CANTINHO DA PANDORA





O que Vê a Cegueira: Desatando os Nós de Uma Experiência

(por Joana Belarmino)

Apresentação

Este trabalho é a narrativa de uma experiência, de um modo particular de encarar a cegueira. mais do que entender a cegueira, pretende-se aqui compreender a visão como um "múltiplo".
as idéias aqui esboçadas não são novas. É possível que possam ser encontradas em essência no cerne de muitos trabalhos, ou mesmo disseminadas aqui e ali, nos estudos dedicados à problemática da cegueira. Assim, ao retomarmos o tema, nos esforçamos por, na medida do possível, diluir as bipolaridades, as oposições entre cegueira e visão, visão e cegueira.
Se tivéssemos que fazer aqui, considerações metodológicas acerca do desenvolvimento das nossas idéias, teríamos que reconhecer que esse texto nasceu muito mais das nossas vivências, do que propriamente de uma reflexão acadêmica sedimentada por teorias e estudos científicos. É pois a emoção, o único método que nos guia nesse caminho.

1. A Pedra, O Fogo, o Verbo: História de uma Trilogia

Curvada sobre sua carteira escolar, uma menina de sete anos preme no papel, os pontos de uma pergunta, ainda indistinta, quase inconsciente; esboça sem o saber, as primeiras letras de um paradoxo, ao mesmo tempo científico, psicológico, social e existencial. O que vê a cegueira?
O ano é 1964, a menina é cega e aprendeu com as pedras, a dura lição de tentar enxergar uma primeira resposta para essa questão, sob a capa dessa experiência.
As pedras são como lugares em que a natureza trabalha em silêncio. Lugares em que as moléculas, os átomos, em sua cavalgadura, são testemunhas do tropel cósmico que produzem, criando os ciclos da vida.
A menina tinha fascinação pelas pedras, assim como pelo vento, pela chuva anunciada no campo através do modo plural que a natureza tem de nos falar. As pedras, sobretudo, enchiam sua infância de espanto e perplexidade.
No pátio da casa, um pátio de terra batida que sua mãe cuidava de varrer todas as manhãs, havia uma fileira de quatro ou cinco pedras, encostadas a parede da cozinha. Fila indiana de rochas irmãs, algumas mais altas, outras mais baixas, todas pouco menores do que ela, no topo dos seus quatro anos.
Naquela época, em algum sítio da sua consciência, já havia se incrustado a sua senssação de cegueira, algo obscuro, é certo, mas pleno dessa situação ambígua onde por certo já conviviam pequenas angústias, pequenas alegrias.
Numa manhã de sol radiante, marchava ela defronte das pedras, num passeio ritimado de criança, quando deu pela presença das pedras. Não que não soubesse que elas sempre ali estiveram, por as ter tocado, por ter feito delas extensoes das suas brincadeiras infantis. Dera pela presença das pedras de um modo novo, como se as estivesse vendo. As pedras lhe comunicavam sua presença irradiando na face. Como ela não sabia o que era "ver", tomou por "visão" aquele acontecimento. E maravilhada, marchou diante das pedras, como se estivesse em transe, repetindo um mantra que inventara naquela horinha mesmo: "Eu vejo! eu vejo!" Dizia aquilo com a inocência e a convicção de uma criança de quatro anos. Foi quando para "ver melhor" uma pedra, calculou mal a distância entre sua face e a rocha e esbarrou brutalmente contra a mesma, interrompendo a sangue e a dor, a doce lição de "ver" dentro da cegueira. Lágrimas e remédios caseiros empurraram para o fundo da memória a força daquela experiência, e, por muitos e muitos anos,ela não pensou mais naquele primeiro ritual de iniciação, duro ritual que lhe tinha posto sozinha com sua cegueira, exposta as bordoadas nas pedras.
Não pôde compreender de imediato, a verdade que as pedras haviam lhe ensinado. Essa verdade não se revelou por inteiro, mas aos poucos, por insinuacoes, pensamentos, conjecturas.
As pedras, a seu jeito, golpeando-lhe a face com sua rude estrutura, haviam lhe ensinado a "ver" mesmo dentro da sua cegueira. Levou tanto tempo para decifrar os nós daquela experiencia! Caminhava, caminhava, e sempre, de algum modo, retomava aquela afirmação infantil, agora sob a forma de pergunta: O mantra se renovara: Ja não afirmava mais "eu vejo!", mas antes indagava: O que vê a cegueira?
Longe de a desanimar, a pergunta a incitava a dizer coisas, a montoar palavras, a enfileirar frases e mais frases, ao modo da fileira de rochas, na sua tentativa de tornar clara essa "visão" que também habita a cegueira, reproduzindo o claro-escuro que sempre parece estar presente no ato do homem de observar o real.
O que vê a cegueira? Era para essa descoberta que ela caminhara naqueles dias de 1964, agora não mais instigada pelas pedras, mas munida por artefatos técnicos: Papel, reglete, punção, desenhavam agora o relevo da sua pergunta, renovando-lhe o sentido, criando para ela um nicho tecido de palavras e mais palavras. A menina cresceu e de novo pôde apreciar a velha lição das pedras, agora burilada, como jóia nova e brilhante.

