Entrelinhas

Boletim Informativo da Associação Paraibana de Cegos - Apace

Ano VI, No. 20, junho-dezembro/2001

Impresso no Instituto dos Cegos da Paraíba Adalgisa Cunha, João Pessoa - PB
Associação Paraibana de Cegos - Apace

Sede Social:
Rua José Santana, s-n,
Conj. Valentina Figueiredo I,
Tel. (0xx83) 237-5267

Endereço comercial:
Rua Maria Ester Mesquita, s-n,
Centro Social Urbano Monsenhor Padre José Coutinho,
Bairro dos Ipês,
Cep 58028-700
João Pessoa - PB
Telefax (0xx83) 225-3377

Expediente


Edição:
Joana Belarmino
Revisão:
Lusia Maria de Almeida e Maria do Socorro Belarmino
Impressão e encadernação:
Instituto dos Cegos da Paraíba Adalgisa Cunha
Colaboração:
José Alberto de Melo

Tiragem de 100 (cem) exemplares

Endereço para Correspondência:
Av. João Rodrigues Alves, No. 50, Bloco G, Apto. 101,
Condomínio Sombreiro, Bancários,
Cep 58051-000,
João Pessoa - PB
Tel. (0xx83) 235-5883
e-mail: pandora00@uol.com.br
homepage: http://intervox.nce.ufrj.br/~joana

Distribuído gratuitamente para Associações e Instituições de e para cegos


Editorial

Neste número, Entrelinhas circula como uma edição especial, publicada em braille, em tinta e no seu formato online! É que fechamos o boletim no mês em que a Apace comemora seus dezessete anos de fundação. O momento é de muita alegria e quisemos compartilhá-la não apenas com o público leitor, associados cegos e filiados de escolas e associações de todo o País, mas quisemos também mostrar nosso trabalho para o grande contingente de sócios colaboradores que em todos esses anos têm contribuído financeiramente em prol do crescimento da nossa Entidade.

A manutenção da publicação em tinta, é, aliás, uma das metas da Apace para os próximos números. Queremos tornar Entrelinhas, nosso canal de comunicação com os sócios colaboradores, o lugar onde eles possam ser informados sobre nossas ações cotidianas, o lugar onde eles possam também compartilhar idéias, críticas e sugestões para a melhoria de nossas políticas com respeito aos interesses da coletividade cega no Estado.

Reservamos para esta edição, algumas das melhores reportagens que Entrelinhas já publicou em seus anos de existência, assim como publicamos fatos da atualidade, a exemplo de reportagem sobre o I Simpósio Brasileiro sobre o Sistema Braille, assim como os principais resultados do II Senabraille realizado em João Pessoa.
Esta edição, se realiza ainda sob os ecos da grande conquista que marcou o movimento associativista dos cegos na Paraíba. Em janeiro último, por uma decisão que demonstrou amadurecimento e vontade de crescimento, a Sociedade dos Cegos da Paraíba - Socep e a Associação Paraibana de Cegos - Apace, fundiram-se em uma única Entidade de representação das pessoas cegas no Estado. Este é pois, o presente da Apace para você, amigo leitor! Veja nas próximas páginas de Entrelinhas, como estamos, o que somos. Conheça um pouco da nossa luta por melhores dias para as pessoas cegas, sonhe e construa conosco o presente que perseguimos, a fim de que ele seja pleno de conquistas!

Parabéns Apace!

J. B.


Veja em "Opinião"


Veja nesta Edição:

Entrelinhas comemora aniversário da Apace em grande estilo, premiando os leitores com as melhores reportagens já publicadas;


I Simpósio sobre o Sistema Braille: Brasil e Portugal de Mãos Dadas pela Unificação da Grafia


Em Curto Circuito, saiba sobre a vitoriosa escalada da Apace no mundo dos esportes


Saiba sobre a inalguração do CAP em Joáo Pessoa. Mec Inaugura Cap em João Pessoa


Conheça os resultados do II Senabraille em João Pessoa



Laboratório de Informática no ICP



Opinião

Entrelinhas aguarda sua colaboração para esta coluna. Os artigos não devem exceder a um máximo de cinco páginas em braille. Podem ser enviados via e-mail ou pelo correio (vide endereço no expediente), preferencialmente em braille. A correspondência deve trazer também uma pequena nota com dados pessoais do autor-colaborador. A equipe responsável pela edição do boletim não publicará aqueles artigos que fugirem da linha editorial do periódico, a qual se baseia na liberdade de expressão, desde que esteja fundada no respeito, na ética e nas regras de boa convivência.
Entrelinhas não se responsabilizará pela devolução dos artigos recusados.
Agradecemos sua participação!



