seleção de José Nêumanne Pinto.
São Paulo: Geração Editorial, 2001, 324 pp.
A obra conservará por algum tempo o cheiro de tinta nova, fato que induzirá muitos leitores a uma primeira leitura olfativa da coletânea que reúne, em suas 324 páginas, uma súmula dos melhores poetas brasileiros do século XX.
Uma segunda leitura, aquela mais apropriada à assimilação dos conteúdos do livro, revelará o tamanho do desafio a que se propôs o seu idealizador. Para além de uma proposta aparentemente comercial, os leitores poderão desvendar um criterioso trabalho de pesquisa, uma difícil e cuidadosa seleção, um apego à excelente poesia que o século XX foi capaz de produzir.
Arte e bom gosto na confecção gráfica do livro completam a excelência do trabalho, que extrapola a condição de coletânea poética para constituir-se numa obra complementar para os estudiosos que queiram conhecer as tendências poéticas mais importantes do século, já que o trabalho traz textos introdutórios, que explicam essas tendências, e notas biobibliográficas dos poetas.
Quantas leituras a obra pode suscitar? Uma observação inicial do livro revela um intento claro do seu organizador: a necessidade de mapear a história poética do século XX a partir da construção de uma cronologia linear. Mas é a própria poesia, nas diversas tendências ali contidas, que ora explode com tal linearidade, para instaurar um modo de realidade intemporal, cravada de incontáveis "agoras", ora restabelece o fio condutor dessa cronologia, recompondo marcas culturais de um tempo datado, ou mesmo as pegadas de uma cultura universal presente em nossa poesia.
O jornalista, poeta e escritor José Nêumanne Pinto foi quem selecionou os poetas que comparecem na obra. Certamente alguns bons nomes não estão presentes, num trabalho que foi guiado tanto pelo respeito ao cânone, como pelo gosto pessoal e pela emoção do autor de Solos do silêncio. Nêumanne confessa: "...muitas mágoas secretas serão destiladas por amigos ou conhecidos deixados de fora - alguns na certa injustamente".
Na seleção de José Nêumanne Pinto, há pois seis tendências da poesia brasileira dos últimos cem anos, reunindo cem poetas: Pré-Modernismo, Modernismo, Geração de 45, o grupo que contempla a fase do Concretismo, Práxis e Poema Processo, os contemporâneos e os poetas populares.
Mas o passeio do jornalista pela poesia do século não é unicamente um diálogo com o cânone e com suas emoções e gostos pessoais. É também um encontro com escritores e jornalistas, a exemplo de Rinaldo de Fernandes e Sandra Moura, colaboradores diretos dessa publicação, de Roniwalter Jatobá, Mário Pontes e de Francisca Neuma Fechine Borges, que, junto com algumas outras pessoas, indicaram alguns dos poetas que figuram na coletânea.
Esta resenha pretende mapear esses encontros, que são um diálogo com os tempos em que os poemas foram escritos, mas também com o tempo em que eles estão sendo lidos, relidos - revisitação das emoções e sentimentos dos seus autores. E será sobretudo a nossa contemplação pessoal que aqui destacará as marcas poéticas de cada um desses tempos e construirá o tecido semiósico dos múltiplos encontros de sentidos construídos, numa interpretação/experimentação essencialmente arbitrária, porque não traduz a crítica poética, mas o sentimento de uma leitora de Os cem melhores poetas brasileiros do século.
Como se constrói uma resenha acerca de um livro de poesias, sobretudo quando a obra intenta ser uma amostragem do que se escreveu em um século? Os críticos poderiam exercitar o caminho da análise da obra propriamente dita, exumando ausências, lamentando presenças, questionando inserções nesta ou naquela tendência, sob a cobertura do discurso crítico apto a desvendar os meandros dessa arquitetura/escritura poética.
De nossa parte optamos por uma espécie de "método de superfície", o método do leitor que enfrenta uma primeira leitura cuidadosa, página por página, mas que não retém o espírito nos interstícios da poesia, não vai muito além da página, a capturar sentidos de um tempo passado que se iça irremediavelmente no "agora" e entrelaça à sua condição de poesia, de profecia, a condição nova de crônica do presente.
O "método de superfície" pode despertar um interesse mais sentimental - o que é sempre importante na leitura de poesia. Não é análise propriamente dita, com base na teoria literária e fazendo a ponte interdisciplinar. Mas enquanto a poesia descansa ainda, a ressoar na retina fatigada do cérebro, recomeça a garimpagem de sentidos outros, "modelizações" novas que vão se descortinando em versos arrumados ou em desordem, pintura a óleo, na líquida fala dos versos, instantâneo de uma cidade, o conto exato e substantivo a se desfolhar do poema; o romance encapsulado na poesia, tudo sendo e tecendo a semiose do mundo da cultura.
