CANTINHO DA PANDORA.




Carta para Lu Almeida
João Pessoa, 26 de janeiro de 2003

Oi minha flor!

Sabe aquela colisão? Àquela hora, naquela chuva? Aquela colisão foi um jeito esquisito que a vida engendrou para te levar daqui. Eu só soube depois de algumas horas e foi como se tudo novamente se repetisse. Fiquei esquisita neguinha, procurando o chão, desmantelando o mundo à minha volta com o brandir de uma dor nova que crescia e ganhava força dentro de mim. Uma dor nova que foi abrindo as comportas do que eu sou, esfarelando os diques de areia da pouca resistência que ainda guardava as portas de dentro. Dor que já se fazia posseira do solo do meu coração, revolvendo com fúria a terra de dentro, onde germinavam todos os meus jardins. Terra revolvida neguinha, e no meio de tudo, uma coisa que brilhava, brilhava. O que seria aquilo que brilhava apesar do entulho molhado de um pranto de rio selvagem?

Cheguei perto e segurei aquilo nas mãos que tremiam. Fui retirando o excesso de terra molhada e percebi que por debaixo de tudo havia um calor suave; por entre os dedos, uma forma difícil de descrever; um brilho calmo que se insinuava por entre os rios do meu pranto. Aquilo era uma espécie de flor, neguinha, uma espécie rara de flor. Era a flor da nossa amizade. A colisão não tinha destruído uma se quer das suas pétalas. o caule, forte, estava intacto. todas as gotas de carinho e afeto continuavam íntegras, no centro daquela flor.

A flor era uma cápsula de tudo que havíamos vivido, de tudo que havíamos aprendido. Cada dia, todos os dias, encontro um tempinho para tocar a minha flor e ela me conta coisas novas em cada uma dessas vezes. Hoje descobri que ela tem em volta do caule, finíssimos fios invisíveis, pontos de condução para algum lugar onde o tempo não persegue dias, onde não se arrancam folhas de calendários, onde os relógios não abocanham as horas, na sua gula compulsiva de máquinas de contar, onde nenhuma colisão ameaça um presente que se tece na eternidade.

O gesto interrompido, nem vou mais ligar praquele teu telefone de todas as noites. Minha flor me diz que você tem uma flor igual neguinha. Você tem uma flor igual neguinha, e eu te amo!

Joana Belarmino

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