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I Simpósio Brasileiro sobre o Sistema Braille: Brasil e Portugal de Mãos dadas pela Unificação da Grafia Braille
(Reportagem de Joana Belarmino)

O I Simpósio Brasileiro sobre o Sistema Braille, realizado na cidade de Salvador, Bahia, no período de 12 a 14 de setembro último, traduziu-se num importante marco para esse início de século, no que se refere à consolidação de uma política unificada da produção e distribuição do braille no Brasil e nos países de língua portuguesa, assim como configurou importantes tendências que deverão nortear os programas de educação especial voltados às crianças, adolescentes e jovens com necessidades especiais na área da deficiência visual.

Organizado e subsidiado pelo Ministério da Educação, através da Secretaria de Educação Especial, o evento contou com o apoio da Prefeitura de Salvador e das organizações de representação da deficiência visual no Brasil, União Brasileira de Cegos - UBC, e Associação Brasileira de Educadores de Deficientes Visuais - Abedev. Com uma previsão inicial estimada em cerca de 300 inscrições, o simpósio extrapolou todas as expectativas. Contou com 410 inscritos, havendo ainda um número significativo de ouvintes em diversas mesas e painéis. Outras cifras demonstram o êxito do evento. Todos os Estados brasileiros achavam-se ali representados, ao lado de delegações de Portugal e de países da África como São Tomé e Príncipe, Cabo verde e Angola. Com uma metodologia que privilegiou exposições através de painéis e mesas redondas, o Simpósio ofereceu vinte atividades nos três dias, além da sessão inaugural, com conferência que versou sobre o tema central do Simpósio: "Sistema Braille: Um Horizonte de Conquistas", a qual foi proferida pelo professor Eduardo Ravagni, da Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do sul. Foi um evento de feição eminentemente técnico-científica, apto a difundir não apenas as novidades e avanços alcançados em pesquisas voltadas à aplicabilidade do Sistema Braille nas diversas vertentes da educação especial. Para além desse objetivo, oportunizou ainda, contatos e reuniões entre as Comissões do Braille do Brasil e de Portugal, com vistas à consolidação de uma política unificada de utilização da Grafia Braille e temáticas afins.
Em diversas das comunicações ali apresentadas, ficou patente o fato de que se vive no Brasil, um contexto de transição com respeito à política de produção braille. Acha-se em franca expansão no país, o projeto de implantação dos Centros de Apoio Pedagógico (Caps), através dos quais o Governo Federal está dotando escolas, bibliotecas e-ou serviços especializados com equipamentos de produção, impressão e distribuição do livro didático, assim como de diversos outros serviços. Os Caps prometem descentralizar a produção braille no Brasil, que até pouco tempo achava-se concentrada nos grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo. Parece pois, evidenciar-se a curto prazo, uma nova tendência no contexto da produção do braille, com predomínio para a chamada produção informatizada, através de impressoras de médio porte. Essa nova tendência deverá pontuar desafios e problemas novos. Sobretudo a manutenção e durabilidade dessas novas máquinas de impressão são os problemas mais visíveis desse novo contexto, os quais exigem compromisso e "vontade política" dos futuros governantes que estiverem à frente dos destinos do País nos próximos anos.
A estrutura dos Caps já chegou a todas as capitais brasileiras e em sua segunda fase, conforme assegurou durante o Simpósio, a Secretária de Educação Especial, profa. Marilene Ribeiro dos Santos, alcançará os diversos municípios do interior do Brasil, materializando a política proposta pelo Ministério da Educação, que tem como slogan, "uma escola para todos". "Colocar o livro didático na mão do estudante cego e de baixa visão", essa é, segundo Marilene Ribeiro, a grande meta da sua Secretaria na atual gestão. Os debates sobre o assunto travados durante o Simpósio demonstram bem o tamanho do desafio a que se propõe o Governo Federal. Custos de impressão do braille, a qualidade do texto produzido, a necessidade de capacitação competente de profissionais para atuarem nesse novo mercado que se abre com a implantação dos Caps, essas são algumas das frentes a serem atacadas pelo projeto.
O Simpósio apresentou ainda, polêmicas de ordem mais subjetiva, a exemplo do problema da adaptação dos livros didáticos. Além dos obstáculos legais, impostos sobretudo pela Lei Brasileira de Direitos Autorais, há ainda a necessidade de se considerar uma reflexão profunda quanto aos resultados das adaptações dos livros. Há que se considerar o universo tátil, com toda a sua complexidade, assim como o contexto sócio-cultural daqueles que serão os usuários diretos dessas adaptações.