"A minha cegueira é uma forma de visão"! "A minha cegueira é uma forma de visão"! Dentro da sua cegueira, compreendeu que sempre vira com o corpo inteiro. Via com os pés, que lhe indicavam as mudanças de solo; via com as mãos, com a face; via por todos os poros do seu corpo e continuava vendo, todo um espetáculo interior que habitava o seu íntimo, a sua mente, e dialogava com o mundo exterior de um modo próprio, o seu modo de "ver".
Percebeu como a experiência da cegueira acha-se ela própria "imunda" de visão, e as tantas vezes em que tivera vergonha disso, as tantas vezes em que negaceara essa visão olfativa, auditiva, todos os "órgãos de ver", espalhados por seucorpo a fora, e que lhe tinham sido revelados pela lição das pedras!

2. As Visões da cegueira ou a Cegueira como Visão?

O rosto é inexpressivo. Cabeça e corpo se encolhem para dentro. É a metáfora do "ensimesmamento". No cinema, na arte, na literatura, a criação devolve ao homem cego o que já lhe dera a sociedade: um "mundo de silêncio e trevas", um "não lugar" na vida, na poesia, na paixão. Em muitos lugares do mundo, pessoas cegas foram e são "estrangeiras" em sua própria págria. Na tribo, nas grandes metrópolis, na aldeia, o olhar que as tocou não as reconheceu como "parte" da comunidade; andarilhos da idade antiga e medieval, reclusos da modernidade, estranhos no seu próprio mundo, os cegos persistiram na arte de "aprender a ver", dentro da sua cegueira.
Houve quem falasse desse acontecimento de "cegos videntes". A mitologia, o cinema, a literatura, a poesia, "animaram" uma espécie de metáfora da cegueira como "visão", A metáfora porém, em geral alçou o indivíduo cego para além da sua terra; elevou-o para perto dos deuses, fez dele um ser que continuava "estranho" no mundo dos viventes. Subtraídos do mundo da normalidade, impunha-se para os indivíduos cegos, a luta pela sua conquista. Aquele homem que aprendera a ver o mundo desbastando pedras, palmilhando estradas, ou despertando os homens do alto da mesquita, à força das suas orações, aquele homem qtosco, de cabeça baixa, que se encolhia para escutar o canto de um pássaro ou sentir o cheiro da mercearia mais próxima onde pediria o seu pão, teve que inventar um modo novo de demonstrar a sua "visão" e assim partilhar do seu mundo como seus iguais, os outros homens.
E da pedra fez-se o fogo; o fogo fundiu o ferro e num dia longínquo, um menino cego curvado sobre uma mesa de escola, inaugurou o gesto de "ler" o mundo com suas próprias mãos.

