CANTINHO DA PANDORA





A Valorização do Braille na Educação
Por Joana belarmino

Palestra proferida no Seminário de bibliotecas Braille, Natal, Rn, 5/6 de setembro de 2001.

Inicialmente eu gostaria de ressaltar o quanto esse tema é oportuno. Isto porque estamos vivendo no âmbito da educação especial, particularmente no que toca à educação de crianças cegas, um momento singular, que parece exibir um processo de transição, e transição sempre sugere uma crise, no sentido positivo do termo, porque nos obriga à reflexão sobre valores, estruturas, modos de pensar e agir, reflexão sobre práticas estabelecidas.

De fato, a educação especial no Brasil está passando por um processo de mudanças profundas, algumas das quais estão acontecendo de forma muito rápida, cabendo a nós, educadores, bibliotecários, estudantes, utilizadores do sistema braille, refletir sobre esse novo contexto, e tentar estabelecer algumas das estratégias que julgamos fundamentais para que essa educação se converta em iniciativas de qualidade, que culminem de fato no crescimento do seu público alvo, ou seja, as crianças, os adolecentes e jovens cegos.

inicialmente, eu gostaria de levantar três aspectos que no meu entender vêm caracterizando essa realidade de transição vivida pela educação especial:
1. o processo de inclusão da criança cega nos estabelecimentos regulares de ensino;
2. o processo de informatização da produção do texto braille e de outras atividades da educação de cegos;
3. O processo de "Desbraillização" de crianças e adolecentes cegos;

1. Eu vou comentar rapidamente cada um desses três aspectos, mas queria começar invertendo a ordem e falando sobre a "desbraillização". Já a alguns anos, estudiosos da problemática da cegueira em todo o mundo civilizado vêm alertando para esse fenômeno. A "desbraillização" é o que poderíamos chamar de sub-utilização, ou mesmo em alguns casos, de substituição do sistema braille por outras ferramentas, tais como, o livro gravado, o texto digital, o artifício da substituição do braille pela prova ou outros exercícios orais, etc, etc.

Indícios desse processo desbraillizador podem ser nitidamente percebidos aqui no Brasil: crianças, adolecentes e jovens cegos estão lendo e escrevendo mal em braille; se fizermos um levantamento investigativo de como anda o desempenho das pessoas cegas nos concursos vestibulares, veremos que tem caído significativamente nos últimos anos, o número de aprovações nesses concursos.

Há ainda um outro aspecto do fenômeno, menos visível, mas bastante real. Falo da "desbraillização" dos educadores de crianças cegas, que por deficiências profundas nos processos de formação, estão mal apetrechados para essa tarefa fundamental da alfabetização pelo método braille.

2. O processo de informatização da produção braille:

Isso começou em fins da década de oitenta, mas antes concentrava-se nos grandes centros de impressão do texto braille, em Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. com o advento de softwares de voz aptos à utilização dos computadores pessoais, em meados da década de noventa, esse processo de informatização da produção do braille vai se alargar muito a partir daí. De tal forma, que hoje já podemos vislumbrar uma realidade em que cada escola, cada serviço especial possa ter um sistema integrado de microcomputadores, equipamentos de scaner e impressora braille para a produção do texto.

3. finalmente, o processo de inclusão. Na verdade, ainda qque com outra rubrica, esse processo começou nos anos 70, quando a então Campanha Nacional de Educação Especial (Cenesp), deu início em todo o país, a uma campanha que questionava as escolas especiais em regime de internato, considerando-as como segregacionistas, e propondo a chamada "educação integrada", algo muito semelhante ao que já havia ocorrido em Portugal, na década anterior.

E é no governo atual que se retoma com maior vigor e com ações bastante marcantes, iniciativas que visam a instituição da escola inclusiva, onde caibam todos, inclusive a criança, o adolecente e o jovem cego e com baixa visão.

Agora vejamos que quadro curioso se forma quando pensamos nesses três aspectos de forma relacionada:
Por um lado, nós temos uma realidade em que se ampliaram sobremaneira as possibilidades de produção, armazenamento e distribuição do texto braille, assim como alargaram-se as possibilidades em que esse texto pode ser apresentado aos seus usuários:
em braille, em formato áudio e em formato digital; Temos um conjunto de iniciativas práticas por parte do governo, visando adequar as escolas e os serviços especializados a esse projeto de educação inclusiva. Persiste, no entanto, como música de fundo, a "desbraillização", que não aparece apenas num ciclo do processo, ou seja, não são apenas os estudantes que estão sub-utilizando o braille, mas tem se denunciado que há cada vez menos professores com uma formação consistente nesse sistema de leitura e escrita, há cada vez menos cursos de formação em educação especial que possam dar conta de uma demanda cada vez mais crescente de especialistas num país de proporções continentais como o nosso.

Isso tudo só reforça aquela idéia de que estamos mesmo vivendo um processo de transição, e que devemos estar atentos aos sintomas de possíveis desvios, prováveis "mazelas", a fim de que os mesmos possam ser enfrentados e debelados. Por outro lado, esse panorama rapidamente apresentado nos encaminha diretamente ao tema proposto por esse seminário, ou seja, nos dirige a uma discussão inadiável sobre a valorização do braille na educação de cegos.