É pois para o exercício do "método de superfície" que partimos agora, arrimados em um espírito onde o bulício dos sentidos é a cantata minimalista dos sons e imagens de um século feito em poesia.
Página a página, Os cem melhores poetas brasileiros do século são um encontro com o Pré-Modernismo e a força da poesia de Augusto dos Anjos, extraindo do âmago do passado angústias que exalam um tempo presente.
Um encontro com os modernistas vinculados à semana de Arte Moderna, onde se destaca a "adivinhação" de um tempo febril pelo mineiro Ascânio Lopes. Um encontro com um segundo momento do Modernismo, onde nos confrontamos com o neo-romantismo de Augusto Frederico Schmidt e com a fascinante meditação contemplativa que nos faz revisitar São Paulo na líquida pintura a óleo do rio Tietê, do poeta Mário de Andrade, um dos mais belos momentos desta coletânea, versos escritos no passado a tecer um inconfundível "agora", cujo flash fora antecipadamente anunciado assim: "Mas as águas, / As águas choram baixas num murmúrio lívido, e se difundem / Tecidas de peixe e abandono, na mais incompetente solidão". E eis que esse momento do livro torna-se muito mais rico, porque pela primeira vez uma obra publica "Meditação Sobre o Tietê" baseado na versão do último manuscrito, permitindo que o leitor exigente possa cotejar alterações sofridas no texto original, em suas diversas publicações.
Encontro com a geração dos poetas de 45, onde a emoção da poesia de Paulo Mendes Campos desveste uma difusa crônica misto de ternura, nostalgia, profecias duras, entretecendo palavras com cheiro de infância, dentro do quintal e da noite, dentro de casa, dentro de nós. Versos largados a meio caminho do poema, plenos de metafísica: "Que força de destino tem a carne / Feita de estrelas turvas e de nada!".
E eis que chegamos à fase do chamado poema concreto, e nos surpreendemos diante das páginas-lacunas da poesia de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, onde frias notas nos convidam à estante de livros, quem sabe à livraria mais próxima, à cata de uma outra coletânea onde se possa ler a poesia ausente. É que esses poetas não autorizaram a reprodução dos poemas no livro, que terminou saindo com 100 poetas mas contendo 97 poemas.
Engolimos em seco e ficamos nos perguntando o que teriam dito os do
"método crítico", a escolher entre suas ferramentas teóricas a que
melhor se adequasse a um discurso justificador de tais amputações.
E como a se rir da ocasião insólita, explodem na página à nossa frente
os versos de Ferreira Gullar:
"...o poema, senhores, está fechado: 'não há vagas'"
No que diz respeito aos contemporâneos, "A flor da pele" exibe a poesia revolucionária de Armando Freitas Filho, uma espécie de colagem de sentidos em que a confecção do poema abre uma profunda brecha nas formas convencionais, para instaurar um novo caótico, que ao mesmo tempo vai criando o ritmo, a ordem e vai desenhando uma narrativa-notícia das angústias do mundo.
Os poetas populares propiciam-nos, nesse passeio de José Nêumanne Pinto, um encontro com a singeleza de uma poesia construída por sonhos simples, atados ao cheiro da terra, nas frases corredeiras dos rios de lá e daqui, inventando a complexa armadura em que história, cotidiano, cultura local e regional se mesclam, a tecer o modo ao mesmo tempo singular e universal de habitarem o mundo poético.
Enfim, o que se testemunha, nessa incursão neumanniana pelos cem melhores poetas brasileiros do século, é essa espécie de sobrevôo da poesia pela cultura. Palavras forjam imagens que transpiram o hálito vago das coisas, costumes e práticas; outras vezes, ao modo de uma escavadeira, a poesia penetra fundo nas estrias culturais, sua teia de significados, a revolver suas fundações de espanto e angústia.
Fica-nos a lição de que a poesia deve ser sempre um exercício de liberdade, fato que tão bem soube ilustrar o contemporâneo Moacyr Félix, no seu poema "Canto para as transformações do homem":
"É inútil querer parar o Homem a colher sempre um pouco de si próprio no
mistério da vida a cavalgar os cavalos aéreos da semântica sob uma
indeferida eternidade.
É inútil querer parar o Homem e o impulso que o transforma sempre na
pátria sem fim do ato livre que arranca a vida e o tempo e as coisas do
espelho imóvel dos conceitos ...
É inútil querer parar o Homem, o que transforma a pedra em piso, o piso
em casa e a casa em fonte de novas músicas da carne"
JOANA BELARMINO é jornalista, professora da UFPb e doutoranda no PEPG em
Comunicação e Semiótica da PUC-SP.
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