Discutir a questão do "fazer literatura infantil" na contemporaneidade, assim como a utilização desse tipo de literatura como aporte importante no aprendizado da criança, implica considerar o contexto pos-industrial em que vivemos, levar em conta sobretudo o seu modelo de desenvolvimento, calcado no avanço das novas tecnologias de informação e de comunicação e no seu alastramento a quase todos os domínios da vida social.
Alguns pensadores já encontraram algumas metáforas para definir a contemporaneidade; muitos categorizam a época atual como "era tecnológica", ou "sociedade informacional"; Esse processo de desenvolvimento que ganhou maior impulso com a revolução industrial (século XVIII), se em princípio organizou nos grandes sistemas industriais, a produção, circulação e distribuição de bens materiais (automóveis, vestimentas, cosméticos, alimentação, etc, etc), aos poucos alcançou o domínio da produção cultural, organizando do mesmo modo, em escala comercial, a produção, circulação e distribuição dos chamados bens culturais na área da música, cinema, a arte de um modo geral, aí incluída a literatura, em suas diversas modalidades.
O século XX deu um particular e grandioso impulso a essa trajetória
desenvolvimentista. A tal ponto que estamos vivenciando hoje, a
supremacia da televisão como meio produtor e distribuidor de bens
culturais, ao lado da informática e de suas múltiplas possibilidades.
Temos então, por um lado, uma supervalorização do mercado e do consumo;
por outro lado, as novas tecnologias influenciando tanto na
criatividade, no "fazer" artístico, como na fruição dessas produções.
A criança, sobretudo, absorve com muita facilidade esse cenário das
novas tecnologias e as suas produções, visto que, como alguns de nós,
elas já nasceram com esses novos meios incorporados à sua vida
cotidiana; elas não têm um quadro anterior de referências que se
confronte com essa nova realidade tecnológica; é gozado pensar por
exemplo, que alguns de nós, nascemos em uma época em que em muitas
cidades do mundo, não se cogitava ainda a implantação de redes de
televisão.
Que desafios estão pois colocados para os escritores de literatura
infantil na contemporaneidade? Qual deve ser a sua conduta frente a esse
contexto em que a cultura acha-se subordinada às leis do mercado e do
consumo e em que o "fazer artístico" sofre profunda influência dessas
novas tecnologias?
Em todas as culturas, sempre que alguma realidade nova surgiu, provocou
reações de temor ou de encantamento; em geral se imaginou, por exemplo,
que o rádio liquidaria o jornal e que, a televisão, por sua vez, daria
cabo das outras duas formas de comunicação. Do mesmo modo, em relação
às novas tecnologias de informática, se desenvolve a idéia de que em um
futuro breve, o texto impreso, na forma de livro, jornal terão se
extinguido.
Poderíamos dizer que essas são algumas das ilusões da
contemporaneidade. Na verdade, esses meios de informação e de
comunicação, do modo como estão articulados, tanto do ponto de vista da
grande indústria, como no tocante às informações que produzem, precisam
ser compreendidos como meios complementares, numa sociedade que
diversificou e pluralizou suas formas de produção e de acesso aos bens
culturais.
Desse modo, nenhum meio substitui ou inviabiliza o outro, mas cada meio
amplia ou complementa o outro. Então, apesar da exacerbada tendência
para o consumo, para a mercadorização dos produtos culturais, penso que
fazer literatura infantil na contemporaneidade não deve ser pensado como
um exercício desanimador. Essa produção deve sim, estar sintonizada com
a realidade tecnológica; deve sobretudo estar sintonizada com esse
indivíduo típico da cultura pos-industrial, que é um indivíduo
fundamentalmente diverso daquele forjado por exemplo, à época de
culturas em que a única fonte de acumulação do saber era a escrita.
As novas tecnologias, longe de ameaçarem o lugar da literatura,
obrigam-na a refazer caminhos, a incorporar valores e estratégiasna sua
produção literária.
Sobretudo, há que se perceber a nova tecnologia, não como a panacéia
que revolucionará o mundo e os seus valores, ou como algo que destruirá
as relações e os valores; a tecnologia não passa de uma ferramenta a
mais, que se bem dosada com as outras realidades presentes no ambiente
da criação artística, ou no ambiente do aprendizado da criança, serão
importantes facilitadores para uma maior qualidade desses processos.
Para o escritor, me parece, a fim de que se estabeleça uma
diferenciação fundamental entre uma produção voltada para o mercado e
outra, verdadeiramente qualitativa, impõe-se ainda uma questão de fundo:
qual é o papel do
escritor de literatura infantil na sociedade? Com quem ou com que
projeto ele está
comprometido?
Eu penso que o bom escritor, aquele que leva a sério a sua arte, é
tanmbém, através das suas obras, um colaborador no processo de
aprendizado da criança; um educador, um facilitador do crescimento
daquela criança para quem escreve, é aquele que, através dos seus
personagens, não planta a catequese ou o doutrinamento, mas auxilia no
surgimento do sujeito crítico, um sujeito que possa ser capaz de olhar
para o mundo e fazer escolhas éticas e conscientes.
Sempre que sou convidada a fazer palestras, imagino que os
participantes, ao lerem as temáticas propostas, aliam por sua vez, a
essas temáticas, um conjunto de interesses particulares que gostariam
ver contemplados ali. Imagino que pude contemplar minimamente,
interesses de alguns participantes desse evento; talvez não contemplei
outros; na verdade, a minha intenção, dentro dos limites do tempo, era
levantar algumas pistas, oferecer alguns elementos para um debate sobre
essas questões. Não poderia no entanto deixar de falar da minha própria
experiência com literatura infantil e assim levantar novos pontos de
discussão para o nosso debate. Não tenho uma produção muito vasta de
livros infantis. São apenas três títulos. Sobretudo tem me inquietado
muito essa tendência para uma produção de livros voltados ao atendimento
do mercado, do consumo; mas ao mesmo tempo, tenho uma crença muito forte
na criança, no seu mundo fantasmático, na sua capacidade de diálogo com
esse mundo da criação literária. Então, quando escrevo um livro, sempre
penso que uma criança gostará de travar conhecimento com aquele
mundinho, aqueles personagens. sempre haverá uma ou mais crianças que
não sogfreram mutilações na sua capacidade de criar, de dialogar, de
inventar o mundo; essas mutilações podem advir da família, ou até mesmo
da escola, que desconsidera a liberdade de pensamento da criança, que
muitas vezes, em vez de informá-la, procura enformá-la num sistema de
ensino que acaba sendo uma camisa de força para a criatividade infantil.
Então eu penso que se o sistema educacional não for capaz de fazer
pontes com a literatura, mas pontes saudáveis, sem coações, sem
imposições, sem obrigaçoes de cunho supostamente pedagógico, então,
sempre haverá lugar para o livro infantil e sempre, para lembrar
Monteiro Lobato, haverá crianças morando dentro de suas histórias e
sendo capazes de reinventar o mundo.
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