Finalmente, o I Simpósio Brasileiro sobre o Sistema Braille foi um importante espaço para o estabelecimento de um diálogo entre o Brasil e os países de língua portuguesa, a fim de que se construam plataformas de ação que respeitem as especificidades vigentes em cada país, mas propiciem unidade no uso do maior legado que já foi dado às pessoas cegas do mundo: o seu sistema em relevo de leitura e escrita.


Índice

Curto circuito

II Senabraille em João Pessoa

Reunindo representantes das entidades associativas dos deficientes visuais, de bibliotecas públicas e de um grande número de profissionais dedicados a prover as necessidades de informação e conhecimento aos portadores de deficiência visual, realizou-se em João Pessoa, Paraíba, no Auditório da Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência - FUNAD, o II SENABRAILLE, promovido pela Associação Paraibana de Cegos, patrocinado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE-MEC-SEESP e com o apoio da Universidade Federal da Paraíba, através do Serviço Braille da Biblioteca Central, do Fórum Permanente de Educação Especial da UFPB e de outras entidades. O caráter nacional do evento foi evidenciado pela representação de 19 Estados brasileiros. As conferências, mesas redondas e depoimentos apresentados visaram a atender aos objetivos do encontro, conceituar o que seja um Serviço Braille de qualidade em bibliotecas e instituições especializadas; além disso, compreender a repercussão dos avanços tecnológicos voltados ao atendimento das pessoas cegas e de baixa visão; intercambiar experiências; formação de grupos permanentes de trabalho para a discussão e a avaliação da problemática em questão. Veja a relação dos Grupos de Trabalho aprovados em plenário, com seus respectivos coordenadores:
1- Operacionalização do Catálogo Coletivo Coordenação: Sub-Comissão Brasileira de Bibliotecas Braille - FEBAB (Marília Mesquita Guedes Pereira) e-mail
marilia@bc.biblioteca.ufpb.br

2- Guia de Fontes de Financiamento Nacionais e Internacionais Coordenação: Biblioteca Euclydes da Cunha, da Fundação Biblioteca Nacional (Adriana Vilaça) e-mail susy@bn.br

3- Manual de Implantação e Funcionamento de Bibliotecas Especiais Braille (incluir equipamentos básicos, normas de transcrição etc) Coordenação: Setor Braille da Biblioteca Pública do Paraná (Sueli Ducat) e-mail ducat@col.psi.br)

4- Guia Nacional de Bibliotecas Braille (Listagem da Fundação Biblioteca Nacional mais Instituições com Bibliotecas especializadas, Associações de Cegos e ONGs) Coordenação: Disque Braille da Universidade de São Paulo (Raimunda Miguelina Flexa) e-mail lina@usp.br

5- Pesquisas: Situação das Bibliotecas Especiais Braille e Serviços Coordenação: Serviço Braille da BC-UFPB (Izabel França de Lima) e-mail belbib@bol.com.br

6- Acesso à informação pelas pessoas cegas e de baixa visão Coordenação: Senabraille (Marília Mesquita Guedes Pereira) e-mail marilia@bc.biblioteca.ufpb.br

7- Transformação da Sub-Comissão Brasileira de Bibliotecas Braille - FEBAB em Associação Brasileira de Bibliotecas Braille Coordenação: FEBAB (Maria de Lourdes Romanelli) e-mail romal@uai.com.br

8- Os editores de livros e a digitalização para o uso dos deficientes visuais Coordenador: (Airton Simyle Marques) e-mail Aitonsm@swb.matrix.com.br

A APACE Nos Esportes

As equipes de goal-ball da APACE, classificaram-se para o Campeonato Brasileiro que se realizará em novembro no Rio de Janeiro. O goal-ball masculino conquistou o primeiro lugar no torneio regional ao vencer o Instituto Benjamin Constant pelo placar de 10 a 0, enquanto que o goal-ball feminino, ficou em segundo lugar. As conquistas não ficam por aí. O time de futsal da APACE, embora já classificado para o campeonato brasileiro, foi o campeão regional, tendo o melhor ataque da competição, que aconteceu no período de 5 a 7 de outubro, em João Pessoa, reunindo as equipes de Pernambuco, Paraíba e duas equipes do Maranhão.


