E uma chuva de agosto a batucar suas sílabas na minha janela. experimento de escutar as águas, ruído branco, líquida saudade escorrendo por entre as folhas das árvores, ensaio de beijo a revolver a terra, perto da calçada, onde a lata de refrigerante esquecida, inconscientemente se banha. chuva lá fora, rio cá de dentro, a revolver outras águas, outro lugar. Um homem sentado e eu ajoelhada a lavar-lhe os pés.
Porque essa lembrança guardada como relíquia antiga, porque agora essa senssação de ter entre as mãos de menina os pés rugosos e sujos de terra, donde os meus dedos hábeis extraíam o texto do dia, ranhuras, tocos de graveto ressequido, tensão boa de estar amoldado a terra, abrindo covas, semeando, aplainando o lugar donde viria o broto?
Era a hora morna da tarde em que os pássaros haviam se calado. A hora morna em que no rosto do meu pai o prazer assistia ao seu siLêncio calmo. Só havia a fala dos seus pés, a me contar do dia, a me dizer do trabalho duro. A fala dos seus pés, sob a música da água na concha das minhas mãos de criança, decifração de uma ternura que não se metamorfoseava em frases decoradas, em gestos medidos; decifração de uma ternura que se engendrava em cada gesto nascido do agora, do momento de estarmos ali, sob a cúpula da cena sagrada em que de joelhos, eu lavava os pés do meu pai.
E a chuva calma que brota agora dos meus olhos, é um canto de agradecimento por todas aquelas tardes em que eu e o meu pai, sem o saber, nos entregamos a essa ternura composta de terra e água, mãos e pés, e umprofundo respeito pela vida!
Domingo, 8 de agosto de 2004.
Joana Belarmino
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