrita foi inventada no período entre três a cinco mil anos antes da era cristã, e o cego somente teve acesso a um código autônomo de representação da escrita ao final da terceira década do século XIX. Vejam que profundo hiato se produziu entre o advento da escrita e o advento de uma possibilidade real que permitisse aos cegos o ingresso nessa chamada "cultura letrada!".
Já com o advento das novas tecnologias nas sociedades modernas, pode-se dizer que as pessoas cegas caminham quase que em pé de igualdade com outros setores da sociedade, no usufruto dessas novas conquistas. Os primeiros computadores começaram a ser comercializados no mundo a partir dos anos 60 e 70 do século XX; nos anos oitenta, já eram postos no mercado, softs especiais que permitiam aos cegos operar com computadores. A década de noventa deu um novo impulso a esse tipo de invenção, barateando custos e fazendo com que as pessoas cegas possam ter uma excelente performance no desempenho dos computadores pessoais.
Esbocei esse rápido panorama para apresentar algumas das questões
fundamentais que permeiam a problemática do acesso à informação e ao
conhecimento por parte dos indivíduos cegos. Por um lado, temos um
contexto em que cresceram sobremaneira as possibilidades técnicas de
produção, estocagem e distribuição da informação para as pessoas cegas,
seja em formato Braille, formato digital ou mesmo em áudio; Em
contrapartida, nunca foram tão visíveis as barreiras de acesso a essa
informação potencial, a esse conhecimento.
Antes, porém, de apresentar-lhes um quadro diagnóstico das barreiras
que têm impedido o acesso à informação para as coletividades cegas,
analisemos juntos a realidade das bibliotecas universitárias, e de que
modo elas têm tratado a problemática do acesso ao conhecimento por parte
dessas minorias.
Acho que posso afirmar que no Brasil, as bibliotecas universitárias
dispõem de acervos de alto nível. Por esses serviços, circulam
diariamente, estudantes e outros usuários com interesses os mais
variados, em função da multiplicidade dos conhecimentos disseminados na
instituição universitária. Imaginemos, no entanto, uma situação em que
somos um repórter de televisão, e que, com uma câmera escondida, vamos
acompanhar um estudante cego a uma dessas bibliotecas.
Logo no balcão de atendimento, o estudante se defrontará com uma
primeira barreira. Ele não poderá consultar sozinho o acervo da
biblioteca para localizar o livro que deseja. No geral, as bibliotecas
universitárias já disponibilizaram seu acervo em um banco de dados
informatizado, mas esse banco de dados é inacessível ao estudante cego,
pois não recebeu qualquer tratamento com uma interface sonora que
permita a esse estudante interagir com o sistema.
De qualquer modo, o livro lhe será cedido por empréstimo e aí começará a
sua aventura para a leitura do material, o que na maioria dos casos,
será feita pela via do "vire-se", buscando o auxílio de familiares ou
de colegas que lerão o texto ou livro para ele.
Suponhamos, porém, que essa biblioteca tem um serviço Braille. Algumas
bibliotecas universitárias do país dispõem de serviço Braille. No
entanto, posso-lhes afirmar com toda segurança que os acervos Braille
guardados nas bibliotecas universitárias estão completamente
desatualizados, não são renovados a décadas, perdendo-se assim, o fluxo
dos avanços científicos que são constantes, em todas as áreas do
conhecimento humano.
Nosso estudante poderá contentar-se com alguns clássicos de literatura,
gramática da língua portuguesa dos anos 70 e 80, mas estará
completamente órfão de qualquer produção em Braille em qualquer área de
conhecimento, sobretudo naquelas de maior especialidade, como a física,
a química, a engenharia, lingüística, etc,. Esttará completamente órfão
de publicações em Braille de revistas especializadas, assim como jornais
e outros periódicos acadêmicos.
Obviamente, não estamos querendo exigir dessas bibliotecas a
disponibilização do seu acervo comum em escrita Braille. Os custos
materiais e financeiros dessa empreitada seriam incalculáveis. No
entanto, se fossem postas em práticas medidas mais simples de adoção das
ferramentas tecnológicas e de uma espécie de individualização do
atendimento ao usuário cego, provavelmente, muitas dessas barreiras de
acesso à informação seriam minimizadas ou mesmo estirpadas da rotina das
bibliotecas universitárias.
Do que precisa o estudante cego para que sejam minimizadas as barreiras que o impedem de um pleno usufruto do acervo da biblioteca de sua instituição? Inicialmente, penso que ele precisa de uma filosofia, algo que poderíamos chamar de um "paradigma de abordagem "que o perceba como um estudante que tem os mesmos direitos dos seus pares; um paradigma de abordagem que compreenda a informação e o conhecimento como um legado de todos os cidadãos; um paradigma de abordagem que compreenda a instituição universitária como porta-voz de um projeto de cidadania que perceba as limitações físicas ou sensoriais não como limitações incapacitantes, mas como diferenças complementares num projeto de cidadania inclusiva. Fundada tal filosofia, estabelecido tal paradigma de abordagem, começam então a ser planejadas medidas simples, de custos relativamente baixos, que possam minimizar ou mesmo destruir essas barreiras impeditivas do acesso à informação por parte dos usuários cegos. E de que medidas práticas as bibliotecas deveriam se servir para transformar essa realidade discriminatória?