Mec Inaugura Cap em João Pessoa

Contando com a presença da secretária de Educação Especial do MEC, profa. Marilene Ribeiro dos Santos e do secretário de Educação do Estado Dr. Carlos Mangueira, foi inaugurado em João Pessoa, no último dia 9 de outubro, o Centro de Apoio Pedagógico José Laurentino da Silva, o CAP da Paraíba, o qual funcionará nas dependências da Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência - Funad. O evento contou com a participação de dirigentes de entidades de e para cegos, que esperam que o CAP venha dar suporte às dificuldades dos deficientes visuais, no tocante à produção de livros e material em braille. O nome do Centro de Apoio Pedagógico homenageia o professor e maestro cego, José Laurentino da Silva, já falecido e que educou e até profissionalizou no campo da música, diversos dos alunos cegos que passaram pelos bancos do Instituto dos Cegos da Paraíba Adalgisa Cunha.


Laboratório de Informática no ICP

Treze microcomputadores, impressora braille, scaner e impressoras comuns são alguns dos equipamentos do novo laboratório de informática do Instituto dos Cegos da Paraíba adalgisa Cunha, inaugurado no último dia 7 de novembro. A solenidade de inauguração contou com a presença de autoridades do Movimento Nacional de Cegos, a exemplo do presidente da União Brasileira de Cegos - UBc, professor Adilson ventura. A secretária de Edu cação Especial do Ministério da Educação, profa. Marilene Ribeiro dos Santos, também prestigiou a inauguração do laboratório, subsidiado através de recursos do FNDE.
O laboratório que tem por nome "Laboratório de Informática Professor Adilson Ventura", numa homenagem ao presidente da UBC, promete qualificar o ensino de crianças cegas no Instituto, que com os novos equipamentos ingressa de vez na era tecnológica.



Índice

Entrelinhas premia seus leitores com a republicação de duas das suas melhores reportagens. A primeira é a entrevista com o ex-presidente da União Latino-americana de Cegos, Enrique Elissalde, que faleceu em 5 de janeiro de 2000, deixando uma larga folha de serviços prestados à coletividade cega da América Latina e do mundo. Sua entrevista a Entrelinhas, pode ter sido a última que ele deu a um periódico em braille. Enrique Elissalde: Um Trabalhador da Palavra


A segunda reportagem, publicada na edição no. 19 de Entrelinhas, faz o apanhado do dia-a-dia do único defensor cego a atuar na Paraíba, José Belarmino de sousa. Confira! José Belarmino de Sousa: Entre "Titelas" e "Varais"



