Ao final da primeira quinzena de outubro de 1999, a redação do
jornal O Globo foi invadida por uma série de protestos, via mail, fax, e
por telefone. As organizações de portadores de deficiência do país
inteiro, além de pessoas físicas com algum tipo de deficiência
demonstravam sua indignação contra a coluna de Jorginho
Guinle, veiculada sempre aos domingos e que naquele 9 de outubro trazia
o título "freak jazz Festival".
No reduzido espaço da coluna, o jornalista descarregou uma ironia
plena dos termos de senso comum, para falar dos seus personagens.
Uma leitura linear daquele texto, onde se destacavam palavras como
"cego", "manco", "maneta", etc, poderia suscitar modos de fruição os mais
antagônicos. A coluna por certo despertaria em muitos um riso franco e
aberto; outros porém, poderiam experimentar um movimento de repulsa e
considerariam o texto de extremo mau gosto; um terceiro grupo poderia
vivenciar aquela senssação de estranhamento (misto de piedade e de medo
que sempre acomete algumas pessoas diante dos portadores de
deficiência).
A nosso ver, particularmente, a coluna pareceu ser um instantâneo
de alguns modos de abordagens prefigurados em algumas obras literárias
onde aparece a temática da cegueira associada a cenários frios,
lúgubres, e em que a escuridão é a tônica mais forte.
De que modo a literatura tem abordado, ao longo de sua história, o
fenômeno da cegueira? de que conteúdos e qualidades estéticas, o
romance, a crônica, a poesia, o conto, têm adornado os seus personagens
cegos?
Para formular tais questões, não partimos de uma matriz teórica
eminentemente linguística, tampouco do campo dos estudos em literatura;
diríamos antes que elas nasceram inicialmente de uma inquietação
particular, misto de emoção e de vontade de investigação, e que acabam
por estabelecer veios de diálogo com a linguística, os estudos
literários, a antropologia e a sociologia.
São, ademais, perguntas bastante genéricas para uma temática tão
complexa, a qual, dentro dos limites desse artigo, só pode traduzir-se
em um modo particular de introdução dessa problemática.
Para falar sobre cegueira e literatura, cremos que poderia ser útil
apreciarmos uma questão anterior: O que é o fenômeno da cegueira em si,
de que modo ele é representado no cotidiano dos indivíduos reais, em
interação face a face?
Parece ser certo que, para a maioria das pessoas, a contemplação de um rosto de um indivíduo cego não é uma experiência insignificante. ao longo das culturas humanas, um primeiro contato com a cegueira provocou as mais inumeráveis senssações, de espanto, medo, compaixão, pavor, admiração, etc, etc. poderíamos recorrer à psicologia, ou mesmo à uma sociologia interacionista e às suas concepções de "identidade" e de "interação simbólica", nas tentativas de buscar explicações para tais comportamentos. **(1).
Por hora, nos contentaremos em tentar compreendê-los a partir de um
engaste de tais práticas com uma "memória cultural coletiva".
De acordo com Edgar Morin,
"... Embora as condições socioculturais do conhecimento sejam de natureza comple-
tamente diferente das condições biocerebrais, elas estão ligadas por um nó górdio: as
sociedades só existem e as culturas só se formam, conservam, transmitem e
desenvolvem
através das interacções cerebrais/espirituais entre indivíduos.
A cultura, que é caracterís tica da sociedade humana, é organizada/organizadora via
o veículo cognitivo que é a linguagem, a partir do capital cognitivo colectivo dos conhecimento
adquiridos, das aptidões aprendidas, das experiências vividas, da memória
histórica, das crenças míticas de uma sociedade. Assim se manifestam representações
colectivas, consciência colectiva, imaginário colectivo. E, dispondo do seu capital
cognitivo, a cultura institui as regras/normas que organizam a sociedade e dirigem
os comportamentos individuais"
(Morin, 199:16).
De fato, no cotidiano das culturas humanas, não poderíamos precisar que gestos,
palavras, atitudes, práticas diárias, forjaram comportamentos e
representações usuais com respeito à experiência da cegueira, mas é
certo que em quase todas as culturas, práticas mais ou menos similares
alimentaram e alimentam o repertório das representações sobre esse
fenômeno.