E vamos continuar pensando sobre essa valorização do braille, ainda guiados por esses três aspectos que eu levantei no início da minha fala. porque eu penso que qualquer iniciativa que vise a disposição de estratégias para a valorização do braille na educação especial, dentro de um projeto que vise a inclusão desses indivíduos no sistema regular de ensino, não pode esquecer-se nem nunca descuidar de três pontos básicos:
1. O primeiro e o mais importante: o sistema braille, único meio direto e natural de leitura e escrita das pessoas cegas é insubstituível e deve ser a espinha dorsal, tanto dos processos de ensino/aprendizagem da criança cega, como dos cursos de formação e mesmo dos cursos superiores de formação em educação especial.

Nesse sentido, um estudioso do sistema braille em portugal, o Professor filipe Pereira Oliva até defende que seja criada nos cursos de formação superior, uma disciplina chamada brailologia, que possa dar conta de todos os aspectos da formação em braille.Nesse aspecto, nós estamos acostumados a ter cursos relâmpagos de braille em escolas, serviços especializados e na comunidade; a partir desses cursos, nunca poderemos dizer que estamos formando especialistas em braille.
2. O segundo ponto que não podemos esquecer: os materiais em formato áudio e digital nunca podem ser substitutos do texto braille, mas antes, são complementos que só podem ser largamente utilizados quando a criança já adquiriu maturidade no seu processo de alfabetização e domina com segurança, regras gramaticais, de ortografia, etc, etc.
Esse ponto, tem aliás, um segundo sub-ponto embutido:
2.1. um operador de micro-computador e impressora braille que não recebeu formação especializada não pode ser sozinho o responsável pela produção do texto braille.

Muitas vezes, o que tem acontecido nas escolas e serviços especializados, é que os espaços destinados à produção do texto braille são entregues aos cuidados de pessoas sem qualquer formação em braille; a tecnologia opera maravilhas. o texto é digitalizado e com um clique no mouse é impresso em formato braille; esse operador no entanto, nada sabe sobre revisão braille, sobre braille e matemática, braille e musicografia, braille e gráficos, braille e desenho, etc, etc.

Essa questão é mesmo muito séria e precisa ser enfrentada. Ela nos encaminha diretamente a uma outra que eu não vou explorar aqui, por razões de tempo:
qual o braille que temos? Qual o braille que queremos?
Por que o braille não pode ser substituído por nenhum outro meio?
Porque é somente a leitura e a escrita braille que pôem a criança cega em contato direto com informações sobre a sua língua escrita, sobre a sua gramática, sobre a sua pontuação, sobre a sua ortografia; é a leitura e a escrita braille que põem a criança cega em contato com os sinais matemáticos, com a musicografia, com as regras de cartografia, etc, etc. Essa é, aliás, uma conquista bio-antropológica e cultural. Não podemos privar a criança cega desse contato que se estabelece entre mão e cérebro, decifrando a sua cultura escrita, pois a estaremos privando de um dos maiores legados da humanidade, ou seja, a sua fortuna cultural escrita, e para além disso, do crescimento potencial do seu cérebro, no nível de conexões neurais importantes para a qualificação do modo como ela vai estar e vai perceber o seu mundo.
3. E finalmente chegamos ao terceiro ponto que não pode ser esquecido, e que de certo modo, amplia e consolida os dois primeiros, dando-lhes mesmo um fundamento filosófico: Em qualquer processo de inclusão, não podemos pensar em aparar, ou por outra, em homogenizar as diferenças. ao contrário, me parece que o maior desafio dentro do processo de inclusão é o de incluir as diferenças, com todas as suas especificidades. Eu penso que a gente precisa ver a cegueira como ela é de fato: A cegueira, em relação à visão, é uma diferença, uma diferença e tanto; a cegueira, em relação à visão, envolve um outro universo, que é o "universo tátil"; envolve portanto, uma série de estratégias que são completamente diversas daquelas presentes no universo visual; envolve a adoção do relevo, envolve a adoção de medidas que chamem o sentido do tato à sua tarefa primordial, ou seja, à tarefa de levar a criança cega a um conhecimento competente do mundo.

Me parece que para que dê certo um processo de inclusão, é preciso que se aceite essa premissa básica:
A inclusão da cegueira como diferença.
Não como uma diferença ameaçadora, apta a gerar o medo, a insegurança, a frustração, não como uma diferença que aparta, que discrimina; mas como uma diferença que é também complemento para a educação visual; uma diferença que apresenta a cegueira não como uma limitação física, mas como uma realidade que se for devidamente abordada, ensinará à sociedade, sobre as potencialidades e as capacidades do seu portador.

Isso é o que a gente poderia chamar de estratégia de resgate do sujeito global; isso exige que se coloque o sistema braille como a peça mais fundamental dentro de um conjunto de estratégias outras que visem esse resgate.

Isso envolve vontade política, disposição de educadores, bibliotecários, de todos enfim que estão envolvidos no processo da chamada educação especial; mas para além dessa vontade política, dessa disposição, isso exige amor pelo braille. amor que culmine com a sua defesa intransigente como ferramenta indispensável na educação de crianças cegas, antes que seja tarde, antes que as nossas crianças, adolecentes e jovens cegos se convertam em "excelentes ouvintes de textos", mas sejam completamente analfabetos em leitura e escrita braille; sejam completamente analfabetos no que toca à conformação gramatical e ortográfica da sua e de outras línguas, seja completamente analfabetos com respeito à cultura escrita, um dos maiores legados da humanidade.

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