Apresentação
Este trabalho é a narrativa de uma experiência, de um modo
particular de encarar a cegueira. mais do que entender a cegueira,
pretende-se aqui compreender a visão como um "múltiplo".
as idéias aqui esboçadas não são novas. É possível que possam ser encontradas em
essência no cerne de muitos trabalhos, ou mesmo disseminadas aqui e ali,
nos estudos dedicados à problemática da cegueira. Assim, ao retomarmos o
tema, nos esforçamos por, na medida do possível, diluir as
bipolaridades, as oposições entre cegueira e visão, visão e cegueira.
Se tivéssemos que fazer aqui, considerações metodológicas acerca do
desenvolvimento das nossas idéias, teríamos que reconhecer que esse
texto nasceu muito mais das nossas vivências, do que propriamente de uma
reflexão acadêmica sedimentada por teorias e estudos científicos. É pois
a emoção, o único método que nos guia nesse caminho.
1. A Pedra, O Fogo, o Verbo: História de uma Trilogia
Curvada sobre sua carteira escolar, uma menina de sete anos preme no
papel, os pontos de uma pergunta, ainda indistinta, quase inconsciente;
esboça sem o saber, as primeiras letras de um paradoxo, ao mesmo tempo
científico, psicológico, social e existencial. O que vê a cegueira?
O ano é 1964, a menina é cega e aprendeu com as pedras, a dura lição
de tentar enxergar uma primeira resposta para essa questão, sob a capa
dessa experiência.
As pedras são como lugares em que a natureza trabalha
em silêncio. Lugares em que as moléculas, os átomos, em sua
cavalgadura,
são testemunhas do tropel cósmico que produzem, criando os
ciclos da vida.
A menina tinha fascinação pelas pedras, assim como pelo
vento, pela chuva anunciada no campo através do modo plural que a
natureza tem de nos falar. As pedras, sobretudo, enchiam sua infância de
espanto e perplexidade.
No pátio da casa, um pátio de terra batida que
sua mãe cuidava de varrer todas as manhãs, havia uma fileira de quatro
ou cinco pedras, encostadas a parede da cozinha. Fila indiana de rochas
irmãs, algumas mais altas, outras mais baixas, todas pouco menores do
que ela, no topo dos seus quatro anos.
Naquela época, em algum sítio da
sua consciência, já havia se incrustado a sua senssação de cegueira,
algo obscuro, é certo, mas pleno dessa situação ambígua onde por certo
já conviviam pequenas angústias, pequenas alegrias.
Numa manhã de sol radiante, marchava ela defronte das pedras, num passeio ritimado de
criança, quando deu pela presença das pedras. Não que não soubesse que
elas sempre ali estiveram, por as ter tocado, por ter feito delas
extensoes das suas brincadeiras infantis. Dera pela presença das pedras
de um modo novo, como se as estivesse vendo. As pedras lhe comunicavam
sua presença irradiando na face. Como ela não sabia o que era "ver",
tomou por "visão" aquele acontecimento. E maravilhada, marchou diante
das pedras, como se estivesse em transe, repetindo um mantra que
inventara naquela horinha mesmo: "Eu vejo! eu vejo!"
Dizia aquilo com a inocência e a convicção de uma criança de quatro anos. Foi quando para
"ver melhor" uma pedra, calculou mal a distância entre sua face e a
rocha e esbarrou brutalmente contra a mesma, interrompendo a sangue e a
dor, a doce lição de "ver" dentro da cegueira. Lágrimas e remédios
caseiros empurraram para o fundo da memória a força daquela experiência,
e, por muitos e muitos anos,ela não pensou mais naquele primeiro ritual
de iniciação, duro ritual que lhe tinha posto sozinha com sua cegueira,
exposta as bordoadas nas pedras.
Não pôde compreender de imediato, a verdade que as pedras haviam lhe ensinado. Essa verdade não se revelou
por inteiro, mas aos poucos, por insinuacoes, pensamentos, conjecturas.
As pedras, a seu jeito, golpeando-lhe a face com sua rude estrutura,
haviam lhe ensinado a "ver" mesmo dentro da sua cegueira. Levou tanto tempo
para decifrar os nós daquela experiencia! Caminhava, caminhava, e
sempre, de algum modo, retomava aquela afirmação infantil, agora sob a
forma de pergunta: O mantra se renovara: Ja não afirmava mais "eu
vejo!", mas antes indagava: O que vê a cegueira?