O quadro geral de tais representações envolve a cegueira em dois
polos principais: Aquele em que os indivíduos cegos são vistos como
seres inferiores, incapazes, e aquele em que estes são alçados a uma
condição de heróis, seres superiores, quase divinos. "..Os cegos
geralmente foram reverenciados como videntes, profetas ou adivinhos",
comentam Telford e Saurey (apude Belarmino, 199721).
Se o esquema não é amplo, são múltiplas as metáforas que
fundamentam tais representações e que têm a linguagem como solo
privilegiado. Marcas de tais representações são muito antigas e podem
ser encontradas na linguagem mítica e, sobretudo, no discurso religioso.
Poderíamos dizer que o tema da cegueira não é tão recorrente nas
obras literárias; no entanto, quando surge, sobretudo no romance,
traduz-se ora numa experiência inquietante e perturbadora,
ora num espaço para um espetáculo telenovelesco, carregado de
dramaticidade, sentimentalismo e pieguice. Em outras obras, não é o
personagem cego que entra em cena, mas a metáfora da cegueira aparece
como escopo para uma crítica à barbárie e ao progresso. Nesse
particular, destaca-se o romance do escritor português Alves Redol,
intitulado "Barranco de Cegos", onde o autor está sempre
recorrendo à metáfora da cegueira para demonstrar a destruição de uma
sociedade agrária pela sociedade industrial civilizada, conforme atesta
Mário Dionísio, no prefácio da obra, "...Romance do Ribatejo, sim, e o mais completo livro que se
escreveu sobre uma regi„o que j entusiasmara Garrett (um dos
mestres de Redol) e interessara Ramalho. Romance duma fam¡lia
poderosa e dum mundo que em torno dela e sob ela gravita, de
campinos, varinos, valadores. Mas romance tamb‚m duma ‚poca e
dum pa¡s. Fundamentalmente, de cegos que conduzem cegos para o
barranco, na imagem de S. Mateus, e do
esfor‡o mais ou menos cego, denodado e violento, para evit -lo em v„o.
Quem s„o os cegos?
Os pol¡ticos dum governo que cede perante a desordenz dos tempos
(ind£stria, caminhos-de-ferro, liberalismo) em vez de reagir-lhes com
dureza, como pensa Diogo Relvas."
(redol, 1982: 11/12).
É no perturbador "Informe sobre os Cegos", de Ernesto Sábato, que
vamos encontrar uma utilização exemplar da metáfora da cegueira
associada a todo aquele conjunto de representações que infere ao
fenômeno, idéias de sabedoria mágica, poder, bruxaria. Os cegos de
Sábato, seita maldita, poderosamente organizada e vigilante,
ambiguamente, habitam os subterránios mais insólitos e assemelham-se
mesmo a animais de "pele fria e resvaladiça".
Com todo o risco de estarmos fazendo uma leitura apressada da
excelente obra do escritor argentino, parece-nos que ele se ancora à metáfora da
cegueira para denunciar os subterrânios em ruína de uma sociedade em
decomposição.
A mesma fórmula também pode ser encontrada no "Ensaio sobre a
Cegueira", de José Saramago, em que a metáfora é explorada às últimas
consequeências, num cenário em que o escritor esmera-se em pôr à prova
os limites do espírito humano, num "mundo de cegos caminhando
inelutavelmente para a barbárie" (as aspas são nossas).
Investigar essa temática em toda sua amplitude não parece ser uma
tarefa simples e o seu êxito depende fundamentalmente das perguntas que
formos capazes de formular com respeito aos seus múltiplos aspectos.
Para além das abordagens próprias às teorias linguísticas e literárias,
o fenômeno também pode ser apreciado do ponto de vista da antropologia,
da moral, da estética, da ética. A realização de tal incursão, requer
pois, uma remontagem de corpos desses "sujeitos cegos" que habitam a
literatura, uma recomposição das suas vozes e das vozes que os nomeiam e
dialogam com eles, para aí encontrarmos as
marcas sócioculturais que ao longo da história humana, deram e dão sentido a tais representações.
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