Logo no balcão de atendimento, nosso estudante teria a satisfação de poder consultar o acervo de forma independente, visto que providências foram tomadas no sentido de dotar o sistema de dados com um soft de leitura de tela através de interface sonora. Ele teria ainda a sua disposição, um microcomputador com os softs indispensáveis ao seu uso; um scanner para a digitalização dos livros e outros materiais didáticos de que necessitasse ao longo do seu curso, uma impressora Braille de médio porte para a transcrição de livros em Braille; num projeto que se quisesse mais arrojado ainda, ele disporia de um terminal Braille acoplado ao seu computador, para o acesso do texto digitalizado também em formato Braille. Quais os custos de tais implementações? Posso-lhes afirmar que em moeda corrente, não excederiam aos r$ 15000,00, que obviamente poderiam encontrar respaldo em instituições de fomento em âmbito nacional ou mesmo internacional. Os ganhos imediatos de tais iniciativas, porém, seriam incalculáveis.
Há ainda um outro aspecto que precisa ser considerado. Não basta somente
a adoção do paradigma de abordagem aqui descrito, assim como a adoção de
medidas simples para a transformação de uma realidade desvantajosa. A
solução dessa problemática exige mesmo um pacto de maior envergadura,
que compreenda todo o alcance material e social das tecnologias de
informação e que possa viabilizar uma rede solidária de aproveitamento e
utilização dos benefícios advindos de tais tecnologias.
Uma rede solidária que envolva a participação dos editores, das
instituições universitárias, das bibliotecas, das organizações não
governamentais de pessoas portadoras de cegueira e de baixa visão,
assim como dos serviços especializados.
Nessa rede solidária, os editores têm talvez o papel de maior
relevância: Imaginem a situação nova que as tecnologias de informação
trouxeram para o campo do mercado editorial: Antes de se transformar em
escrita impressa em papel, o livro é um pacote de bites de informação
digital, que pode ser convertido em linguagem de áudio, em escrita
impressa, que por sua vez pode converter-se em texto Braille ou
novamente em texto digitalizado, através do escaneamento.
Dificilmente paramos para pensar nisso, mas os editores de livros são
bancos de dados em potencial, depositários primeiros de acervos que
poderiam por força de um pacto político,de um pacto solidário, ser
disponibilizados aos usuários cegos das bibliotecas universitárias e
afins, no seu formato digital.
Se considerarmos o montante de informação digital pronta para ser convertida em livro existente no mercado editorial; se considerarmos ainda, o montante de informação digital pronta para ser convertida em livro ou para ser decodificada em interfaces compatíveis aos usuários cegos existentes nos computadores pessoais de pessoas cegas Brasil a fora; se considerarmos ainda, as chamadas bibliotecas virtuais organizadas por organizações não governamentais de cegos ou mesmo por bibliotecas especializadas na área da cegueira nos defrontaremos com uma pequena fortuna em obras, que ou está sendo sub-utilizada, ou necessita de uma rede organizada de estocagem, tratamento e distribuição dessa informação de forma solidária e democrática.
Embora seja importante termos sempre em mente que as tecnologias não podem ser vistas como a panacéia que solucionará todos os problemas de acessibilidade à informação, embora não possamos deixar de reconhecer o código Braille como a ferramenta natural e direta de acesso dos indivíduos cegos à leitura e à escrita, temos que começar a pensar seriamente em projetos de aproveitamento desse potencial informacional que é posto a disposição dessas coletividades e dos seus serviços a partir da adoção das ferramentas tecnológicas aqui descritas.
De forma espontânea, pessoas cegas, ou mesmo seus familiares e técnicos da área têm se dedicado ao processo de digitalização de livros, assim como à utilização dos espaços virtuais para o armazenamento e a distribuição dessas obras para estudantes cegos, bibliotecas e serviços especializados. Tais medidas, além de contemplar interesses específicos, de acordo com a área de envolvimento de cada estudante, poderiam, a médioe longo prazo, permitir uma renovação sem precedentes nos acervos dos setores Braille das bibliotecas especializadas.
Mediante o quadro aqui esposto, parece, pois, que as barreiras impeditivas do acesso à informação pelos usuários cegos de bibliotecas universitárias exibem a necessidade de uma mudança de filosofia, de percepção desses indivíduos como sujeitos com direitos ao usufruto da cidadania também nessa área. Envolvem ainda, uma vontade política que associe administrações dessas universidades em associação com editores, organizações não governamentais de portadores de deficiência, bibliotecas e serviços, na materialização de uma rede solidária que possa dar corpo a um conjunto de estratégias que viabilizem as bibliotecas universitárias não como espaços de discriminação, mas como lugares onde se realiza a inclusão e a emancipação desses indivíduos.
Cabe ainda aqui, uma reflexão final sobre essa breve panorâmica. Se por
um lado, as bibliotecas universitárias não têm se aparelhado para o
atendimento aos seus usuários cegos, por outro lado, as associações de
portadores de deficiência não têm se mobilizado no sentido de apresentar
o rol das suas necessidades para esses serviços, assim como apresentar
caminhos possíveis para que as melhorias aconteçam.
Recentemente, abaixoassinados eletrônicos de estudantes portadores de
cegueira circularam na internet, protestando contra a revogação da lei
que obrigava aos editores de livros, disponibilizar em Braille, uma
quota das obras lançadas em tinta no mercado. Na minha opinião, porém,
tal lei, embora reconhecesse um direito inalienável dos indivíduos
cegos, é de fato inexeqüível. Para cumpri-la os editores teriam que
montar centros de produção Braille e sabemos que tal situação tem
pouquíssimas probabilidades de acontecer em um país como o nosso.
Parece-nos pois, que editores, instituições universitárias e outros, têm
uma imensa dívida para com os portadores de cegueira. Está na hora de se
enfrentar o problema, discutindo saídas que possam ser postas em
prática, para o resgate dessa dívida.
Joana Belarmino é jornalista, professora do curso de comunicação e Turismo da Universidade Federal da Paraíba, Mestra em Ciências sociais, Doutoranda em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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