Enrique Elissalde: Um Trabalhador da Palavra (Reportagem de Joana Belarmino) "...Houve muitos cegos muito respeitáveis, mas talvez o maior de todos seja aquele que ainda não conhecemos, aquele que espera a educação e que nos espera, entre os pobres e os desfavorecidos do mundo". A afirmação é do presidente da União Latino-americana de Cegos, Ulac, o jornalista e educador Enrique Elissalde, que concedeu via e-mail, uma entrevista para a reportagem de Entrelinhas. O caráter excepcional da entrevista não lhe retirou nem a graça, nem a leveza tão próprias ao falar de Enrique; tampouco encobriu os momentos de humor e irreverência, nem o tom forte da justiça e da solidariedade, tônicas da sua atuação junto ao movimento latino-americano de cegos. A esperança parece ser o condimento indispensável para sua luta diária contra a discriminação, o preconceito, o desrespeito aos direitos humanos; uma luta que se acha entremeiada pela ação do jornalista, do escritor, "o primeiro para entrevistar a vida, o segundo para entrevistar os sonhos, ambos para investigar o mistério". Segue na /ntegra a entrevista, onde se falou de movimento de cegos, da cegueira como experiência; onde se viu a força de um homem que junto com muitos outros, ergueu o sonho da União Latino-americana de Cegos. - Movimento de Cegos: P. Gostar/amos que o sr. traçasse um perfil da ULAC para os leitores de Entrelinhas. A União congrega quantos países, quantas entidades filiadas, quantas pessoas f/sicas envolvidas? R. A ULAC tem afiliadas organiza‡ões de e para cegos dos 19 países da região. Foi um formidável crescimento. Em 1984, quando, na Arábia Saudita, foi criada a União Mundial de Cegos, havia somente três países latino-americanos: Brasil, Colômbia e Uruguai, além de El Salvador, como observador. Já quando se formou a ULAC, em Mar del Plata, em 1985, este número crecera para quatorze. Na Assembléia de São Paulo (1988), já eram 17, faltando El Salvador e Honduras. Nesse mesmo ano, compareceram os dezenove países latino-americanos à Assembléia Mundial de Madrid e desde então, nossa presença tem sido muito significativa. Isto é importante não só pela participação, mas também porque pôs fim àquela situação anterior a 1985, quando a América Latina era representada apenas por três ou quatro países: não havia democracia, mas sim uma elite conservadora de organizações latino-americanas para cegos, que felizmente, hoje não existe, porque estamos todos representados com nossos diferentes pensamentos, estratégias e esperanças. P. Como o sr. avalia a participação do Brasil dentro da Ulac? R. O Brasil teve um papel expressivo na ULAC. Foi e é um ponto de apoio forte e firme. P. Particularmente no Brasil, associações e organizações de cegos vivem uma espécie de "crise de credibilidade". O senhor acredita num futuro em que não mais serão necessárias associações que, em vários n/veis, congreguem cegos? R. Acredito que as associações e organizações de cegos sempre serão necessárias e úteis para defender nossos direitos, para assegurar nossa integração e para que tenhamos uma voz que nos expresse. Pensar que deixarão de existir é o mesmo que admitir que sindicatos e associações de profissionais desaparecerão. P. Nessa sua gestão à frente da Ulac, é marcante uma preocupação sua com a questão dos direitos humanos. Na sua opinião, no caso das pessoas cegas, quais os países que mais desrespeitam os direitos desses indiv/duos? R. Os países nos quais, em geral, não são respeitados os direitos humanos de todos os cidadãos; os países com ditaduras ou com tutela militar e muita corrupção. É nesses países que há menos respeito por nossos direitos, mas não porque sejamos cegos, e sim porque são países submetidos, sem liberdade, sem expressão. Cegueira: P. O que significa para o senhor a experiência da cegueira? R. A cegueira foi uma circunstância que tive de compreender, e aprender a conviver com ela. Depois que perdi a vista, sabia que não iria recobrá-la: era cego e sabia que como cego teria de viver, de lutar por minha parte de felicidade humana. P. "Ensaio sobre a Cegueira", um dos mais notáveis e perturbadores romances do escritor português José Saramago tem causado certo incômodo junto a pensadores e intelectuais cegos. Como o senhor analisa essa obra? R. O romance de Saramago sobre a cegueira é terr/vel e está muito bem escrito. Como alegoria, transmite uma feroz ditadura. Como imagem da cegueira, deixa que a fantasia faça dela o que não é. Acontece uma coisa similar no romance de Sabato "Sobre Héroes y Tumbas" ('Sobre Heróis e Túmulos' - (N. da T.) A cegueira impressiona, desata a imaginação, mas em sentido negativo em casos assim, mesmo com o valor literário excepcional que têm. P. Particularmente, eu gosto de pensar na cegueira como uma "forma de visão". O que o senhor diria a respeito disso? O que vê a cegueira? R. Não estou de acordo, Joana. A cegueira não é, não pode ser, uma forma de ver. A cegueira é não ver. Pensar de outro modo é acreditar em poderes mágicos, em espiritualidades duvidosas ou num poder especial para a pessoa cega, o que eu não vivo, que não sinto. Sou um homem, só isso: um homem que não vê. - Rapidinhas: P. Com que palavras o senhor traduziria o século XX? R. Século XX, derrota e vitória: século dos nazistas, do racismo, da discriminação e também século de avanços incr/veis na ciência e na arte. P. O nome de uma pessoa que a seu ver fez da cegueira uma experiência respeitável: R. Houve muitos cegos muito respeitáveis, mas talvez o maior de todos seja aquele que ainda não conhecemos, aquele que espera a educação e que nos espera, entre os pobres e os desfavorecidos do mundo. P. Uma frustração: R. Que o homem seja capaz de matar seu semelhante. P. Um sonho não realizado: R. Viver em uma sociedade justa, igualitária e humana. P. Uma palavra para definir o futuro: R. Esperança. Sempre a esperança. - Enrique: um trabalhador da palavra: P. Dentre as suas inúmeras ocupações na Ulac e na Fundação Braille do Uruguai, o jornalismo tem sido fruto de muito labor. Quer nos falar um pouco sobre a sua produção nessa área? R. Jornalista e escritor sempre. O primeiro para entrevistar a vida, o segundo para entrevistar os sonhos, ambos para investigar o mistério. P. "De Perfiles a El Monitor: Datos para um Centenario", foi um importante trabalho jornal/stico, inovador na área da cegueira e caracterizado por uma pesquisa de fôlego; há a perspectiva de produção de um novo trabalho envolvendo por exemplo, a produção tiflológica da América Latina? R. Tenho muitos projetos jornal/sticos sobre os cegos e nossa América Latina, porque seremos "menos incapacitados" quanto mais saibamos de nós, de nosso passado e de nosso futuro. P. Seja nas páginas de alguns números de "Punto Siete", seja nas sessões em que nos defrontamos com o humor de "Braill/n", vislumbramos a marca de Enrique escritor. Existe projeto seu no sentido de um romance ou de uma biografia? R. "Braill/n" quer escrever minha biografia. Coitado, está desocupado! - Generalidades P. A humanidade conquistou a escrita há mais de três mil anos; o ingresso das pessoas cegas na chamada "cultura letrada" não tem ainda duzentos anos; no entanto, os progressos tecnológicos já nos permitem transitar de forma mais ou menos ágil dentro da chamada "sociedade da informação". O senhor acredita que a tecnologia poderá ser uma importante aliada na remoção de óbices que impedem o acesso das pessoas cegas ao mundo do trabalho, da cultura, da sociedade em geral? R. Acredito que a tecnologia converteu-se na fada-madrinha das pessoas cegas para o acesso ao trabalho, à cultura, à sociedade. Não devemos esquecer, porém, que além das fadas existem as bruxas. Defender as fadas é a questão. Desejaria ainda que o sr. me encaminhasse um rápido perfil, envolvendo dados pessoais e dados sobre sua atuação no movimento de cegos. R. Nasci em 21 de outubro de 1939, e ainda não tenho a data de minha morte. Estudei literatura. Fui presidente-fundador da FBU, da ULAC e vice-presidente da UMC. Trabalhei em um departamento de publicações da Universidade da República e um dos meus maiores orgulhos é que durante vários anos compartilhei diariamente meu trabalho de jornalista e editor com Eduardo Galeano, amigo, ponto de referência, grande disseminador de palavras e de pensamentos. Com Judith, desfruto de um lar feliz e aconchegante, que inclui a pequena Ainara, graciosa neta com 4 anos de idade.


