CANTINHO DA PANDORA.





Caniço Pensante
Joana Belarmino

Alguma coisa anima a fragilidade ea moleza do seu corpo. É a luz do sol, que penetra incidiosa pela precária cobertura dos jornais. Fragmentos de coisas acontecidas, letras encardidas, velhices de ontem que ele atira para um canto do muro.

No centro da página rasgada, os restos da foto da modelo nua, de cócoras, ainda guarda asmanchas do esperma da noite.
O cérebro é agora uma trilha acesa para as coisas do dia. Não. Hoje não vai garimpar no lixo o seu dejejum. No lixo já vão Beiço Grande, Bala Doida... Vai o pobe do Ôi Cego, vai aquela fedida que mora no Bozó... parece.
Hoje vai na padaria. Fica rondando por lá, lambendo o cheiro das coisas.
O cheiro do pão doce é bom de mais. Ele sabe que é por causa do côco que o pão cheira daquele jeito. O povo da padaria pede café com creme. É bom de mais! Um dia ele lambeu um copinho que um bacana jogou no lixo. O cara jogou o copo e deu uma cusparada. Bicho nojento!"
Vai se esgueirando, limpando o olho com as costas da mão. O cérebro é um pequeno forno a queimar suas lenhas.

"Noite boa! Lençol de coxa e peito da modelo esfregando no sexo! espicha o deboche da cara para uma velhota que apressa o passo e segura mais forte a sacola do pão. "Jornal de merda! O papel furou-se todinho, nas melhores partes!"
Entra na padaria com a sutileza de um rato. Só quer ver pelo vidro as tortas de queijo. O susto da mulher do pão, o sexo da modelo, a fedida do bozó... Todas as lembranças se aninhando no cheiro bom do pão doce.
"Ai se pudesse lamber aquilo!"
Vem o balconista e o enxota.
Empurrão danado. Arranhou-se todo numas latas velhas de manteiga.
"Lá vem ela!
Bonita, aquela estudante de óculos. "Tem um olho pidão. Tem bolsa de couro, com bolsinha pequena cheia de moedas dentro".
Senta-se, pede pão assado com queijo, café e leite.
Uma noite sonhou com ela. "Coisa de doido! Ela trazia torta de queijo, pudim... até manjá branco. Os dois se lambuzavam com aquele doce todo, e riam, riam, riam..."
"Min dê um cumêsin, dona..."
Voz melada, cheia de catarro, que ele sabia tirar do fundo da garganta.
Pediu na hora errada. Ela tá dando a primeira mordida no pão. O queijo meio derretido estica muito antes de se partir.
"No sonho, se lambiam, até ficarem de língua fina".
"Min dê, dona....
Ela vai dar moeda. Mete a mão fininha na bolsa, "mão de manjar branco, mão buliçosa no sonho".
A moeda tava tão escondida! Será que vai dar?
Caminha rápido, nariz afiado a experimentar o cheiro das guloseimas.
"Eu quero uma torta de queijo".
Voz limpinha de comprador, sem o catarro daquele bicho nojento do café.
O homem olha a moeda e lhe atira o salgado com nojo.
Nem olha pra moça. Sai correndo com a presa contra o peito, a cabeça trovejando suas fagulhas."O pobe de Ôi Cego.... Se a fedida do Bozó viesse lhe dava um pedaço...
Caminha rápido, as lembranças do cheiro e do gosto do queijo grunhindo alegrias em seu estôomago, as mãos a tamborilar nas pernas magras o matraquear buliçoso do cérebro. Rápido, aí vem a próxima esquina e com ela a porrada na mulher.
É a velha do pão, uma cara aberta em susto e desespero. O cérebro é agora um pequeno pavio aceso, a iluminar o caminho das mãos, a lhe entregar pequenos retalhos do que tem que fazer. Tantas vezes fazendo. Tantas vezes se rindo daquele desespero magro, cheirando a pão doce.

O pequeno estilete mostra ao sol da manhã as suas sujeiras. Vai enfiar entre o braço e a costela, bem ali onde a velha prende a bolsinha.
Um cortinho de nada, estilete de merda, ponta quebrada... Um cortinho de nada, só pra ela desprender o braço.
E o pavio do cérebro acendendo a força da mão, e a mão virando estiling...
Divertido aquilo. O pássaro velho assustado, tão perto dele, uma cara tão branca, umas velhas asas tão podres, paralisadas pelo medo.
O segundo estira à sua frente o tempo de enfiar a faca. A força da mão é como um chute a gool.
A bolsinha cai. O estilete escorrega para o meio fio, a se lavar na poça de água. A velha está abraçada a ele, chorando...
Velha nojenta. Se disvencilha daquele abraço molhado e foge a correr.

No ponto do ônibus, a moça Abre o livro para pegar o ticket. A vista lhe cai na frase que mais gosta:

"O homem nada mais é que um caniço, o mais frágil da natureza, mas um caniço pensante. Não é necessário que o universo inteiro se arme para massacrá-lo. Um vapor, uma gota dágua bastam para matá-lo, mas quando o universo o matar, o homem será ainda mais nobre que aquilo que o mata, porque ele sabe que morre e conhece a vantagem que o mundo leva sobre ele. Toda nossa dignidade, portanto, consiste em pensar".

(Tellarde de Chardin).

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