Longe de a desanimar, a pergunta a incitava a dizer coisas, a montoar palavras, a enfileirar
frases e mais frases, ao modo da fileira de rochas, na sua tentativa de
tornar clara essa "visão" que também habita a cegueira, reproduzindo o
claro-escuro que sempre parece estar presente no ato do homem de
observar o real.
O que vê a cegueira? Era para essa descoberta que ela caminhara
naqueles dias de 1964, agora não mais instigada pelas pedras, mas munida
por artefatos técnicos: Papel, reglete, punção, desenhavam agora o
relevo da sua pergunta, renovando-lhe o sentido, criando para ela um
nicho tecido de palavras e mais palavras.
A menina cresceu e de novo pôde apreciar a velha lição das pedras,
agora burilada, como jóia nova e brilhante.
"A minha cegueira é uma forma de visão"! "A minha cegueira é uma forma
de visão"! Dentro da sua cegueira, compreendeu que sempre vira com o
corpo inteiro. Via com os pés, que lhe indicavam as mudanças de solo;
via com as mãos, com a face; via por todos os poros do seu corpo e
continuava vendo, todo um espetáculo interior que habitava o seu íntimo,
a sua mente, e dialogava com o mundo exterior de um modo próprio, o seu
modo de "ver".
Percebeu como a experiência da cegueira acha-se ela própria "imunda" de visão, e
as tantas vezes em que tivera vergonha disso,
as tantas vezes em que negaceara essa visão olfativa, auditiva, todos os
"órgãos
de ver", espalhados por seucorpo a fora, e que lhe tinham sido revelados
pela lição das pedras!
2. As Visões da cegueira ou a Cegueira como Visão?
O rosto é inexpressivo. Cabeça e corpo se encolhem para dentro. É a
metáfora do "ensimesmamento". No cinema, na arte, na literatura, a
criação devolve ao homem cego o que já lhe dera a sociedade: um "mundo
de silêncio e trevas", um "não lugar" na vida, na poesia, na paixão. Em
muitos lugares do mundo, pessoas cegas foram e são "estrangeiras" em sua
própria págria. Na tribo, nas grandes metrópolis, na aldeia, o olhar que
as tocou não as reconheceu como "parte" da comunidade; andarilhos da
idade antiga e medieval, reclusos da modernidade, estranhos no seu
próprio mundo, os cegos persistiram na arte de "aprender a ver", dentro
da sua cegueira.
Houve quem falasse desse acontecimento de "cegos videntes". A
mitologia, o cinema, a literatura, a poesia, "animaram" uma espécie de
metáfora da cegueira como "visão", A metáfora porém, em geral alçou o
indivíduo cego para além da sua terra; elevou-o para perto dos deuses,
fez dele um ser que continuava "estranho" no mundo dos viventes.
Subtraídos do mundo da normalidade, impunha-se para os indivíduos
cegos, a luta pela sua conquista. Aquele homem que aprendera a ver o
mundo desbastando pedras, palmilhando estradas, ou despertando os homens
do alto da mesquita, à força das suas orações, aquele homem qtosco, de
cabeça baixa, que se encolhia para escutar o canto de um pássaro ou
sentir o cheiro da mercearia mais próxima onde pediria o seu pão, teve
que inventar um modo novo de demonstrar a sua "visão" e assim partilhar
do seu mundo como seus iguais, os outros homens.
E da pedra fez-se o fogo; o fogo fundiu o ferro e num dia longínquo,
um menino cego curvado sobre uma mesa de escola, inaugurou o gesto de
"ler" o mundo com suas próprias mãos.
3. Por uma Compreensão da Visão como um Múltiplo
Olhar a questão de visão e cegueira ao longo da história, implica
reconhecer a existência clara de um espaço de divisão, significa
testemunhar uma relação muitas vezes inconciliável entre os dois
fenômenos. é como se estivéssemos a jogar o jogo de "cara ou coroa",
velho exercício de uma humanidade que ao longo de sua trajetória,
esmerou-se na tarefa de separar, classificar, ordenar, confinar.
Há que se experimentar também aqui, um outro caminho; Se olharmos bem para essa
moeda, se sopesarmos sua essência, veremos que a cara ora é coroa e que
a coroa se transmuda em cara.