Índice

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Entre "Titelas" e "Varais"
defensor público cego ensina ao mundo jurídico uma antiga lição de coragem
(Reportagem de Joana Belarmino)

Subimos escadas, percorremos compridos corredores. O intermitente ruído de uma máquina de escrever nos adverte de que estamos diante da porta da sala do advogado de ofício José Belarmino de Sousa, defensor público da Terceira Vara de Fam/lia, Comarca da cidade de Bayeux. Entramos. A máquina crepita incessantemente. Em volta do birô do advogado, uma pequena multidão de pessoas humildes, senhores idosos, jovens grávidas, mulheres de meia idade, seguram papéis em silêncio, olhando para aquela cena de um homem que escreve, escreve, sem descanso. José Belarmino de Sousa, 47 anos, é o único defensor público cego em atividade na Paraíba, desde 1982. Da sua velha máquina de escrever, já saíram mais de dois mil processos de sua própria lavra, afora aqueles processos em que teve que substituir colegas. Essa reportagem resume os quase vinte anos dessa história, em que o caus/dico tem arrolado milhares de experiências. Aprendeu a deslindar um dicionário popular para a nomenclatura jurídica. Conheceu a discriminação e o preconceito, advindos da parte dos próprios colegas; entre "titelas" e "varais", "furatelas" e "escorpiões", ensina ao mundo jurídico, a antiga lição de coragem que aprendeu do seu próprio pai.

