É a terceira faixa do disco. Interrompi a leitura do livro para escutar
e foi como se de repente fosse se desdobrando diante de mim, um passado
fresco e cheirando a tudo que vivemos. A rotina tem o cheiro da
multiplicidade; tem o som atonal das coisas a se chocarem , das pausas
entre o manuseio de um e de outro objeto, do leve trincar da faca sobre
a tábua da carne. As vezes a música se imiscuía ainda dentro do sono,
pela manhã. Ia raspando suas notas nas bordas do tímpano da gente, como
se fora um gato a rorronar, a raspar a porta com suas unhas finas. A
música se demorava na preparação da manhã, ignorando o sol de novembro,
em plena atividade, a secar as roupas do varal, a chupar o orvalho da
grama da frente da casa. Outras vezes a música irrompia à quase hora do
almoço. Nessas ocasiões, havia que se interromper o gesto de colocar o
prato na mesa.
A música funcionava como uma ordem de parada. O gesto
interrompido a meio, nem se sentia a tensão das mãos, segurando o
almoço. Se a música fosse tocada ao final da tarde, quando naturalmente
o espírito vagueia descuidado pelos planos interiores do mundo, então se
poderia imaginar qualquer coisa por debaixo das notas. Somente naquela
hora tranquila nos permitíamos ouvir o "Bolero "inteiro, compor suas
várias cenas, experimentar seu clímax. De cada vez se montava um cenário
novo, de fatos acontecidos ou não.
O "Bolero" podia muito bem ser o
enrredo para uma cópula. Melhor que se tratasse de uma batalha. Uma
batalha de corpos que se esmeravam num carinho descuidado como a vaga
dança dos espíritos.
outras vezes era como se a música fosse desdobrando o mapa comum dos
nossos dias, os fatos a se atropelarem numa desordem saudável, composição
incomum de uma rotina feita de coisas acontecidas, transformadas,
deformadas pelo som dos instrumentos, a bater na parede da sala, bem
ali, onde tínhamos pendurado antes um quadro do Guevara.
Sob a cúpula das notas, quase que a medo, podíamos refazer a trilha dos
discursos, sobrepor palavras ao que fora dito, trincar o s ou o d de
alguma palavra, no momento mesmo em que partilhávamos maçã e conversa.
Um grito na sala. A música crescera e estava
insuportavelmente angustiante. Eram as mesmas notas de antes, mas agora elas
ameaçavam invadir a rua, dizer aos outros e a qualquer um, o que se
ocultara, o que se resguardara sob a suavidade de antes.
O estampido da nota final esfarela as lembranças, desalinha as franjas
de uma fina angústia, a tecer no manto do discurso, o passado dos dias.
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