3. Por uma Compreensão da Visão como um Múltiplo

Olhar a questão de visão e cegueira ao longo da história, implica reconhecer a existência clara de um espaço de divisão, significa testemunhar uma relação muitas vezes inconciliável entre os dois fenômenos. é como se estivéssemos a jogar o jogo de "cara ou coroa", velho exercício de uma humanidade que ao longo de sua trajetória, esmerou-se na tarefa de separar, classificar, ordenar, confinar.
Há que se experimentar também aqui, um outro caminho; Se olharmos bem para essa moeda, se sopesarmos sua essência, veremos que a cara ora é coroa e que a coroa se transmuda em cara.
Parece ser indispensável que renovemos a questão inicial: Qual a qualidade da visão que habita a cegueira? Teriam os manuais de educação especial se ocupado em decifrar as chaves dessa pergunta?
Para além dos fenômenos cinestésicos, podemos falar de uma visão estética do mundo dentro da cegueira, raramente percebida e estimulada pelos projetos pedagógicos formadores desses indivíduos, mas que pode ser pressentida pela própria arte poética, conforme ilustra a passagem abaixo:

"...- Se o senhor soubesse - exclamou ela então numa exaltação de alegria - se o senhor pudesse saber como eu imagino tudo isso facilmente. Veja Quer que eu lhe descreva a paisagem?... Há atrás de nós, acima e ao redor de nós, os grandes pinheiros, com gosto de resina, com troncos grenás, com longos e sombrios galhos hori- zontais que se lamentam quando quer curvá-los o vento. A nossos pés, como um livro aberto, inclinado sobre a estante da montanha, a grande campina verde e matizada, que a sombra azula, que o sol doura, e cujas palavras precisas são flores gencianas, pulsatilas, ranúnculos, e os belos lírios de Salomão - que as vacas vêm soletrar com seus sinos, e onde os anjos vêm ler, já que diz que os olhos dos homens estão fechados. Na parte inferior do livro, vejo um grande rio de leite, enfumaçado, enevoado, cobrindo todo um abismo de mistério, um rio imenso, sem outra margem senão, ao longe, bem longe à nossa frente, os belos Alpes resplandecentes..."
(In, "A sinfonia pastoral", André Gide: p/72).

Pensar na cegueira como forma de ver sugere, pois, a instituição de um novo modo de ação e de organização, tanto para o cego, como para os que enxergam. Envolve o esforço de construção de um novo paradigma, o qual possa abolir não a cegueira ocular, mas todos os entraves culturais e sociais que ao longo da historia do homem foram agregados a essa limitação fisica, repercutindo muitas vezes de forma nefasta, tanto nos processos pedagógicos desses indivíduos, como na sua inserção à sociedade mais ampla.
esse é pois um projeto não apenas para um conjunto de pessoas envolvidas nessa problemática, mas é um projeto para toda uma sociedade, porque envolve o reconhecimento do ser humano na sua totalidade e nas suas diferenças.
Se a argumentação aqui exposta não é nova, está a exigir uma reflexão de fôlego, que possa enfrentar o binômio visão/cegueira, não do ponto de vista de suas distinções físico anatômicas, mas a partir das suas qualidades de junção, de complementaridade.
Se pensarmos pois, o mundo dos homens a partir do conceito de visão, então teremos a seguinte máxima:
a visão é um múltiplo, com formas diversas".
Desse modo, não há como afirmar: "A visão é uma forma de cegueira", mas antes, "a visão que os homens têm a respeito da cegueira é também uma forma de visão", que tanto pode servir para "juntar" as diferenças como para apartá-las. Se observarmos a história dos homens a partir das suas formas de visão, veremos um magistral desenvolvimento desse processo! O filósofo Teillard de Chardin tem uma frase exata para a descrição desse fenômeno:
"...a história do mundo vivo se resume na elaboração de olhos cada vez mais perfeitos no seio de um Cosmos, onde é possível ver cada vez mais."
O homem expandiu seus modos de "ver" de formas as mais variadas. Nesse contexto, a história da cegueira não é senão, a história do esforço do indivíduo cego para também impor a sua forma de "ver" o mundo.

Compreender e valorizar essa alquimia de sentidos e pensamento na tradução do mundo, é uma tarefa que deve envolver não apenas os indivíduos cegos, mas, toda a sociedade. Nos limites desse trabalho, temos consciência da pouca profundidade com que exploramos o tema. Pensar a cegueira como uma forma de visão, ou antes, pensar a visão como um "múltiplo" onde precisam estar contempladas as diversas formas de "ver", eis o desafio que deve alimentar nossa prática cotidiana, nosso ser e estar no mundo.
Que nos próximos milênios, nossos esforços nos auxiliem a "ver" cada vez mais.

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Para contato: Joana Belarmino

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