Numa noite longínqua da infância, quando já eram meia dúzia os filhos cegos de Mariano Belarmino que dormiam nas alvas redes compradas na feira, o pai fitou os rostos infantis e perdeu o sono. No dia seguinte decidiu procurar o juiz da Comarca de São José do Egito, Município ao qual pertencia o distrito de Itapetim, para aconselhar-se. Tirou respeitosamente o chapéu em frente do dr. Inácio Valadares e disse que queria colocar os filhos cegos na escola. O juiz se riu daquela cara magra, daquele desejo e sentenciou: "compre violas, compre sanfonas. Ande com seus filhos pelas feiras, a pedir esmolas, e o senhor vai ficar rico em um ano".
Mariano engoliu seu desapontamento e deixou a sala do juiz em silêncio. Procurou o padre da cidade, João Leite, que sabia de uma escola para cegos na cidade de João Pessoa.
Alguns anos depois, quando já andava pelo terceiro volume do livro "Meu Tesouro" em braille, José Belarmino escutou a antiga história do juiz e prometeu a si mesmo que seria advogado, que um dia ficaria frente a frente com o doutor Valadares para lhe dizer: "Veja, doutor, no que deram as suas violas e as suas sanfonas".
É certo que nunca encontrou Valadares em pessoa. ele morrera algum tempo depois daquela sentença. O mundo jurídico porém, é farto em senhores Valadares, que têm podido aprender do advogado cego, a antiga lição de coragem. Com um salário líquido de pouco mais de 1500 reais, José Belarmino diz que está "cansado", mas na sua mesa não param de chegar processos. Só no último mês de março, deu entrada em 57 processos na vara de família, foi a diversas audiências em munic/pios vizinhos, substituiu colegas em processos nas varas da família e criminal. Confessa que seu ramo predileto de atuação é a vara de família. Concluiu o curso de Ciências Jurídicas na Universidade Federal da Paraíba e especializou-se na mesma universidade na área do direito civil. Como defensor público, já ocupa a terceira entrância, último degrau da carreira de advogado. A cegueira lhe atrapalha no exercício da profissão, pergunta-lhe a reportagem de Entrelinhas: "Atrapalham os meus próprios colegas, que me discriminam, por conta da cegueira. Muitas vezes soube de colegas que aconselharam clientes a não me procurarem para defender suas causas. Mas a coisa funciona quase como uma contra-corrente. Os clientes, quando têm seus processos bem sucedidos, vão espalhando que na comarca de Bayeux tem um advogado cego muito famoso". Quanto mais fama, mais trabalho. "Ando meio cansado".
Encravado entre a capital, João Pessoa, e a cidade aeroportuária, Santa Rita, o município de Bayeux, que herdou seu nome dos tempos da colonização francesa abriga uma população estimada em 110 mil habitantes. São operários de indústrias de cisal, pequenas fábricas de produtos químicos, confecções, entre outras. No tete a tete com o Doutor Belarmino, exibem o seu dicionário popular para a complicada nomeclatura jurídica dos seus processos. Conta o advogado: "Num processo de tutela, é comum o cliente falar em titela. Curatela vira furatela. Usucapião fica sendo escorpião". E lembra-se da vez em que solicitou a uma cliente: "Por favor, assine sua rubrica nas folhas do processo", ao que ela respondeu: "Mas Doutor, meu nome é Maria José".
Ele admite que por muitas vezes teve que pagar as xerox que deviam constar dos processos dos clientes. "Naquela comarca, e em outras onde trabalhei, como em Boqueirão, e em Cajazeiras, o advogado é uma espécie de clínico geral, de psicólogo, muitas vezes de pai". Por algumas vezes, o advogado teve que enfrentar "Valadares" em sua vida pública. "Um dia, em uma audiência particular, num Município do Rio Grande do Norte, cheguei à sala de sessão e percebi um clima de desapontamento da parte do juiz, quando me disse meio sem jeito": "Sente-se, ceguinho"! De pronto agradeci: "Muito obrigado, senhor juizinho". Durante toda a audiência senti um clima muito pesado entre as partes. Na saída o juiz pediu-me para que ficasse um momento: "Por que chamou-me de juizinho, Doutor?" E eu: "Por que chamou-me de ceguinho, doutor?" Dois casamentos, quatro filhos. Nas horas de folga, o advogado leva a família para a praia e esmera-se em cultivar com boas canecas de cerveja uma barriguinha que cresce a olhos e "dedos" vistos. Se pinta um bom violão, solta a voz de seresteiro, imitando Nelson Gonçalves:
"Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim".


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