Parece ser indispensável que renovemos a questão inicial: Qual a
qualidade da visão que habita a cegueira? Teriam os manuais de educação
especial se ocupado em decifrar as chaves dessa pergunta?
Para além dos fenômenos cinestésicos, podemos falar de uma visão
estética do mundo dentro da cegueira, raramente percebida e estimulada
pelos projetos pedagógicos formadores desses indivíduos, mas que pode
ser pressentida pela própria arte poética, conforme ilustra a passagem
abaixo:
"...- Se o senhor soubesse - exclamou ela então numa exaltação
de alegria - se o senhor pudesse saber como eu imagino tudo isso
facilmente. Veja Quer que eu lhe descreva a paisagem?... Há atrás de
nós, acima e ao redor de nós, os grandes pinheiros, com gosto de resina,
com troncos grenás, com longos e sombrios galhos hori- zontais que se
lamentam quando quer curvá-los o vento. A nossos pés, como um livro
aberto, inclinado sobre a estante da montanha, a grande campina verde e
matizada, que a sombra azula, que o sol doura, e cujas palavras
precisas são flores gencianas, pulsatilas, ranúnculos, e os belos
lírios de Salomão - que as vacas vêm soletrar com seus sinos, e onde os
anjos vêm ler, já que diz que os olhos dos homens estão fechados. Na
parte inferior do livro, vejo um grande rio de leite, enfumaçado,
enevoado, cobrindo todo um abismo de mistério, um rio imenso, sem outra
margem senão, ao longe, bem longe à nossa frente, os belos Alpes
resplandecentes..."
(In, "A sinfonia pastoral", André Gide: p/72).
Pensar na cegueira como forma de ver sugere, pois, a instituição de um
novo modo de ação e de organização, tanto para o cego, como para os
que enxergam. Envolve o esforço de construção de um novo paradigma, o
qual possa abolir não a cegueira ocular, mas todos os entraves culturais
e sociais que ao longo da historia do homem foram agregados a essa
limitação fisica, repercutindo muitas vezes de forma nefasta, tanto nos
processos pedagógicos desses indivíduos, como na sua inserção à
sociedade mais ampla.
esse é pois um projeto não apenas para um conjunto
de pessoas envolvidas nessa problemática, mas é um projeto para toda uma
sociedade, porque envolve o reconhecimento do ser humano na sua
totalidade e nas suas diferenças.
Se a argumentação aqui exposta não é nova, está a exigir uma reflexão de fôlego, que possa enfrentar o
binômio visão/cegueira, não do ponto de vista de suas distinções físico
anatômicas, mas a partir das suas qualidades de junção, de
complementaridade.
Se pensarmos pois, o mundo dos homens a partir do
conceito de visão, então teremos a seguinte máxima:
a visão é um múltiplo, com formas diversas".
Desse modo, não há como afirmar: "A
visão é uma forma de cegueira", mas antes, "a visão que os homens têm a
respeito da cegueira é também uma forma de visão", que tanto pode servir
para "juntar" as diferenças como para apartá-las.
Se observarmos a história dos homens a partir das suas formas de visão, veremos um
magistral desenvolvimento desse processo! O filósofo Teillard de Chardin
tem uma frase exata para a descrição desse fenômeno:
"...a história do mundo vivo se resume na elaboração de olhos cada vez mais perfeitos no
seio de um Cosmos, onde é possível ver cada vez mais."
O homem expandiu seus modos de "ver" de formas as mais variadas. Nesse contexto, a
história da cegueira não é senão, a história do esforço do indivíduo
cego para também impor a sua forma de "ver" o mundo.
Compreender e valorizar essa alquimia de sentidos e pensamento na
tradução do mundo, é uma tarefa
que deve envolver não apenas os indivíduos cegos, mas, toda a
sociedade. Nos limites desse trabalho, temos consciência da pouca
profundidade com que exploramos o tema. Pensar a cegueira como uma forma
de visão, ou antes, pensar a visão como um "múltiplo" onde precisam
estar contempladas as diversas formas de "ver", eis o desafio que deve
alimentar nossa prática cotidiana, nosso ser e estar no mundo.
Que nos próximos milênios, nossos esforços nos auxiliem a "ver" cada
vez mais.
Reinvente o seu modo de "ver" o mundo a través da leitura...
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